Em torno do Clássico dos Cantares

Antes de mais, a razão de ser do título. Por que razão traduzir 《詩經》por Clássico dos Cantares e não seguir o exemplo de excelentes sinólogos tais como Arthur Waley ou o Padre Joaquim Guerra? Pretendi ser fiel à frase proverbial chinesa que nos relata a existência de cinco clássicos e quatro livros fundantes da história do pensamento chinês na expressão: “五經四書”/”Os Cinco Clássicos e os Quatro Livros” encontrando -se o Clássico dos Cantares entre os cinco maiores e no topo em termos de antiguidade1. Há ainda quem chame aos cantares “odes”, como é o caso de Bernard Karlgren ou James Legge, mas creio que cantares é menos restritivo do que odes, já que estas últimas implicam cânticos elevados e temas sublimes, pelo menos na sua raiz grega, o que nem sempre sucede com estas canções, algumas dedicadas aos simples prazeres da vida, como encontros namoradeiros, passeios pelo campo e festejos, ou até episódios de caça e de construção.

São 305 os poemas que chegaram até nós sobre os tempos da dinastia Zhou (, 1046-. 275 a.C), em versão bilingue por James Legge, ou apenas traduzidos por Arthur Waley, (ou pelo Padre Joaquim Guerra), mas basicamente organizados por Confúcio (551- 479. A.C) e sua escola a partir do século VI a. C, como é referido pelo professor Stephen Owen no prefácio à tradução de Arthur Waley, ou até tempos mais remotos. Os poemas reflectem o ritmo da vida dos tempos da sedentária e agrícola dinastia Zhou. Cantam namoros e casamentos, guerras e batalhas, actividades agrícolas e bênçãos, festejos, sacrifícios e culto aos antepassados, músicas e dançares, hinos religiosos, lendas dinásticas; relatam actividades de engenharia e de caça ou, ainda, descrevem amizades, princípios morais e lamentações. Diz-nos Owen que “os poemas mais antigos, os hinos religiosos da família real dos Chou devem datar de 1000 a.C” (Waley, 1987: xi)

Antes dos livros filosóficos, como o Clássico das Mutações, surgiram as canções e sua organização por Confúcio e escola confucionista. A cuidadosa compilação dos cantares chineses e a influência que tiveram sobre a sociedade conduziu à defesa de que a poesia é a espinha dorsal do povo chinês, a sua mais funda vocação filosófica, ou dito de outro modo, a verdadeira religião, que não desenvolveu uma tradição épica à nascença, à maneira grega, mas antes uma vivência constante em comunhão com os antepassados, bem como a certeza de que os governantes Zhou tinham sido imbuídos de um mandato celestial (天命Tiān Mìng). Tal significava para toda a tradição posterior transformadora do Confucionismo em ideologia do império chinês, que quem não governasse para o bem do povo, perderia a sua capacidade de orientar os destinos das gentes e da sua terra.

Nota ainda Owen que falta tradição violenta e trágica ao Clássico dos Cantares. Os heróis dos Zhou são enaltecidos pelo seu valor e capacidade de governança para a Paz, como se verá adiante nos exercícios de tradução, o que bem se compreende se pensarmos que estamos perante uma dinastia agrária, enaltecendo a abundância agrícola e e repetição dos ciclos naturais, sucedendo-se numa ordem monótona e sossegada à qual a guerra seria fatal.

O Clássico dos Cantares influenciou toda a tradição chinesa, tendo sido frequentemente citado na corte para decidir e argumentar em termos políticos e filosóficos. Os versos são ainda incorporados noutros clássicos, como no das Mutações, para rematar raciocínios ou fundamentar augúrios e posições. Desde a dinastia Han (206. A.C- 220) foi tornado parte do currículo que virá mais tarde a consolidar-se nos exames imperais definitivamente formatados na dinastia Tang (618-906).

O Clássico dos Cantares inspirará dinastias, governantes e letrados, enfim todos os homens de bem, por isso entre as canções se descobrirão umas particularmente votadas à formação do carácter e da moralidade, as chamadas “peças morais” na classificação de Arthur Waley. Nas “Lamentações” denuncia-se em forma de queixa figurada a má governação de todos aqueles que não seguem os princípios morais, são por isso uma espécie de negativo das peças dedicadas à moralidade, porque vão cantando aquilo que aqueles que mandam não deveriam fazer, por conduzirem a desordens e injustiças.

Em muitos dos cantares são os grandes senhores e os reis, especialmente os reis exemplares da desta dinastia, o Rei Wen (文王, 1152-1056 a. C) ou o Rei Wu (武王, 1076-1043 a. C), entre outros, os mais enaltecidos, por deterem o Mandato Celestial (天命Tiān Mìng) que lhes permite governar em estreita concordância com o Céu, tendo por isso derrubado uma dinastia, a Shang ou Yin (商、殷朝c1600-1046 a.C), estabelecido e alargado a sua própria na sequência do Duque Tan Fu (亶父Dǎn Fǔ), conhecido por Zhou Tai Wang (周太王Zhōu Tài wáng).

Estes reis exemplares tiveram o Céu do seu lado, porque eram eticamente irrepreensíveis, permitindo-lhe a sua conduta afastar os decadentes governantes Shang que, na fase final do seu governo, não se importavam com a população, sendo cruéis e entregando-se a prazeres desenfreados, onde se distinguiam, como somos informados em algumas das canções, por ostentarem uma conduta violenta, acompanhada por um excessivo consumo de vinho. Já os fundadores da dinastia Zhou faziam guerra quando era absolutamente necessário e em vista do estabelecimento da paz e da harmonia, de modo a que a povo se sentisse feliz, guiando-se por virtudes ético-morais, como a bondade e a justiça, mas acima de tudo a bondade, tal como nos é dito nas peças morais e em consonância com a reverência e respeito aos antepassados, que por isso protegiam a dinastia e seus vários clãs.

Posto este quadro paradisíaco, influenciado e enquadrado pela filosofia confucionista, fica-se com curiosidade de saber o que pensava a população sobre tão excelsos governantes. Percebe-se então que houve um tempo em que a dinastia Zhou se pautava pelos melhores princípios morais, sendo esse reportado aos seus fundadores, mas que mais recentemente, próximo de um qualquer presente impreciso, a situação começa a mudar e os reis e senhores actuais já não são tão modelares como seria aconselhável para manter a protecção celestial sobre a descendência humana.

Para analisar o que o comum dos mortais da época já de crise sentia, recorre-se às Lamentações. Numa delas, a 288 na numeração de Arthur Waley, Segunda Parte do Livro VII da Década do Pássaro da Amoreira (桑扈之什二之七), 0de X, segundo a classificação proposta por James Legge, numa interpretação possível, o governante é figurado nas duas primeiras estrofes como uma árvore possante, um chorão, do qual se é aconselhado a manter as devidas distâncias, apesar da árvore ser luxuriante e muito convidativa, a própria vida de quem vai procurar abrigo corre risco, já que ele também é na terceira estrofe como um pássaro que voa muito alto, mas nada conhece sobre o coração das pessoas, pelo que qualquer admoestação ou conselho pode conduzir à morte de quem o profere. Fique-se com a terceira estrofe de que abaixo apresento tradução:

菀柳
有鳥高飛
亦傳于天
彼人之心
于何其臻
曷予靖之
居以凶矜
(Legge, 1994: 408)

Chorão
O pássaro que se ergue
Rumo ao Céu
Como alcança
O coração da gente?
Se interferir,
Será para ferir.

A par do governante, há ainda os outros que vivem abaixo ou na sua sombra, sendo igualmente temíveis, metamorfoseados alegoricamente em varejeiras, no poema 287 na classificação de Arthur Waley e do referido livro VII, Ode V, na catalogação de James Legge. Aqui são as moscas azuis, como se denominam em chinês, que voltejam em torno do soberano, criando um cenário de intrigas muito desfavorável a quem, subentende-se, se mantém justo, correto, firme e de comportamento moral irrepreensível, seja oficial ou população, todos sofrem com a conduta imprópria destas moscas que espalham calamidades. Leia-se a segunda estrofe desta Lamentação:

青蝇
營營青蠅
止于棘
讒人罔極
交亂四國

Varejeiras
Bzzz varejeiras
Lançam suas ferroadas,
Sem limites os caluniadores,
Espalham a confusão por toda a nação.

Há ainda quem consiga escapar às situações mais difíceis, como os coelhos previdentes e cautelosos, e quem seja sempre caçado como um faisão. Há também, segundo os cantores, uns ratos gigantes, talvez umas ratazanas, que segundo os queixosos açambarcam tudo para eles, deixando a população senão a morrer de fome, pelo menos a apertar muito o cinto, o que é absolutamente o contrário do que faziam os reis modelares fundadores da dinastia Zhou, que criaram condições de prosperidade para todos, evitando a sobrecarga de contribuições e impostos, ou a imposição de trabalhos tão esforçados que mais pareciam forçados. Vejamos então a Lamentação à qual Arthur Waley atribui o número 276 e que James Legge classifica como a Ode VII da primeira parte do Livro IX, As Odes de Wei, relativas ao antigo reino de Wei subjugado pelos Zhou quando do derrube da dinastia Shang, cujos senhores parasitavam aqueles que para eles trabalhavam e se sentiam, por isso, escravizados. Leia-se a primeira estrofe, que bem resume as restantes:

碩鼠
碩鼠
碩鼠無食
我黍三歲
貫女莫我
肯顧逝將去女
適彼樂土
樂土樂土
爰得我所

Ratazanas
Ratazanas, ratazanas,
Parem de comer o nosso milhete
Forem três anos de escravidão
Da mim e da família
Sem qualquer consideração,
Vamos deixar-te e seguir,
Rumo a Terra de Alegria
Terra de Alegria, Terra de Alegria,
Da que farei o nosso lar.

E depois desta queixa exemplar que conduziu tantos a migrarem em busca de melhores condições de vida, conclui-se com uma canção, já fora do quadro das Lamentações, num novo contexto, agora bélico, mas que surge como uma queixa, apresentada ao ministro da defesa de então, o Ministro da Guerra, para que pondere a possibilidade se se avançar para a paz, preservando o melhor espírito da dinastia Zhou. Nesta, nos seus tempos áureos, só se pelejava por força maior, já que os valores defendidos eram os da Paz contra a violência e da harmonia face a convulsões políticas e sociais. O poema com que se termina o exercício de tradução será apresentado na íntegra, sendo o 127 da ordem de Arthur Waley, que corresponde à Ode I da segunda parte do Livro IV, Década de Qi Fu ( 父之什二之四), intitulado “祈父”, constando de um rogo ou queixa da guarda real pelo serviço que lhes foi imposto pelo Ministro da Guerra do Rei Zhou Xuan (周宣王) , quando no século VIII a.C já a crise se instalara e o exército começava a sofrer grandes derrotas, por exemplo a de 788 a.C, imposta pelas tribos do Norte, chamando então o monarca a sua guarda para combate, o que estava fora do âmbito das características e atribuições desta:

祈父
祈父
予王之爪牙
胡轉予于恤
靡所止居
祈父
予王之爪士
胡轉予于恤
靡所底止
祈父
亶不聪
胡轉予于恤
有母之户饔

Ministro da Guerra
Ministro da Guerra,
Sois as garras e as presas do rei,
Andamos à deriva sem lei,
Nem lugar para morar.
Ministro da Guerra,
Sois as garras militares do rei,
Andamos à deriva sem lei,
Nem poiso ou termo onde parar.
Ministro da Guerra,
Que falta de discernimento,
Andamos à deriva sem lei,
Enquanto mães e falecidos
aguardam mantimento.

Ontem, e com Clássico do Cantares recuámos milhares de anos, bem como hoje, pense-se no aqui e agora, nas queixas dos soldados que em cenários bélicos se mantêm, pelo que mesmo quando se travam batalhas em nome de nobres ideais ou para defesa de bens de raiz, como sejam as gentes e o nosso país, não é bom prolongar indefinidamente as situações de conflito, já que acarretam muita dor e sofrimento para aqueles que fazem ou sofrem as pelejas, sendo este, entre tantos outros, um dos sábios ensinamentos a retirar daquele a que alguns sinólogos denominaram o Livro das Odes, talvez pela nobreza de muitas das mensagens encontradas em certos poemas. Os reis enaltecidos e mais cantados na obra foram aqueles que conseguiram conduzir as suas populações até paisagens pacíficas, onde podiam viver e prosperar na sua terra.

 

 

___

Bibliografia

  • Guerra, Joaquim, S.J. (Trad.) 1990. O Livro dos Cantares. Toronto, Hong Kong: Instituto Cultural de Macau, Aidan Publicities & Printing.
  • Legge, James (Org. e trad.). 1994. The Chinese Classics. 5 vols. The She King. Vol. 4. Taipei: SMC Publishing Inc.
  • Waley, Arthur (Trad.) 1987.The Book of Songs. The Ancient Chinese Classic of Poetry. Novo prefácio por Stephen Owen. New York: Grove Weidenfeld.

Nota

  • 1 Os clássicos ou livros canónicos são fundamentais na tradição confucionista. A etimologia deste sinograma mostra-nos como os livros eram feitos, o instrumento de que dependiam e o modo como eram cozidos com linhas. Há quatro livros fundamentais e cinco (ou seis clássicos) na tradição confucionista. Os quatro livros são: os Analectos (《論語》Lún Yǔ), o Livro de Mâncio (《孟子》Mèngzǐ), O Grande Estudo (《大學》Dà Xué) e a Doutrina do Meio (《中庸》Zhōng Yōng).
  • Os cinco clássicos são: Clássico dos Cantares (《詩經》), Clássico das Mutações (《易經》Yì Jīng); História (《史記》Shǐ Jì), Ritos (《禮記》), Anais da Primavera e do Outono (《春秋》Chūn Qiū) e talvez um sexto, a Música (《樂經》Yuè Jīng), desaparecido. Posteriormente a tradição neoconfucionista acrescentará à bibliografia fundamental da escola o Clássico da Filialidade (《孝經》Xiào Jīng).

More From Author