O Primeiro Tribunal

Um inferno chinês

O Divino Panorama apresenta uma versão do inferno chinês. Nela podemos encontrar um sincretismo popular dos Três Sistemas (taoísmo, confucionismo e budismo), eivado de superstições, cujo resultado é a religião popular chinesa, que subsiste ainda nos nossos dias. Aqui são descritos detalhadamente os tenebrosos Dez Tribunais do Inferno, os erros e pecados que condenam as almas e as torturas a que são submetidas, até serem devolvidas à luz para reencarnarem noutro ser. A “autoria” deste texto seria, supostamente, do próprio Yu Ti (o Legislador Divino) que, levado pela misericórdia, terá decidido transmitir este Divino Panorama à humanidade, como meio de a prevenir para os horrores que esperam os iníquos depois da morte e assim a todos inspirar uma vida virtuosa. A Via do Meio apresenta aqui o Primeiro Tribunal.

 


Sua Majestade Infernal, Qin Guang1, está especialmente encarregue do registo da vida e da morte, quer para os novos como para os velhos, e preside ao tribunal das regiões infernais. O seu tribunal situa-se no Grande Oceano, longe do escolho de Wu-chiao2, no distante Oeste, próximo da estrada lamacenta que leva às Fontes Amarelas3. Os homens e mulheres que morrem de velhice e cujo destino é renascer no mundo — se o balanço de boas e más obras for equilibrado — são enviados para o Primeiro Tribunal, sendo depois feitos regressar à Vida. Os machos tornam-se fêmeas, as fêmeas machos, os ricos tornam-se pobres e os pobres ricos, de acordo com os seus feitos anteriores.

Mas aqueles cujos bons actos são ultrapassados pelos maus são enviados para um terraço no lado direito do Tribunal, designado Terraço do Espelho do Pecado e cuja altura é de três metros.

O espelho tem cerca de quinze metros de circunferência e está pendurado na direcção do Leste. Encimam-no sete caracteres escritos na horizontal: “Terraço do Espelho do Pecado sobre os Homems Maus”4. Aí as almas perversas podem ver a maldade dos seus próprios corações enquanto habitavam o mundo dos vivos, observando também os perigos da morte e do inferno. É então que compreendem o provérbio:

Dez mil tael de ouro amarelo
não podem ser carregados:
Mas cada crime contará sua história
no dia do juízo.

Após terem estado no terraço e contemplado a sua maldade, as almas são expedidas para o Segundo Tribunal, onde são torturadas e mandadas para o inferno propriamente dito.

No caso de haver alguém vivendo inconscientemente sem reflectir no facto de que o Céu e a Terra engendram mortais, ou que os pais e as mães levam a criança à maturidade e, ignorantes das Quatro Obrigações5, levianamente cortam o fio da sua própria existência degolando-se, enforcando-se, envenenando-se ou afogando-se — esses suicidas, se o acto não tiver sido praticado por lealdade, piedade filial, castidade ou amizade, pelos quais na verdade iriam para o Céu mas, ao invés, o tenham praticado num trivial acesso de raiva ou por temerem as consequências de um crime que não acarretaria a morte ou ainda na esperança de causarem dano a outra criatura6 — esses suicidas, quando o último sopro deixar os seus corpos, serão escoltados a este tribunal pelos Espíritos da Passagem e da Terra. Serão colocados na Secção da Fome e da Sede e todos os dias, das sete da manhã às onze da noite, serão de novo sujeitos às provas da vida e experimentarão a dor e amargura da morte.

Decorridos setenta dias, ou um ou dois anos, conforme o caso, serão levados uma vez mais à cena do seu suicídio, embora lhes seja vedado provar as vitualhas funerárias ou lançar mão das habituais oferendas aos mortos. Então, arrepender-se-ão amargamente, incapazes de se tornarem visíveis e assustarem as pessoas7 e em vão procuram um substituto8. Pois quando os substitutos tiverem sido emboscados, os Espíritos da Passagem e da Terra reconduzirão a alma errante a este Tribunal donde será enviada ao Segundo Tribunal, onde os seus actos bons e maus serão pesados e terríveis torturas aplicadas, sendo depois mandadas para as várias zonas da profunda miséria do Inferno. Se alguém tiver tais intenções de suicídio e assim causar dano a outra criatura, mesmo que não cometa o acto e continuar a viver sem virtude, será à mesma sujeito a este castigo.

As almas que, depois de suicidadas, não permanecerem invisíveis, assustando as gentes de morte, serão capturadas por demónios de face negra e longas garras e torturadas nos vários infernos, sendo finalmente lançadas no grande abismo, permanecendo para sempre acorrentadas e impedidas de nascer de novo.

Ao chegarem ao Primeiro Tribunal, os monges taoístas ou budistas, que aceitarem dinheiro por orações e liturgias mas ignorarem as palavras e passarem por cima de frases inteiras, serão enviados para a Secção do Completar da Oração onde, numa pequena cela escura, deverão retomar as passagens omitidas e emendar o erro praticado o melhor que puderem à luz de um minúsculo pavio. Mesmo os monges bons e virtuosos terão de corrigir as omissões que acidentalmente tenham praticado.

Assim também para os homens e mulheres que, na sua devoção privada, tenham omitido ou repetido erradamente qualquer parte das escrituras sagradas, por excesso de confiança e desatenção às próprias palavras que repetem. O mesmo se aplica às monjas. Uma dispensa de Buda em relação a este castigo é oferecida no primeiro dia de cada mês quando os nomes são inscritos no registo dos virtuosos.

Oh, habitantes da terra, oferecei jejuns no primeiro dia da segunda lua, voltando-vos para Norte e fazendo votos de se absterem do Mal e fixai a mente no Bem para que possam escapar ao inferno! Os preceitos de Buda foram espalhados por todo o mundo para exortar a Humanidade ao arrependimento e à fé e para que nas últimas horas os seus espíritos possam ser escoltados por mancebos de vestes negras aos reinos da beatitude e felicidade, localizados na direcção do Oeste.

Tradução e notas Rui Cascais

 

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Notas

  • (1) O Rei Qin Guan, que preside ao Primeiro Tribunal, onde as almas chegam logo após a morte. Aí são levadas ao Terraço do Espelho do Pecado, no qual têm a oportunidade de rever detalhadamente todos os acontecimentos da sua vida. Nada escapa ao Espelho do Pecado. Nele se reflectem mesmo os mais íntimos pensamentos cuja eventual maldade assim será exposta perante Qin Guan. Finalmente, será passada uma sentença. Os verdadeiramente virtuosos — muito poucos — atravessam a Ponte Dourada que os leva directamente ao Paraíso do Oeste, para uma existência de plena realização e felicidade. Os arrependidos, portanto, os que passaram a sua vida tentando remediar o mal que causaram, poderão atravessar a Ponte Prateada, caminho para o Paraíso do Sul, um lugar confortável mas desinteressante, onde passarão um período de tempo antes de reentrarem no ciclo do renascimento. Quanto ao resto, a larga maioria da Humanidade, tem de sofrer pelos seus pecados nos restantes Tribunais que compõem o Inferno. Qin Guang nem sempre foi o Rei do Primeiro Tribunal. Este posto começou por estar nas mãos do deus da Morte, Yen Lo Wang. Contudo, o Imperador de Jade considerou-o demasiado piedoso para com as almas e despachou-o para o Quinto Tribunal. Ao lado de Qin Guang encontram-se duas estelas cuja caligrafia reza o seguinte:O Espelho do Pecado distingue maldade e virtude na mente
    A Ponte Dourada admite os que são leais
    e de natureza excelente
  • (2) A porta das regiões infernais.
  • (3) Um outro nome das regiões infernais. Significa a fonte da vida e da morte, com uma provável referência de cariz  geográfico ao Rio Amarelo.
  • (4) Em várias tradições orientais são referidos espelhos com o poder mágico de reflectir o que o seu dono desejar ver naquele momento. Esta versão chinesa apresenta um carácter mais completo porque permite prescrutar o passado.
  • (5) As Quatro Obrigações não são tema fácil pois existem diversas versões sobre o seu objecto. Segundo Herbert Gilles, são para com o Céu, para com a Terra, para com o Soberano e para com a Família. Contudo, encontrámos conteúdos diferentes noutras fontes. Assim, para alguns sutras budistas, a primeira obrigação é para com a Família, seguindo-se os Seres Sensíveis, o Soberano e o Triplo Tesouro (triratna) do Budismo. Outra versão mais tardia recupera o Céu e a Terra, no lugar dos Seres Sensíveis, e introduz Mestres e Idosos, em vez do Triplo Tesouro. Recentemente, num templo budista construído em Xangai (1995), encontrámos a seguinte série: Nação, Buda, Povo, Família. Na verdade, a explicação de Gilles segue de perto a antiga tradição confucionista.
  • (6) Existe a crença segundo a qual determinados procedimentos no momento do suicídio podem transformar o espírito num fantasma vingativo, cujo destino será atormentar determinadas pessoas. Em 2007, em Macau, um homem saltou de uma ponte vestido com um fato vermelho, terminando com a sua vida terrestre. Contudo, acredita-se que o facto de se ter suicidado vestido de vermelho o transformará num desses fantasmas vingativos. Imagina-se o terror da pessoa que se sabe causadora de seus terrenos sofrimentos.
  • (7) Um comportamento que traz grande alívio e alegria aos espíritos errantes.
  • (8) Acredita-se que se o espírito de um homem assassinado conseguir obter a morte violenta de outra pessoa poderá voltar à terra como se nada tivesse acontecido — o espírito da sua vítima cairá nos reinos inferiores sofrendo todas as misérias de uma alma penada em sua vez.

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