Em O Sonho de Cipião, o político e filósofo Cícero conta a história do protagonista que, ao chegar a África, foi visitado pelo espírito do avô, herói da Segunda Guerra Púnica. No sonho, Cipião via-se a si próprio a olhar para Cartago, a partir da esplêndida e brilhante abóbada celeste repleta de estrelas. O avô previu o futuro de Cipião. Depois de cumprir o seu dever como um leal soldado romano, seria recompensado depois da morte e passaria a habitar a espiral estonteante da Via Láctea. Na sequência do mesmo sonho, Cipião percebia que Roma não passava de uma partícula na face da Terra, diminuída pelo esplendor das estrelas. Observou nove esferas celestes alinhadas à semelhança de uma escala musical. Enquanto admirava o Universo em deslumbramento, Cipião começou a ouvir uma canção, doce e divina, a que o avô chamou musica universalis: a “música das esferas”.
Cícero prossegue discorrendo sobre a natureza do Divino, sobre a alma e a virtude do ponto de vista Estóico. Segundo ele, a virtude consiste numa vontade que está de acordo com a Natureza e uma vida em harmonia com a Natureza tem de ser sensível a estes aspectos da nossa individualidade.
A música enquanto lei moral, uma grande unificadora da Natureza. A música é a todo-poderosa conhecedora da Natureza.
Coincidentemente ou não muito coincidentemente, encontramos o paralelo com os antigos chineses, que acreditavam que a seda (instrumento de cordas) não era tão boa como o bambu (instrumento de sopro) e que o bambu não era tão bom como a “carne” (voz humana). Para os chineses, o corpo humano está em harmonia com a Mãe Natureza. Quanto mais perto do mundo natural, mais belo será o instrumento musical.
Há mais de dois mil anos, um homem chamado Confúcio já tinha compreendido a espiritualidade da música e a sua capacidade de unir as pessoas. Numa fase muito inicial da cultura chinesa, a música tinha um papel muito importante nas actividades rituais. Confúcio sabia que ser capaz de unir a música à dança poderia ser necessário para interligar o Céu e a Terra, conceito que o sábio chinês estabeleceu e formalizou nos seus escritos.
Os antigos chineses dividiam os instrumentos musicais em oito categorias, conforme o material com que eram fabricados: metal, pedra, seda (cordas), bambu, lagenaria (cabaça), cerâmica, couro e madeira, conhecidos como os “oito tons”.
Os instrumentos de metal eram principalmente sinos de bronze usados na China pré-dinástica. Os sinos serviam não apenas como instrumentos musicais, mas também como instrumentos cerimoniais que simbolizavam estatuto e poder. Os sinos, as suas variantes e os tambores eram profusamente utilizados nos eventos estatais, como em rituais de sacrifício e em banquetes.
Os instrumentos de pedra eram fabricados com calcário, lápis lazúli e jade, sendo a parte de cima lisa e a parte de baixo ligeiramente curvada, com tamanhos e a espessuras variáveis. Eram aninhados em molduras ricamente decoradas, feitas de madeira densa e escura que continha camadas e camadas de significados simbólicos. Os sinos eram agrupados de acordo com as diferentes claves.
A seda incluía toda a espécie de instrumentos de cordas, porque na antiguidade as cordas eram feitas de seda. Estamos a falar dos qin, se, pipa, huqin, konghou e assim por diante.
Os instrumentos de sopro eram feitos de bambu, como a flauta, o xiao, os tubos sonoros, etc.
Lagenaria é o fruto da planta da cabaça.
Nos instrumentos de cerâmica incluíam-se a flauta, o tambor, etc.
Em couro eram fabricados vários tipos de tambores.
A madeira era usada em diversos instrumentos de percussão que, hoje em dia, já raramente se encontram. Frequentemente esculpidos com formas de animais, eram usados na corte para marcar o início e o final de uma peça musical.
Do grupo da seda, o qin de sete cordas, também conhecido por guqin, tem uma história de mais de 3000 anos. Dizia-se que o qin tinha nove virtudes e simbolizava a rectidão (yi). O som deste instrumento, conhecido como “o som de jade”, era tão cristalino que podia atravessar paredes. Como instrumento musical que podia ser tocado na presença de convidados de honra, era usado nos círculos frequentados pelas classes altas e o convidado tinha de se sentar muito direito enquanto escutava a música.
O qin começou por ser um instrumente de cinco cordas. A partir da dinastia Han passou a ter sete cordas e foi consagrado na literatura tradicional, partilhando o mesmo estatuto dos livros. Deve ser referido que o qin já era extremamente popular na China pré-dinástica como um instrumento tocado por mulheres e homens cultos. “A dama é amiga do qin”, assim vem mencionado no Livro das Odes.
A arte é a mais cosmopolita de todas as coisas tangíveis. Se o qin é a parte visível do tangível, o bambu é a parte invisível. Os instrumentos musicais feitos de bambu absorvem o qi, o sopro do Céu e da Terra, para que o som dos pensamentos repouse na dimensão espaço-tempo. Tocar instrumentos de bambu requer também o uso do nosso qi, o nosso fôlego, por isso é necessário manter o corpo na melhor forma possível. É uma experiência transformadora destinada a obter a harmonia com a Natureza, durante a qual a carne se liberta e passa a existir para além das leis de Newton. A carne torna-se imortal.
Dos instrumentos de bambu, o xiao é o mais sofisticado e é frequentemente tocado por damas, reflectindo os desejos ocultos de ambos os sexos de convergir no mesmo corpo. Yin e Yang, a carne e o sangue da Mãe Natureza. É por isto que He Xiangu, a única figura feminina das divindades taoistas, conhecidas como os Oito Imortais, tocava o sheng, um instrumento de sopro que fazia lembrar uma miniatura de um órgão de bambu.
O bambu encerra múltiplas dimensões da psique chinesa bem como do seu intelecto. O intelecto chinês não despreza o corpo. Antes pelo contrário, cultiva-o, o que consiste na arte da vida. A unidade do corpo e da mente é concreta, receptiva e, acima de tudo, possível. Esta é, de facto, uma das riquezas da sabedoria chinesa.
Recentemente, a NASA divulgou uma gravação. Uma “melodia” cantada por um buraco negro do espaço. Estranha e insondável, dura apenas 30 segundos e soa como um instrumento de bambu. A gigante vagina do universo. Poderosa carne imortal, inspirando e expirando. A sua beleza é tão terrível quanto maravilhosa.
