É muito clara em Confúcio a primazia dada a um enquadramento moral na aquisição de conhecimentos. Estudar não deve ser apenas entendido como uma soma de saberes, de conhecimentos sobre os diversos aspectos da existência, práticos e teóricos. Toda a acção do ser humano produz moral, portanto todo o seu esforço deve ser sempre dirigido ao aperfeiçoamento interior e à procura de um comportamento exemplar.
A aquisição de conhecimentos não deve, por isso, ser deixada ao acaso ou à mera vontade do estudante. Ela tem de ser enquadrada num modelo moral, que define os objectivos dos estudos. Em termos de comportamento social, os objectivos estão claramente definidos, na medida em que decorrem de ritos. É no interior de cada um, na sua individualidade mais abissal, que reside o mistério de uma identidade que tem de ser “reconstruída”, dentro dos parâmetros definidos pela ética confucionista. Então, é no modo (a sua identidade, derivada também das qualidades do seu qi) que cada um encontra de chegar mais ou menos perto de percorrer a Via do Meio, que reside, digamos que, o “estilo” individual.
Mas o que convém sublinhar é a alteração que, a partir de Confúcio, se processa no próprio conceito de estudar 學 (xue). De facto, em língua portuguesa a palavra “estudar” não abrange o significado que os Analectos lhe dão, pois não se trata apenas de uma mera aquisição de conhecimentos nem da disposição interior de um sujeito que se compraz com meros acrescentos de saberes e de sentidos.
“Estudar”, o caracter 學 (xue), na sua origem, representaria um salão de tiro ao arco, onde a aristocracia Zhou estudava e aprendia essa arte. Daí terá adquirido um sentido mais geral, passando a designar todo o tipo de estudo ou educação, eivado de um conteúdo cerimonial e religioso.
O confucionismo, mantendo o seu sentido de aquisição de conhecimentos, elevou 學 (xue) à dignidade de um aperfeiçoamento moral e, ao mesmo tempo, de uma realização pessoal, na medida em que o define como o caminho para o cultivo de si e consequente recuperação da natureza original e única de cada indivíduo.
Neste sentido, estudar 學 (xue) adquire, na sua realização mais extrema, um sentido reflexivo, que implica uma desapiedada auto-análise e uma construção identitária original, se quisermos entender nesse sentido a “recuperação da natureza original que o Céu nos dá”. Em II.15. o Mestre diz: “Estudar sem reflectir é inútil; reflectir sem estudar é pernicioso.”
Coloca-se aqui a questão de saber se existe possibilidade de criatividade e se existe um lugar para o indivíduo no seio do confucionismo. Em primeiro lugar, temos de distinguir, obviamente, entre as ideias confucionistas e a prática dos que delas se apoderaram e utilizaram como instrumento de poder. Tentar encontrá-las na prática de muitos dos governantes que se diziam confucionistas resulta no mesmo que tentar encontrar a prática dos ditames de Cristo nas acções dos reinos ditos cristãos. Neste caso, interessam-nos as ideias e não o modo como foram esquartejadas e utilizadas ao sabor das conveniências da História, embora tal não seja com certeza algo a deixar de considerar noutro contexto.
Assim, segundo Zhu Xi, homem de proa do neoconfucionismo da dinastia Song, o Céu distribui a cada um diferentes quantidades e qualidades de qi (sopro, força vital), o que faz de todos nós uma singularidade que, em cada caso, terá necessariamente de percorrer um caminho diferente para realizar a sua natureza original. Esta teria em si imbuídos os valores fundacionais de ren, yi, cheng, xiao, etc., que ao longo da existência vão sendo desvirtuados pela vida social e pelos desejos egoístas. É no construir desse caminho, não na construção do objectivo, que reside a intervenção individual. O objectivo é natural e universal, ou seja, a moral é natural e universal. Como “relembrá-la”, reintrojectá-la e agir em conformidade é o desafio de cada um, perante a particularidade que enfrenta.
Num contexto confucionista, a criatividade na acção passa pelo modo encontrado de se conformar aos valores universais perante uma situação concreta. Como é que, atendendo ao meu qi, à minha predisposição interior, ao meu carácter, me posso tornar um junzi? Não se trata, no entanto, de possuir as qualidades em potência, porque o verdadeiramente importante é saber agir como um junzi agiria em cada situação particular. Portanto, para que a acção seja correcta e benevolente, cada um terá de construir no específico interior uma etologia própria, desapaixonada, analítica, que lhe permita avaliar e agir sem delongas.
Repare-se que a dialéctica platónica não se encontra muito distante. Para o filósofo grego, o objectivo superior seria o acesso aos arquétipos originais, eles próprios ideias fixas e universais. Para o atingir, terá de se passar da doxa (opinião) para o conhecimento dos seres matemáticos e finalmente ao conhecimento das ideias superiores, os arquétipos. Estes não são passíveis de serem alterados, meramente conhecidos, contemplados (teorizados). Tanto no caso do platonismo como do confucionismo é admitida a transcendentalidade de algo fixo, imutável em si mesmo, válido para todos os seres humanos. Contudo, muito diferem no modo como a concebem e nos caminhos usados para a atingir.
Por exemplo, no confucionismo, se não for rapidamente testado na prática, o conhecimento perde o seu valor e não deve ser procurado como um valor em si mesmo. É por isso que Zi Lu, um dos discípulos favoritos, “quando (…) aprendia algo, o seu único medo era aprender mais, antes de conseguir agir de acordo com o que aprendera.”(V.14.) Quando aprende algo, Zi Lu não passa a uma nova lição até que tenha posto em prática com sucesso o que tinha aprendido. O foco é colocado na prática real, por oposição ao mero conhecimento teórico.
Wang Yangming aproveita esta passagem para criticar a sua época: “Os nossos contemporâneos nunca estão sem conhecimento. Eles andam por todo o lado, acumulando conhecimentos inúteis sem nunca os manifestar em acção. Mesmo quando conseguem pôr algo em prática, não demostram nenhuma urgência, como a de Zi Lu. Matam o seu tempo e cumprem os seus deveres de forma superficial; (…) e, mesmo quando se deparam com esta passagem na sua leitura, continuam inconscientes da sua vergonha.”
Como somos todos diferentes, alguns terão mais facilidade em que adquirir sabedoria do que outros. Confúcio chama isso “propensão natural”: “A sabedoria (知 zhi) adquirida através de uma propensão natural para o conhecimento é a de nível mais alto; a sabedoria adquirida através do estudo vem em segundo lugar; em seguida, estão aqueles que tendo dificuldade em entender persistem, contudo, nos seus estudos. Porém, as pessoas que têm dificuldade em compreender, mas nem sequer tentam aprender são as piores de todas”, resume o Mestre.
As propensões (sheng) não devem ser entendidas como espécie de categorias a priori, ou mesmo inatas, apesar de a tradução literal do caracter ser, de facto, “nascimento”. O sentido de “abertura”, em termos quase heideggerianos, parece estar mais em consonância com uma leitura correcta de sheng. O próprio Confúcio terá negado pertencer àquela primeira categoria de conhecimento, nomeadamente no Livro VII: “Não sou o tipo de pessoa que ganhou conhecimento através de uma propensão natural. Pelo contrário, amando a antiguidade, dedico-me por inteiro a buscá-la.”
Yang Shi comenta: “Todas as três primeiras categorias, embora diferentes em termos de disposição original, são as mesmas no que respeita à obtenção de conhecimento. É por isso que a pessoa exemplar valoriza a aprendizagem e nada mais. Só aquele que não aprende porque acha difícil é que acaba por ser considerado inferior.”
O modo mais fácil e expedito de estudar e adquirir conhecimento é através de um mestre. Bem pode uma pessoa dedicar-se a ler volumosos calhamaços, deslizar qual enguia entre as mais esotéricas teorias, que nada chega à partilha do saber de outra pessoa, nomeadamente de alguém eivado de sabedoria.
É o que nos diz Mestre Xun (Xun Zi), um confucionista que, ao contrário de Mêncio, considerava o Céu era amoral e o seres humanos maus como as cobras ou pior. E a única solução que Xun Zi encontrava residia na educação do animal homem. Para ele, só através da educação e dos ritos era possível fazer deste bicho de má índole um ser capaz de ser benevolente, recto, autêntico, etc..
Então, para apressar o processo, afirma: “No que concerne o estudo, nada há mais expediente do que nos chegarmos à pessoa certa [um mestre]. Os rituais e a música oferecem modelos apropriados, mas não dão os preceitos. As Odes e os Documentos contêm antigas histórias, mas não explicam a sua aplicação no presente. Os Anais da Primavera e Outono são explícitos, mas a sua compreensão é laboriosa. Contudo, se imitares a pessoa certa na sua prática dos preceitos de pessoa exemplar (junzi), então conseguirás honrar essas coisas na sua abrangência e ver como abarcam o mundo todo. Assim, no que concerne o estudo, nada há mais expediente do que nos chegarmos à pessoa certa.”
É isto: quem pretender apressar a sua educação e aprender na prática, pela observação do comportamento de um sábio, mais não terá de fazer senão encontrar e seguir um mestre. Boa sorte!
