Erosofia na antiga poesia chinesa
O poeta francês Charles Baudelaire escreveu: “A estranheza é um ingrediente necessário da beleza”. Ora a estranheza é o elemento compulsivo da poética chinesa. A estranheza, sob a forma de “primavera”, significa amor sentimental entre um homem e uma mulher. A sua origem remonta ao Shijing, o Livro dos Cantares, a mais antiga colecção de poesia chinesa. “Uma rapariga primaveril” significa uma rapariga apaixonada. “Alegria primaveril” significa desejo. “Vaca primaveril” significa chulo. Todos os afrodisíacos estão associados à primavera e Desenhos do Palácio da Primavera é um famoso género chinês dedicado a pequenos quadros pornográficos.
É indiscutível que a língua chinesa é uma língua poética. Lin Yutang, um conhecido académico chinês, disse uma vez que a falta de sentimentos religiosos do povo chinês podia ser compensada pela poesia, porque a poesia proporcionava ao povo um sentimento espiritual e curava os seus traumas.
De facto, todos os burocratas e académicos famosos da China antiga eram poetas ou, pelo menos, aspirantes a poetas, e a literatura chinesa considerou a poesia como a forma mais elevada e a coroa da literatura. Escrever poemas tinha um objectivo claro. Era mais do que a “criação de beleza”, mais do que lazer e até mais do que uma busca artística. Procurava-se aquilo a que chamo “erosofia”, a sabedoria da “primavera”, a “produção de coisas sagradas”, que, segundo George Bataille, “não pode ser revelada sem poesia”.
O próprio presidente Mao Zedong era um poeta e calígrafo ardente (um par inseparável na tradição estética chinesa) e muitos dos seus poemas são subtil ou tentadoramente sexuais, mas não gráficos. Com Mao, dificilmente se pode argumentar que a poesia e a política não têm muito em comum: ambas estão preocupadas com a “produção de coisas sagradas”.
A forma original da poesia deveria ser a canção, mais precisamente a canção de amor. O amor é eterno e talvez as canções de amor o sejam ainda mais. Bob Dylan ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2016, o que não surpreende do ponto de vista chinês.
O Livro dos Cantares compreende 305 obras que datam dos séculos XI a VII a.C., muitas das quais se crê terem sido escritas por mulheres ou na perspectiva de uma personagem feminina. Originalmente, o clássico continha 3000 canções.
Confúcio, que o compilou oficialmente, cortou 90 por cento e seleccionou pessoalmente cerca de 300 canções para serem estudadas e memorizadas pelos estudiosos na China e nos países vizinhos ao longo de dois milénios.
“300” é, portanto, também a versão oficialmente aprovada de “boa poesia”, que Confúcio considerou mais adequada para cultivar os ritos confucionistas usados para iluminar o povo.
A poesia é um protesto contra o esquecimento. A poesia está cheia de sentimentos que intensificam a consciência.
Termino com o primeiro cântico do Livro dos Cantares, que data de há quase três milénios.
关关雎鸠,在河之洲。
窈窕淑女,君子好逑。
参差荇菜,左右流之。
窈窕淑女,寤寐求之。
求之不得,寤寐思服。
悠哉悠哉,辗转反侧。
参差荇菜,左右采之。
窈窕淑女,琴瑟友之。
参差荇菜,左右芼之。
窈窕淑女,钟鼓乐之。
Um par de rolas
Num ilhéu a meio do rio
um par de rolas chilreia,
e por tão bela donzela
jovem mancebo anseia.
Nas águas que vão e vêm
agriões vão despontando,
e por tão bela donzela
o jovem vai suspirando.
É tão forte o seu desejo,
que o sono não o visita,
sempre, sempre, a pensar nela
dum lado ao outro se agita.
Agriões por toda a parte
crescem fáceis de apanhar,
a pura e gentil donzela
quer harmonia no lar.
Agriões por toda a mesa,
tenros saem da panela,
tambores e sinos te acolhem
ó pura e gentil donzela!
Tradução Carlos Morais José
