O Mestre disse: “Estudar para aplicar na altura certa aquilo que se aprendeu – não será isto uma fonte de prazer? Ter amigos que chegam de partes distantes – não será isto uma fonte de alegria? Suportar sem acrimónia não ser reconhecido pelos outros – não será isto a marca de uma pessoa exemplar (君子 junzi)?”
Analectos I.1.
Eis a sentença que abre os Analectos e assim dá início a uma longa exposição de ideias, preceitos, comportamentos e situações. Depois de lidos o Estudo Maior (Da Xue) e a Prática do Meio (Zhong Yong), os Analectos quase nos surgem como um manual de acção in loco, isto é, o que deve guiar a nossa acção e o que se deve fazer em determinada situação, sendo que cada momento, cada evento, cada acção suscitam uma específica solução.
Mas não é por acaso que o primeiro capítulo dos “Analectos” surge subordinado ao tema “Estudar”: Confúcio encara a educação dos indivíduos como o meio fundamental para atingir a reforma da sociedade e assim se construir um modelo ideal de relações humanas, na qual o indivíduo possa desenvolver ao limite as suas naturais capacidades.
Não se trata, no entanto, de uma mera aquisição de conhecimentos, algo que o Mestre considera insuficiente. O mais importante será saber quando e como aplicar esses conhecimentos. E se é na prática que o conhecimento se revela precioso, a sua eficácia só adquirirá valor se for balizado por uma ética cuja objectivo é dotar cada sujeito da capacidade de agir com benevolência (仁ren), sustentada pela rectidão (義 yi) e pelo cumprimento de pressupostos rituais (禮 li) modelados nos valores e hierarquias da filialidade (孝 xiao).
A rectificação da natureza moral (性 xing) de cada sujeito passa então pelo cultivo de si (修身 xiushen), por uma educação que permitirá expurgar de cada coração (心 xin) os desejos egoístas e participar plenamente na construção de uma sociedade onde, quando realizada, predominará a harmonia.
Mas o que é esta natureza moral? Natureza (性 xing) significa fundamentalmente “natureza humana”, apesar de Zhu Xi a generalizar a todos os seres. O Céu confere ao homem a sua natureza que necessita, no entanto, de ser regulada através da educação porque ao longo da vida ela é, geralmente, desvirtuada. Portanto, a natureza humana é entendida como tendo um carácter transcendental (não transcendente), na medida em que é decorrente do Céu. De notar ainda que existe uma homologia (uma mesma estrutura) entre Céu e Natureza Humana, o que justificará o desenvolvimento ao longo de todo o pensamento chinês (nomeadamente, entre os letrados) de uma “ontologia” moral.
A moral encontra aqui um princípio natural e universal, que é inalterável, coerente e espontâneo. O que poderia, em termos de filosofia ocidental, ser considerado unicamente transcendental, absorve aqui a noção de imanência. A moral não vai contra a natureza humana; pelo contrário, ela é um “estado natural” do homem, sendo pervertida pelos acidentes da existência e pelo egoísmo de cada indivíduo. A natureza humana (moral) é dada, mas não realizada. Para a realizar, há que recorrer à educação/cultivo de si.
Contudo, atrevo-me a detectar aqui um aspecto pouco sublinhado: é que este primeiro terceto de afirmações imediatamente se aflora o perfume hedonista do confucionismo, a saber, a importância da satisfação e do prazer que resulta da prática informada pelo estudo; da socialização com pessoas que partilham a mesma Via, trocando experiências e informação; e de, interiormente, para si mesmo, não depender do reconhecimento alheio. Esta abertura assume o gesto de uma promessa de felicidade, a definição que Stendhal nos proporciona de Beleza (em Do Amor).
Assim, a existência de uma pessoa exemplar (junzi) será pautada por sensações de satisfação e prazer. Estas advêm, em primeiro lugar, da realização prática dos seus estudos, não bastando a aquisição de conhecimentos mas, sobretudo, saber quando os aplicar com eficácia.
Em segundo lugar, a fruição da companhia de amigos, provavelmente gente que chegava de sítios distantes para o seguirem como discípulos. O caracter 朋(peng) significa, etimologicamente desde o tempo de Confúcio, alunos de um mesmo mestre, seguidores de uma Via ou membros de uma confraria. Mas esta interpretação é contrariada por alguns comentadores que vêm na expressão de Confúcio uma simples referência a “amigos” sem que estes tenham forçosamente de se sentar à sombra das suas ideias.
Em terceiro lugar, o Mestre refere-se a movimentos do coração e ao facto de uma pessoa exemplar não albergar sentimentos negativos por não ter reconhecimento social. A pessoa exemplar (君子junzi) não sentirá ódio, nem inveja, nem ciúme ou sequer desapontamento. Este mergulho na interioridade e a presumível construção de uma harmonia interna serão o culminar do cultivo de si (修身 xiushen) e da posterior prática da benevolência (仁 ren).
Mas o que é um junzi, que traduzimos preferencialmente por “pessoa exemplar”? À letra lê-se: “filho do senhor”. Normalmente, tem sido traduzido por “homem superior”, “homem nobre” ou mesmo “cavalheiro” (a partir do inglês gentleman).
A re-significação confuciana do termo entende-se quando pensamos no carácter educativo deste pensamento, tornando lógico que seja direcionado a alguém que assumirá no futuro responsabilidades governativas. No entanto, o conceito ultrapassa a mera esfera do político e, porque é no cultivo de si que se atinge a alta excelência, onde a benevolência é regra da acção, parece-nos ajustado traduzir por “pessoa exemplar”, dando assim uma multiplicidade de sentidos à hierarquia.
O junzi será alguém cuja produção moral o torna num exemplo a seguir, operação fundamental da moral social e política confucionista. De sublinhar que Confúcio realiza uma deslocação no conceito de um sentido filiativo para um sentido ético e moral. Finalmente, pouco lhe importa a origem social deste homem mas sim o modo como, através do cultivo de si, recupera a sua natureza original e age virtuosamente no seu tempo. Estamos assim perante dois aspectos: um interno e um externo, embora a distinção entre ambos seja fluida. Junzi surge, geralmente, por oposição a xiaoren 小人 (pessoa menor). Segundo Anne Cheng, junzi “designa nos textos antigos todo o membro da alta nobreza mas, (…) na linguagem de Confúcio, ganha um sentido novo, a ‘qualidade’ do homem nobre não é já exclusivamente determinada pelo seu nascimento, mas depende também e sobretudo do seu valor como ser humano realizado. A elevação já não é referida ao nível social mas ao valor moral.” (Cheng, Anne, 1997, 67)
Voltando à sentença que abre os Analectos: pragmatismo e hedonismo (a boa vida), dois vectores que atravessarão transversalmente o pensamento chinês, não apenas como motivos ou efemeridades temporais, mas como alicerces, conceitos e práticas fundacionais.
Também no futuro, 1500 anos depois de Confúcio, os filósofos debateriam “o que estudar” preferencialmente, ou seja, afinal em que consiste a “investigação das coisas”, se devemos prestar atenção ao que nos é exterior (ou se esse exterior existe ou deve ser considerado em si) ou se, pelo contrário, nos devemos abismar na nossa rectificação interna, ou ainda se existe uma via intermédia entre estas duas posições.
