A fragilidade dos ritos

A respeito do clã Ji, Confúcio afirmou: “Se é possível ver com bons olhos o uso das oito fileiras imperiais de dançarinos pelo clã Ji no pátio da sua mansão, o que não será permissível?”

Analectos, III.1.

 


 

Uma das questões que se levanta quando consideramos o confucionismo é: para se ser uma pessoa exemplar (junzi), como devo agir? Ou, de outra maneira, como posso praticar a Via do Meio, isto é, em cada momento escolher a acção, a pose e a palavra justas, eivadas de benevolência (ren) e rectidão (yi)?

Confúcio tem uma resposta muito clara: de uma forma geral, o modo de garantir um comportamento correcto é cumprir os rituais e os ritos. Respeitar os ritos é um garante de ordem e harmonia, não os respeitar induz o caos e a desarmonia. É o caso do clã Ji que para si usurpa uma forma ritual que se destina unicamente ao imperador: o uso de oito fileiras de bailarinos.

Com efeito, as regras rituais dos Zhou reservavam somente à casa imperial a existência de oito fileiras de oito bailarinos. Já os vassalos mais importantes tinham apenas direito a seis fileiras. Uma excepção foi feita aos duques de Lu que, por terem sido fundamentais no estabelecimento da dinastia, tiveram durante um curto período direito a oito fileiras.

Mas Ji Ping, do clã Ji, era apenas um alto oficial (dafu), cujo cargo apenas garantia quatro fileiras de bailarinos. Aproveitando a ausência do duque Zhao, que reinou de 540 a 510 a.E.C., Ji outorgou-se o direito de oito fileiras o que despertou a ira de Confúcio, na medida em que desrespeitava as regras rituais e indiciava que pretendia usurpar o poder.

No Comentário de Zuo (Zuo Zhuan) diz: “No nono mês (do quinto ano do Duque de Yin), foram feitos preparativos para um ritual no templo dos antepassados, durante o qual era suposto serem apresentadas danças marciais. O Duque de Yin aconselhou-se com Zhong Zhong sobre o arranjo dos dançarinos. Este respondeu: “O imperador forma oito fileiras de bailarinos (64 pessoas), os senhores (jun) formam seis fileiras (48 pessoas). No caso dos altos oficiais (dafu), quatro fileiras (32 pessoas), e os letrados (shi), duas fileiras (16 pessoas). Isto porque existem oito tipos de instrumentos musicais, feitos de oito tipos diferentes de materiais. Além disso, o vento sopra de oito direcções. Por isso vós deveis ter menos de oito fileiras de dançarinos, que é o número reservado ao imperador. O senhor de Lu obedeceu a estas palavras e, desde então, tornou-se costume ter seis fileiras de bailarinos nestes rituais.”

Os rituais (cerimónias que marcam a passagem do tempo ou um determinado acontecimento) e os ritos (comportamentos padronizados reservados a ocasiões determinadas), são fundamentais tanto para a representação política como para as práticas quotidianas, de acordo com o pensamento confucionista.

Se as suas regras forem seguidas, é certo que predominará a harmonia social, pois todos os comportamentos estarão dentro do previsto e de acordo com a tradição.

Ao contrário do que acontecia durante a dinastia Shang, segundo Confúcio, na primeva dinastia Zhou os rituais não eram executados com objectivos mágicos, isto é, como meio de influenciar acontecimentos futuros. Segundo o Mestre, eram executados por si mesmos e nessa execução disciplinada residiria a sua eficácia.

Para ele, também as acções quotidianas deviam ser ritualizadas: todos deveriam saber o seu lugar, falar quando fosse a sua vez, respeitar as hierarquias, etc., numa palavra, nada deixar ao acaso ou ao sabor dos desejos dos indivíduos.

Numa sociedade assim completamente ordenada, não haveria lugar para a dissensão, a desarmonia ou o conflito. Cada um e cada coisa deveria ocupar um determinado no seu lugar.

Como é explicitado no Estudo Maior (Da Xue), Comentário de Zengzi (III, 2): “No Livro das Odes diz: ‘Min-man chilreia o papa-figos dourado. Ele permanece num recanto da colina’. O Mestre disse: “Quando permanece, sabe em que lugar permanecer. Será possível que um homem seja inferior a este pássaro?!”

Zhu Xi comenta: “O homem deve saber em que lugar permanecer.” Quando alguém sabe qual é o seu lugar e o ocupa, aí permanecerá na “mais alta excelência”.

Portanto, se as regras rituais forem respeitadas tudo decorrerá na mais perfeita harmonia, objectivo último do pensamento político e social confucionista.

 

Ritual e substância

Contudo, a ritualização em si mesma pode adquirir diferentes contornos. Por exemplo, o modo como se pratica o ritual e o modo como nos apresentamos para tal foram também sufragados pelos confucionistas. Interrogado por um discípulo, Confúcio sentencia: “É preferível a simplicidade à extravagância; no luto, é melhor exprimir um desgosto verdadeiro do que preocupar-se com pompas.”

Este é um exemplo da refutação que Confúcio faz da ostentação, de tristeza ou de riqueza, nos rituais. Para o Mestre, deve haver autenticidade (cheng) em todos os procedimentos e não utilização dos rituais para fins aos quais eles não foram destinados.

Zhu Xi comenta:

“O ritual valoriza a obtenção de um equilíbrio: extravagância e meticulosidade são excessivos em detalhes ornamentais; frugalidade e a tristeza não vão suficientemente longe, mas são substanciais. Em nenhum destes casos o ritual é como deveria ser. Ainda assim, de acordo com o princípio das coisas em geral, deve haver primeiro substância e só depois ornamentação, o que quer dizer que a substância é o fundamento do ritual.

Já Zuyu estabelece um comentário mais preciso que Zhu Xi:

“Nos sacrifícios, é melhor que o ritual seja inadequado e o sentimentos de reverência excessivo, do que o sentimento de reverência ser inadequado e o ritual excessivo. Nos ritos de luto, é melhor que o ritual seja inadequado e os sentimentos de pesar excessivos, do que os sentimentos de pesar inadequados e o ritual excessivo. Quando os rituais se perdem na extravagância e os ritos de luto se perdem na meticulosidade, em ambos os casos, é porque um, sendo incapaz de regressar ao fundamento, segue o que não é essencial. Em ritual, é melhor ser frugal e incompleto do que extravagante e completo. Nos ritos de luto, é melhor ser triste e sem ornamentação, do que meticuloso em ornamentação. A frugalidade são coisas na sua substância; a tristeza é o coração na sua sinceridade. Consequentemente, eles constituem o fundamento do ritual.”

 

As fraquezas da ritualização

O que ressalta destas considerações:

1. Não perder o “fundamento” do ritual, isto é, limitar a sua eficácia pela imposição de “excessiva ornamentação”;

2. A obrigação de ser autêntico (cheng), sentindo com empenhamento próprio cada passo do ritual.

Este segundo ponto introduz o indivíduo como importante agente no contexto ritual porque, finalmente, ele é a razão da ritualização e não o contrário.

Vejamos esta passagem dos Analectos: “Zi Xia perguntou: ‘O que quer dizer a ode: Sorriso amável, que bela face, / Brilhantes e negros, que belos olhos / Sobre a face branca, aplica-se a cor.’ O Mestre respondeu: ‘Os adornos precisam de um suporte.’ ‘Significa isso que o rito é algo que vem depois?’, perguntou Zi Xia. O Mestre respondeu: ‘Shang [outro nome de Zi Xia], os teus pensamentos são fogosos. Só com alguém como tu posso discutir as Odes’.” (III.8)

Fica claro que os ritos (adornos) precisam da virtude dos indivíduos (suporte), para plenamente se realizarem. Os ritos servem para realçar as virtudes mais importantes, como a benevolência, tal como a maquilhagem realça a beleza de uma face. Contudo, essas virtudes têm de existir previamente.

Já anteriormente, em III.3., Confúcio chamara a atenção para o assunto: “De que servem os ritos se a pessoa não é benevolente? De que serve a música se a pessoa não é benevolente?”

A benevolência é aquilatada na acção, não nas intenções. Sem a prática da benevolência de nada servem os ritos e a música. Poder-se-ia dizer que os ritos são produtores de benevolência, mas não é assim: a benevolência tem a sua origem em cada um dos sujeitos.

Poderemos assim chegar a uma espécie de conclusão selvagem e que passa pela admissão da fragilidade ritual, ou seja, rituais e ritos existem unicamente no modo como os homens realmente os desempenham e o que se assiste na História é a desregulamentações, usurpações (como a do clã Ji), incumprimentos e, portanto, ineficácia.

Assim sendo, feridos de tamanha fragilidade, como podem os ritos ser garante de comportamentos benevolentes e justos?

Confúcio apercebe-se deste problema e responde com o primado da benevolência, ou seja, que será em busca da benevolência que os seres humanos devem cumprir os ritos e não esperar que seja o próprio rito a produzi-la.

A benevolência crescerá em cada um pelo cultivo de si, tal como a autenticidade (cheng) crescerá no exame interior que cada um deve operar. Só quando pré-existem ao rito, este funcionará.

Em si mesmos, ritos e rituais são frágeis, na medida em que dependem da vontade, da disposição e dos interesses. É esta fragilidade inerente que levará outros pensadores, nomeadamente os legistas, que construíram um império, a desprezá-los enquanto modo de organizar a sociedade e defender o cumprimento das leis.

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