Conceitos do Pensamento chinês – (ren) Benevolência, Humanidade

O caracter é composto pelo radical(homem, que também se pronuncia ren) e o caracter er (dois), explicitando que ab initio o homem se torna humano pelas relações com outros seres humanos. Ora esta fundamentação relacional da existência faz primordialmente do homem um ser moral ou ser-para-a-moral, assim instituída como elemento fundador e constitutivo de qualquer ser humano. Para uma subjectividade, para um indivíduo, ren seria um ponto (estado/processo) de plena realização moral. Mas ren situa-se aquém e além do sujeito que como produtor de ren só existe relacionalmente, o que dá uma abrangência global (social e metafísica?) ao conceito. Confúcio nunca define inteiramente e de forma lapidar em que consiste ren, como se recusasse estreitar o seu significado, mas reconhece-lhe um valor de tal modo alto que ninguém o possuiria totalmente, a não ser alguns sábios da antiguidade. (Cheng, Anne;1997,69). Ao longo dos Analectos, o Mestre explica-se:

Ren é amar os outros (…) “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti (…)

“Atingir o ren ou, mais ainda, a sabedoria suprema, não o poderia pretender. Tudo o que posso afirmar é que para ele tende todo o meu coração. (…)

“O que é ren, ao estabelecer-se, estabelece os outros; ao ter sucesso, proporciona sucesso aos outros (…)

“Forma em ti a ideia do que podes fazer pelos outros — eis o que te colocará no caminho do ren.”, etc..

Para Mêncio, “todos os homens têm um coração que não suporta o sofrimento dos outros. (…) Um coração sem compaixão não é humano”, acrescentando que essa compaixão é o princípio de ren.

Mêncio: “Um coração compassivo é o princípio de ren; um coração com o sentido de vergonha e desgosto é o princípio de yi; um coração humilde e complacente é o princípio de li; um coração com o sentido do certo e do errado é o princípio de zhi. Os homens têm estes quatro princípios tal como têm quatro membros. Se um homem disser que tem estes quatro princípios mas não os consegue desenvolver, fará mal a si mesmo. (…) Se a sua realização for completa será suficiente para todos proteger entre os Quatro Mares, se o não fôr, não será sequer suficiente para servir os próprios pais.”

Xunzi: “Ren é amor, por isso é sobre relações. Yi é ordem, por isso é sobre a conduta; Li é moderação, por isso é sobre realização. ren é a aldeia e yi é o portão. Se ren não é a aldeia onde habitas, então não há ren. Se yi não é o portão que usas, então não há yi. Só quando a pessoa exemplar* habita o ren através de yi, é que subsequentemente existe ren; só quando pratica yi através de li, existe subsequentemente yi. Ao regular  Li, regressa à raiz e completa os ramos e subsequentemente existe Li. Quando os três estão interligados, subsequentemente existe a Via.”

Zhu Xi: “Quando ren flui e opera, em qualquer tempo e onde quer que seja, yi será realizado e Li e zhi serão realizados.” Zhu Xi acrescenta: “Tomemos o exemplo das sementes de grão ou dos caroços dos pêssegos e dos alperces. Quando semeados, crescem. Não são coisas mortas. Por isso são chamados ren. Tal mostra que ren implica o espírito da vida. Ren é espontâneo, shu (a cortesia) é culta. Ren é natural, shu implica esforço. Ren não calcula e nada tem em vista, shu é calculista e tem um objectivo em vista. Ren é o princípio do amor e a imparcialidade é o princípio de ren. Por isso, se houver imparcialidade, haverá ren e se houver ren haverá amor.”

Ren, finalmente, implica o reconhecimento de um elevado grau de dependência dos homens entre si.

Para a tradução portuguesa, optámos por usar as palavras humanidade, por vezes, mais frequentemente benevolência (do latim, benevolens), que significa à letra “querer bem”, que nos parece, em termos semânticos, suficientemente próxima de ren.

 


*Pessoa exemplar (君子 junzi)

À letra lê-se: “filho do senhor”. Normalmente, tem sido traduzido por “homem superior” ou “homem nobre”. A re-significação confuciana do termo entende-se quando pensamos no carácter educativo deste pensamento, tornando lógico que seja direcionado a alguém que assumirá no futuro responsabilidades governativas. No entanto, o conceito ultrapassa a mera esfera do político e, porque é no cultivo de si que se atinge a alta excelência, onde a benevolência é regra da acção, parece-nos ajustado traduzir por “pessoa exemplar”, dando assim uma multiplicidade de sentidos à hierarquia. O junzi será alguém cuja produção moral o torna num exemplo a seguir, operação fundamental da moral social e política confucionista. De sublinhar que Confúcio realiza uma deslocação no conceito de um sentido filiativo para um sentido ético e moral. Finalmente, pouco lhe importa a origem social deste homem mas sim o modo como, através do cultivo de si, recupera a sua natureza original e age virtuosamente no seu tempo. Estamos assim perante dois aspectos: um interno e um externo, embora a distinção entre ambos seja fluida. Junzi surge, geralmente, por oposição a xiaoren 小人 (pessoa menor). Segundo Anne Cheng, junzi “designa nos textos antigos todo o membro da alta nobreza mas, (…) na linguagem de Confúcio, ganha um sentido novo, a ‘qualidade’ do homem nobre não é já exclusivamente determinada pelo seu nascimento, mas depende também e sobretudo do seu valor como ser humano realizado. A elevação já não é referida ao nível social mas ao valor moral.” (Cheng, Anne, 1997, 67) 

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