Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), grande autoridade sinológica na história cultural de Macau, afirma no capítulo “Os Diversos Nomes de Macau” em Macau: Factos e Lendas, ao explorar uma série de possibilidades etimológicas: “É verdade que todos estes dados não são de grande confiança e a sua publicação destina-se somente a satisfazer a curiosidade.” (1994, 54)
Por estas palavras se pode compreender o verdadeiro fascínio do exercício etimológico, já que, sem quaisquer certezas, se avança por um caminho filosófico solidamente ancorado na imaginação, que com o auxílio da geografia e do sentimento vai desenhando imagens, ou melhor, paisagens construídas num diálogo entre o exterior e o interior.
Por entre as leituras hermenêuticas radicadas na etimologia, sabe-se que, nas Crónicas da Dinastia Song do Norte (《北宋典冊》Pâk Song Tin Tch’ák1), a terra surge batizada como “Marinhas da Chupa de Ouro”, sendo a chupa uma vasilha de bambu destinada a medir o arroz, que recorda a configuração da região ao norte da Ilha Verde: “金斗鹽場” (Kâm Tâu Im Tch´ông).
E, de facto, uma leitura atenta da etimologia de Macau “澳門Ou Mun”, nome traduzido por “Portas da Baía”, assume uma tonalidade de arrozal, ou antes de marinha, de chupa de arroz, adequada ao sul duma região conhecida por ser o campo de arroz da China.
Ainda antes da dinastia Ming, segundo Gonzaga Gomes, circulavam outros nomes poéticos para a terra em estreita conexão ora com o mar, ora com o campo, ou ainda com a geomancia.
A Península de Macau, perspectivada como junção da Taipa e da Baía da Praia Grande, tanto podia ser um “Espelho do Mar” (海鏡 Hoi Kèang), como um “Espelho do Lago” (鏡湖 Kèang U), ou um “Espelho de Ostras” (蠔鏡 Hou Kèang), ou um “Espelho de Fosso” (濠镜 Hou Kèang), ou ainda um “Rio do Fosso” (濠江Hou gong ).
Todas estas leituras marinhas anteriores à chegada dos portugueses a Macau remetem para uma paisagem reflectida, que recorda o Rio das Pérolas na prata brilhante dos seus melhores dias de primavera.
Já a leitura caligráfica dos geomantes nomeia a terra no seu interior, valorizando a configuração de lótus que descobre um pouco por toda a parte, até no istmo das Portas do Cerco (連花茎 Lin Fá Káng). Para os geomantes, Macau é o espaço a que chamam “Ilha dos Nenúfares” (連花岛 Lin Fá Tou), uma irrupção do sagrado, que vem a justificar, num estranho cruzamento espiritual, a terminologia ocidental – a “Cidade do Nome de Deus” (澳門天主聖名之城 Aomen tianzhu shengming zhi cheng), referida em Charles Boxer, entre outros sinólogos, incluindo Gonzaga Gomes.
Daqui se mergulha em plena dinastia Ming, lembrando a chegada dos portugueses a Macau, “Península dos Nenúfares” ou “Cidade do Nome de Deus”, como surge epitetada num apontamento do Padre Gil da Matta de 1592, citado por Boxer em O Senado da Câmara de Macau (1997,18).
A verdade é que esta terra do Santo Nome de Deus vai ao encontro de uma outra interpretação etimológica que ainda hoje é aceite por muitos: quem sabe Macau não fora baptizada como a “Baía de A-Má” (亞媽港A-Má Kóng), divindade protectora de todos os marítimos, de pescadores a marinheiros, passando por comerciantes, entre outra gente do mar? Esta leitura surge mais recentemente em Macau´s Historical Witnesses 見證澳門, de Christopher Chu &Pui Man Hoi (2023, 32) a Cidade do Nome de A-Má (媽祖名城 Mazu míngchéng ), à qual não pode faltar o epíteto concedido por D. João IV após a restauração :“não há outra mais leal” (無比忠貞 Wúbi zhongzhen) (Ibidem).
É de notar a tradução espontânea apresentada por Christopher Chu e Pui Man Hoi. Assim quando se referem à Cidade do Nome de Deus, a tradução é literalmente em chinês “Cidade do Nome de A-Má” (媽祖名城); mas já para a tradução da inscrição que é colocada no Leal Senado se oferece uma outra divindade, o Deus cristão “Cidade do Nome de Deus, não há outra mais Leal” (澳門天主聖名之城, 沒有比這更忠貞的Àomén tiānzhǔ shèngmíng zhī chéng, méiyǒu bǐ zhè gèng zhōngzhēn de). Pelo que nos é permitido escolher dois caminhos, ou uma tradução chinesa para a Cidade do Nome de Deus, relativa a A-Má, onde sobressai a divindade feminina chinesa ou uma outra fiel à tradição cristã ocidental, na qual se patenteia a divindade masculina cristã, Deus (天主Tiānzhǔ).
A cidade passou a gozar do título e da inscrição “não há outra mais leal” (沒有比這更忠貞的Méiyǒu bǐ zhè gèng zhōngzhēn de) por ordem do governador João de Sousa Pereira em 1654, contudo o Senado (議事會Yìshìhuì)2 apenas obteria o título oficial de Leal Senado (忠貞議會Zhōngzhēn yìhuì) na sequência da sua atribuição pelo príncipe regente de Portugal, D. João VI, em 1810, na altura exilado no Rio de Janeiro, em recompensa, como recorda Beatriz Basto da Silva na Cronologia da História de Macau (Vol IV), dos esforços envidados para repelir os piratas e pelos socorros prestados ao Estado da Índia em diversas ocasiões.
De um modo mais abrangente, e na sua dupla vertente, a Cidade do (Santo)3 Nome de Deus é uma etimologia muito forte e plausível, que tem a vantagem de se afirmar pela sua vocação universalizante, já que entrelaça as leituras chinesa e portuguesa dum modo feliz e quase mágico, ali num espaço sagrado onde tudo se encontra sem que se perceba como nem porquê, evitando inclusive grandes calamidades, como ferozes tufões.
Além desta interpretação milagrosa, o nome de Macau, lido pela sua geografia física como “Portas da Baía”, também parece assentar geograficamente bem, uma vez que retrata a posição da baía entre as portas das Colinas da Guia (東望洋山Dōngwàngyáng shān) e da Penha (西望洋山Xīwàngyáng shān), sendo uma leitura etimológica frequente nos dias de hoje.
Não podem ser excluídos outros nomes com que Macau foi agraciado ao longo dos tempos. Por exemplo, no antigo Grande Dicionário Toponímico da China as portas acima referidas recebem o nome de terraços, elas são o Terraço Meridional (南臺Nám T´ói) e o Terraço Setentrional (北臺Pâk Tói).
Por fim, e já no reino da pura adivinhação, onde se supõem cabalas e corruptelas, o nome de Macau surge, talvez por uma má interpretação dos portugueses, derivado de “Coito do Cavalo” (馬蛟Má Káu), uma adulteração de (Má Kók 馬閣), ou seja, Barra.
Creio que intuitivamente os portugueses escolheram por entre todas as leituras etimológicas possíveis para o nome de Macau, aquela que melhor lhes convinha, atendendo à mentalidade da época e à vocação proselitista dos missionários que então pregavam pelos mares do Oriente. E o mais interessante é que nunca foi desmentida nem pelas autoridades portuguesas nem pelas chinesas.
_____
Bibliografia
- Aresta, António, Celina Veiga de Oliveira. (2009) Macau: Uma História Cultural. Mem Martins: Editorial Inquérito, Fundação Jorge Álvares.
- Boxer, Charles Ralph. 1997. O Senado da Câmara de Macau. 澳門議事局. The Municipal Council of Macao. Introdução. António Aresta e Celina Veiga de Oliveira. Macau: Leal Senado de Macau.
- Chu, Christopher, Pui Man Hoi. (2023). Macau’s Historical Witnesses. 見證澳門.澳門:澳門人出版有限公司.
- Gomes, Luís Gonzaga. 1994. Macau: Factos e Lendas. Macau: Instituto Cultural de Macau.
Notas
- 1 Este e os registos seguintes do nome de Macau encontram-se no dialeto de Cantão, por terem sido proporcionados por Luís Gonzaga Gomes, ilustre sinólogo macaense que os transmitiu na pronúncia local em Macau, Factos e Lendas, os restantes nomes e epítetos serão fornecidos em Pinyin, já que não têm indicação por parte dos autores de registo em Cantonense.
- 2 O Leal Senado, ou melhor, a então Câmara Municipal de Macau foi fundada em 1583, sendo constituído por uma assembleia de moradores que escolhiam seis membros com direito a voto, à qual pertenciam 2 juízes ordinários, 3 vereadores, 1 procurador da cidade, além de um secretário da câmara, eleitos por um período de três anos, sendo por isso considerada a primeira instituição democrática daquele oriente chinês, como nos é explicado por António Aresta e Celina Veiga de Oliveira em Macau: Uma História Cultural (2009, 58). A origem do senado data, como especifica Charles Boxer (1997) em o Senado da Câmara de Macau da época em que D. Francisco de Mascarenhas era vice-rei da Índia (1581-1584).
- 3 O primeiro epíteto do século XVII para Macau não refere “Santo”, apenas “Cidade do Nome de Deus”, sendo “Santo” um adjetivo que surge, de acordo com a informação obtida da historiadora Celina Veiga de Oliveira, apenas no século XIX, por influência da mentalidade da época.
