SHITAO e o traço único do pincel

O pintor é cego: Xia Zun Zhe, o “honorável cego” foi um dos muitos, mais de duas dúzias, de nomes escolhidos pelo homem que se tornaria um dos mais conhecidos e admirados pintores da China. A designação tem uma conotação budista: cego para os desejos mundanos. No entanto, o choque de qualificar como cego alguém que se dedica às artes visuais cria um desejado efeito de perplexidade. Por outros dois nomes, Daoji ou Shitao, ele é referido nas várias relações de proeminentes pintores activos no início da dinastia Qing (1644-1911). Foram coleccionadas e copiadas as suas pinturas e lidas as suas palavras, as que estão junto das pinturas e as que fazem parte do manual Huayulu, “Comentários Sobre a Pintura”. É um dos Quatro Monges nas listas de pintores onde constam também Bada Shanren Kuncan e Hongren mas é também um dos Individualistas nas listas que juntam de novo Shitao e o seu primo afastado Bada Shanren. Ambos se encontravam na incómoda situação referida como os restos, (yimin), ou “as sobras” da decapitada dinastia Ming (1368-1644), a cuja família imperial pertenciam. O modo como reagiram a essa situação definiria o seu trajecto. Bada Shanren (1626-1705) era mais velho e pôde tomar uma decisão radical no momento da mudança dinástica: não diria nem mais uma palavra. Shitao era uma criança a quem os acontecimentos se impuseram. Quando nasceu puseram-lhe o nome de Zhu Ruoji e esse nome, como um alarme, a vermelho, marcaria os primeiros anos da sua vida.

 

O Monge Pintor

A crónica diz que terá nascido em Guilin, na província de Guangxi em 1642. Face à invasão Manchu, um criado da família percebe o perigo e foge com a criança em 1647 para se refugiar num mosteiro budista situado em Quanzhou, uma localidade próxima. Como descendente, na décima geração, de Zhu Zanyi, o príncipe de Jingjiang encontrava-se numa situação precária face ao novo poder imperial. Seguia assim um percurso habitual entre os leais à anterior dinastia para quem os mosteiros budistas serviam de refúgio mas também de complexas jogadas políticas. Existia no mosteiro de Ling-yen Chi-chi um poderoso prelado, entre cujos seguidores se encontravam um antigo primeiro-ministro e um ex-presidente do Conselho do Tesouro do príncipe Tang, ambos da corte Ming no sul. Ora, o pai de Ruoji fora assassinado pelo príncipe Tang, pelo que quando chega a hora de optar por um mosteiro, o jovem que fora crido entre os monges escolhe um rival de Ling-yen: o mestre Chan, Lu’an Benyue, que servira Shunzhi, o primeiro imperador dos Qing. Ao fazê-lo, em 1662, estava a fazer uma declaração política que pode ser interpretada como de renúncia aos Ming e lealdade aos novos governantes Qing.

Fez então os seus votos de monge e vai escolhendo nomes para assinar os seus trabalhos de pincel. Muitos denotam a influência budista como Kugua Heshang, Monge Abóbora Amarga, ou Yuanji, Origem da Salvação. O nome Shitao, que passa a usar ainda antes de 1651, é composto por dois caracteres que significam pedra e onda. Os dois juntos podem ter uma pluralidade de sentidos, mas são geralmente interpretados como a “onda petrificada” ou a “onda que se abate sobre o rochedo”. Em 1664 encontra-se no mosteiro do monte Kun, em Songjiang, na província de Jiangsu, com o mestre Lu’an Benyue. No encontro com esse Mestre do Budismo Chan Shitao adquire o vocabulário decisivo para exprimir o que seria o seu caminho. Mais tarde recordaria uma conversa entre Lu’an e um Mestre Xiu no templo Baoen: Xiu teria dito: “tomemos o caracter “um” (escrito com um traço horizontal) e não se acrescente mais nada”, e depois perguntou, “o que temos?” Ao que Lu’an respondeu: “o esquema está completo”. Para Lu’an “um” completava a transição entre “nada” e “tudo”: antes de “um” nada existia, depois de “um” tudo é criação, um desenho completado. Shitao intuiu esse único da criação através do acto da pintura. Um conceito que designou como yihua, a pintura do único ou da linha primordial.

 

As Barbas dos Antigos

E é também Lu’an Benyue que o incita a prosseguir uma vida de monge errante. E ele vai e inicia uma trajectória marcada por dois movimentos: caminhar e parar para contemplar. Já sabia que mais do que um monge, era um pintor. Desde os treze anos que os companheiros notavam a sua vocação, sobretudo quando pintava orquídeas. E desde cedo percebe por onde não quer ir. Era um momento delicado na história da pintura na China. Dominavam a arte as teorias de Dong Qichang (1555-1636) que advogava uma rigorosa selecção de modelos adequados, simplificando a história da pintura em duas escolas ou linhagens, só uma das quais ele julgava apropriada para a prática de literatos amadores cultos como ele próprio. Mas a via de Shitao era outra. Embora tivesse que aceitar integrar-se tacitamente na categoria mais culta de pintor amador, como Dong Qichang, ele, tal como Bada Shanren, não estava na posição de dar mas receber o apoio de mecenas. Sabe-se por exemplo, que passou três anos a copiar rolos do académico Ming, Qin Ying para um patrono Manchu, que lhe terá pago em dinheiro ou hospitalidade ou os dois, desmentindo assim a ideia de pintor amador.

A própria forma de conhecer a arte moldava o estilo do artista. Os museus eram inexistentes, nas paredes dos templos só existiam pinturas figurativas do estilo popular e tradicional. Era pois, nas colecções privadas, entre círculos de amigos, em originais ou cópias, que se encontravam as mais complexas explorações da arte da pintura. A saída que Shitao encontrou foi conceber a arte da pintura como se o passado não existisse, como se ele agora estivesse a inventar tudo pela primeira vez. Mas, paradoxalmente, até essa originalidade era canónica. Dong Qichang dizia: “É melhor tomar a natureza como modelo e todas as manhãs (ou ao levantar), observar as formas cambiantes das nuvens, parar de pintar montanhas por algum tempo e caminhar nas montanhas. E se encontrar árvores estranhas, olhar para elas de quatro ângulos diferentes.”

Shitao encapsulou esse impulso primordial numa frase que ficou famosa e seria repetida até à exaustão: “As barbas e as sobrancelhas dos antigos não crescem na minha face”. E acrescenta: “as entranhas dos antigos não podem repousar nas nossas barrigas. Nós exprimimos as nossas próprias entranhas e exibimos as nossas próprias barbas e as nossas próprias sobrancelhas.” Era o afloramento do seu carácter provocatório, presente em comentários escritos em pinturas.

Numa pintura que está no Museu de Suzhou escreve, referindo-se a dois pintores, Mi Fu (1052-1107) e Dong Yuan (morreu em 962), que já eram autoridades incontestadas com os seus nomes associados a termos do vocabulário técnico, descrevendo formas de pintar:

“Dez mil pontos para pôr Mi Fu em pânico!
Algumas fibras de traços dóceis para fazer Dong Yuan dar uma cambalhota às gargalhadas
À distância a perspectiva não resulta

– faltam-lhe os ares vagos das paisagens.
De perto os detalhes estão todos confundidos – mal se percebem algumas simples cabanas.”

E para que não se pense que se está desculpando de incompetência, acrescenta:

De uma vez por todos corte-se
o coração do olho dos moldes convencionais,
tal como o imortal que cavalga o vento libertou
o seu espírito divino das grilhetas
da carne e dos ossos.”

E, referindo-se à tradição ortodoxa para aprender a pintura através da cópia dos modelos antigos, ainda escreveria numa pintura:

“Aqueles que entram pela porta ordinária para alcançar o Dao da pintura não são nada de especial.”

Era naturalmente um ideal problemático e difícil de realizar. Ao longo da sua vida faria obras que magnificamente ilustram essa utopia ao lado de outras feitas ao estilo de pintores antigos – caminhar e parar para contemplar. A tensão entre o novo e o antigo era, ela mesma, já uma tradição no tempo de Shitao. Confúcio (Kongzi, 551-479 a. C.) tinha dito: “Não pretendo ter nascido com o saber. É na minha paixão pelos Antigos que eu o bebo com ardor” (Analectos, VII, 19).

  

Encontrar o Espírito nos Rios e nas Montanhas

Para lá chegar, no entanto, ele tinha por certo que o estímulo para o trabalho de pintor haveria de se encontrar sempre na natureza, desdenhando dos pintores que “nunca viram com os seus próprios olhos as montanhas famosas e os grandes rios… ou caminharam mais de cem li para lá das portas da cidade”. Rios e montanhas, caminhar e parar para contemplar o que passa e o que permanece. Era uma via peripatética que tinha itinerários a conhecer, como Xuancheng, em Anhui, Nanquim ou Yangzhou, em Jiangsu e outros a reconhecer.

  Lugares de tal modo codificados pelos wenrenhua, os homens de cultura do seu tempo, que conhecê-los era interpretá-los. Zheng Rikui, um seu contemporâneo, passeando nos Terraços do Pescador (os montes Diaotai, no leste de Zhejiang) escreveu: “Eis um passeio que não posso fazer com os meus pés; faço-o com os olhos. Logo uma brisa fresca sopra (…); passeio-me com o nariz (…) …a água estava deliciosa (…) passeei com a minha língua (…) …o barqueiro respondeu a todas as minhas perguntas (…): passeei-me com as orelhas” e depois: “Passado um momento os picos das montanhas já não se viam, mesmo ao longe. Entrei então na cabine (do barco) e retracei na minha memória os relevos das montanhas e as curvas dos caminhos (…) foi assim que me passeei em espírito”. A narrativa revela tanto a importância do lugar como a maneira como a paisagem se autonomiza face ao ambiente físico. Era uma tradição que já vinha de longe, existia mesmo um termo – woyou – que significa passear estando deitado, como teria feito o pintor Zong Shaowen (375-443) que, estando já muito velho para ir fisicamente, se passeava pelas Cinco Montanhas Sagradas deitado na cama. Ou o poeta Sun Xinggong (314-371) que, à distância, descrevia perfeitamente o Terraço Celeste.

Shitao tinha vinte e sete anos quando encontra o mítico Lago do Oeste em Hangzhou na província de Zhejiang que era outra paragem obrigatória. Aqui era o lugar para aprender as subtilezas, essenciais para um pintor culto do início da dinastia Qing. Porque este era verdadeiramente o “lago dos poetas”, associado a nomes como Bai Juyi ou Su Dongpo que foi governador de Hangzhou. Mas também o povo sabe que aquele é um lugar extraordinário, pois como toda a gente diz: “No céu existe o paraíso, na terra há Suzhou e Hangzhou.” O contraste entre quem sabia e quem não tinha aprendido lê-se na história de Zhang Da: uma noite de Inverno, no Lago do Oeste ele vai sozinho (o barqueiro não conta) contemplar a neve no Pavilhão do Coração do lago. Surpresa: já lá estão dois amadores cujo vinho, que um pequeno criado aquecia, começava a fumegar. Eles recebem-no com um grito de alegria: “afinal, sobre o lago existe alguém como nós”. E convidam-no a beber com eles. O guia deixa escapar o desabafo: “já não direi mais que o meu honorável passageiro é louco, existem outros mais doidos do que ele.”

 

Auto-retrato no Centro de Um Jardim

Shitao pintou-se muitas vezes ao longe, subindo a um pico, admirando uma paisagem distante, e a condizer com a sua vida errante, usava muitas vezes o álbum de folhas para pintar.

Mas aos 33 anos quando vivia num pequeno templo, em Jingchuan, perto das Montanhas Amarelas (Huangshan), na província de Anhui, recorre de forma surpreendente ao retrato numa pintura de rolo horizontal (dimensões: 40,2×170,4 cm) cujo contexto de origem é difícil de precisar.

Ao desenrolar a pintura o observador vê primeiro uma pedra com a forma extravagante de uma onda – alusão ao seu nome? De seguida está um homem esguio sentado sobre um pinheiro com uma enxada na mão. É o pintor, o desenho da face realçado em tons rosa ocre produzindo um extraordinário efeito de realidade. Mais à frente, um monge e um macaco transportam a meias uma vara à qual está preso um pequeno pinheiro. A cena reflecte exactamente o que se sabe do pintor na altura: que se fazia acompanhar por um pequeno macaco e que mandara transportar para o jardim do templo pinheiros que estavam nas Montanhas Amarelas. É possível também que a pintura ilustre a sua concepção do mundo: alguém que se via no centro de um universo holístico, para quem a pintura representava a própria vida. O jardim, microcosmos da natureza, seria um lugar privilegiado para o afirmar.

Na cultura erudita da China do século XVII, o jardim toma uma função reveladora. Na História da Pedra, também conhecida como Sonho do Pavilhão Encarnado (Hong Lou Meng), o autor Cao Xueqin conta a história da família Jia, para quem o jardim só ficaria terminado quando as suas estruturas internas fossem embelezadas através da nomeação poética de cada recanto. Um membro da família chega a dizer: “Todas estas demandas (…) mesmo as pedras e as árvores e as flores ficariam de certo modo incompletas sem esse toque de poesia que só a palavra escrita pode emprestar a um cenário.”

Os jardins, aliás, estarão presentes no resto da sua biografia. Sabe-se que em 1695, quando tem 53 anos, é convidado pelo prefeito Zhang Jianyi para ir a Hefei (hoje em Anhui) para trabalhar nos jardins do palácio chamado Perfume de Arroz. Shitao recusa delicadamente mas um dia ao atravessar o Lago Ninho de Pássaro, é impedido por uma tempestade e realiza uma pintura do lago para o prefeito, em que recorda o amável convite. No fim da sua vida diz-se que passava o tempo “amontoando pedras”, ou seja, desenhando jardins para os ricos comerciantes de Yangzhou, como o famoso Jardim das Dez Mil Pedras da família Yu. Mas isso seria mais tarde, por agora continuaria a vaguear pelas Montanhas Amarelas e pela região à volta de Pequim.

 

Um Grande Pintor é Encontrado Pelo Imperador

Em 1680 o seu percurso errático leva-o até Nanquim onde durante os próximos seis anos de uma vida em recolhimento, se instalará no Templo Changgan, conhecido na altura como Templo Baoen. Em recolhimento ou talvez não, se repararmos no nome que ele pôs à pequena habitação em que vivia nesse templo a sul de Nanquim. Chamou-lhe o Pavilhão do Ramo Único da Ameixoeira, (Yi Zhi Ge). Ora, no Lunyu, os Analectos de Confúcio, o Mestre cita uma canção: “O ramo da ameixoeira em flor/ Como ele se agita e rodopia! / Não é que por vós eu não suspire/ Mas vós ficais longe de mim.” E comenta: “Isto não é amor, se ele amasse verdadeiramente, que lhe importaria a distância?” (IX, 30). Esse desejo de proximidade quer com a verdade, quer com as pessoas, faziam parte dele. Ele era, como Wordsworth descreveu o poeta: “um homem afectado pelas coisas ausentes como se estivessem presentes”. Necessitava do diálogo com outros e, uma forma de viver entre eles, era começar a vender as suas pinturas. De início com pouco sucesso, mas o reconhecimento do seu trabalho foi-se desenrolando a par com o crescimento do seu círculo de amizades.

Em breve o seu prestígio já era suficiente para ser recebido pelo imperador. Durante a sua primeira viagem de inspecção ao sul, em 1684, para ganhar o apoio daqueles que ainda se conservavam fiéis à dinastia Ming, o imperador Kangxi (1654-1722) efectuou uma visita cerimonial ao mausoléu imperial dos Ming, em Nanquim. Como descendente da família imperial Ming, Shitao teve direito a uma audiência imperial. Seguiu-se uma segunda entrevista em 1689 e mais tarde nesse ano, por sugestão do influente erudito Manchu Po-Erh-Tu, Shitao deslocou-se até à corte, em Pequim. Lá conheceu Wang Yuanqi (1642-1715) que assinaria em conjunto com Shitao a pintura Orquídeas, Bambu e Rochas em 1691, resultado de uma colaboração solicitada pelo patrono Po-Ehr-Tu. Numa inscrição na pintura, Wang nota que foi ele a acrescentar as rochas na encosta para “arredondar a composição”. Nada indica que Shitao tivesse deixado o espaço vazio, atrás dos bambus e das orquídeas com essa intenção. Mais provavelmente tratar-se-ia do liubai, o espaço deixado propositadamente em branco na imagem da paisagem para o observador nela entrar. E, no entanto, a existência dessa colaboração mostra o grau de audiência que Shitao alcançara. Wang Yuanqi era um favorito pessoal do imperador Kangxi, para quem actuava como uma espécie de supervisor das colecções de arte imperiais. Era ele que autenticava as obras que lá se conservavam, chegando a ser o editor de uma publicação composta por uma grande colecção de fontes escritas: o Álbum de Pintura e Caligrafia no Estúdio de Peiwen, que se tornou uma espécie de cânone de escrita da história da arte, definindo alguns parâmetros que são válidos ainda hoje.

 

Comentários Sobre a Pintura

Em Pequim terá alcançado o reconhecimento para a sua pintura, mas não um desejado patrocínio para uma promoção dentro do sistema monástico budista. Regressa com naturalidade, como quem cumpre um destino, à cidade de Yangzhou, na província de Jiangsu, para estudar o Dao. E a partir de 1692, manda construir a sua morada que designa como Dadi Caotang, o Átrio Coberto de Canas da Grande Purificação. Pode dedicar-se a teorizar sobre o seu “método que não é um método”: “Quando me perguntam se eu uso o método do norte ou do sul, eu agarro a barriga a rir e digo que sempre usei o meu próprio método.” A relação entra a barriga e o espírito transcende a ironia. Na escola Daoísta da Realidade Completa usava-se uma frase que se aproxima do objectivo de Shitao: “a alquimia espiritual envolve duas tarefas: esvaziar a mente e encher a barriga, significando pôr de lado as percepções e abrir-se ao encaminhamento. Na tentativa de racionalizar a sua pintura, que era fundamentalmente intuitiva, ousava colocar tudo em causa: “Antes de os velhos mestres estabelecerem métodos, pergunto-me que métodos é que eles seguiriam.” Seguir a sua própria vontade era o que propunha o pensamento Neo-Confuciano e Shitao, ao formular a sua teoria, cita o Mestre Kongzi (Confúcio): “ O meu Dao provém de uma ideia única que liga o todo” (Analectos, XV, 12). Mais do que o método era preciso respeitar a própria resposta, zun shou: “a pintura responde à tinta, a tinta responde ao pincel, o pincel responde ao pulso e o pulso responde à mente.” Tantas teorias pediam uma sistematização. É o que faz ao escrever os dezoito capítulos do Huayulu, os seus Comentários Sobre a Pintura, que estariam completos em 1700.

Ao longo da sua vida de pintor Shitao trabalhou uma diversidade de temas: viagens, lugares com belos panoramas, bambus, flores e frutos, paisagens em diferentes estações do ano ou ilustrações de poemas, antigos ou contemporâneos. Quanto aos estilos que escolheu foi um nómada, como foi na vida, na variedade dos géneros que adoptou até se podem perceber conhecimentos das técnicas dos pintores do Ocidente. Mas teve sempre presente a intuição do traço primordial. Numa dedicatória escreve: “Para Xiao Weng-nian sorrir no segundo mês do ano de 1703”, na imagem, uma paisagem onde se vê um homem com uma vara na mão e traje de letrado aparecendo num caminho entre montanhas. À margem a seguinte declaração: “A minha maneira de pintar é um penetrante modo de ver que despe a casca exterior do que é material. Então só temos de deixar o pincel seguir livremente e ele arrebatará completamente milhares de penhascos, milhares de vales.” No capítulo oito, do Huayulu, a propósito das pinturas de paisagens, também é claro: (…) “E eu, que reconheci a importância da linha para a pintura, posso perceber através dela o divino que se materializou sob a forma de montanhas e rios. Há cinquenta anos este meu ego ainda não tinha nascido nas montanhas e nos rios. Não que eu achasse que os rios e as montanhas não valessem a pena, mas eu deixava-os lá estar. Agora os rios e as montanhas deixam-me falar por eles. Eles nasceram em mim e o meu ego nasceu nos rios e nas montanhas. Explorei todos os raros picos possíveis e desenhei-os. Rios e montanhas encontraram aquilo que em mim é divino, e o que sobrou desse encontro desenvolveu-se tanto que acabei por fim por trazê-los comigo para minha casa.”

 

Afinidades Electivas

Desse encontro de Shitao com a arte da pintura ficaram traços que perduraram. Nomeou pela primeira vez treze padrões de textura, incluindo Fupi, “corte de machado”, Pima, “fibra de cânhamo”, Fantou “cabeça de alúmen” ou as suas características linhas concêntricas Jie Suo, “a corda desembaraçada”. O seu Auto-retrato Dirigindo a Plantação de Pinheiros, de 1674, foi copiado por Luo Ping (1733-99) e colado para ser a primeira folha do Daodejing do Qingyuanzhai. Um grupo de pintores inconformados, que se intitulava os “Oito Excêntricos de Yangzhou”, toma-o como exemplo. Durante e após a Rebelião dos Taiping (1850-64), muitos artistas e eruditos refugiados em Xangai procuram modelos no passado e reivindicam o exemplo dos “Oito Excêntricos de Yangzhou” e dos “Individualistas” como Bada Shanren ou Shitao.

Numa pintura intitulada Fonte dos Pessegueiros em Flor, Shitao ilustra o primeiro episódio de um célebre conto de Tao Yuanming — a história de um pescador que encontra um grupo de pessoas que fugira da tirania do primeiro imperador Qin refugiando-se num vale secreto, onde permaneceria desconhecido do mundo durante séculos. O tema, recorrente na cultura da China fala de um lugar de exílio onde é sempre possível viver. A pintura pôde ser esse lugar para pessoas como Shitao ou Bada Shanren. É natural que, sabendo da existência um do outro, se criasse uma aproximação.

Segundo a lenda, para iniciar uma conversa à distância, terá enviado a Bada Shanren uma carta, em 1699, em resposta a uma pintura que este lhe enviou. Nela diria que a paisagem recebida era demasiado grande para a sua casa, se ele pudesse enviar-lhe um rolo vertical mais pequeno (70 por 40 centímetros) com uma velha casa modesta junto ao leito calmo de um rio, algumas árvores velhas e, num andar superior apenas um homem que representasse o próprio Shitao e se sobrasse algum espaço vazio poderia acrescentar algumas linhas da sua escrita exemplar, essa pintura tornar-se-ia o seu mais precioso tesouro. O poema que lhe dedica no ano anterior é testemunha de como aquele nome – Zhu – era como a linha de sangue, vermelha e perigosa, que os aproximava:

“Tu e eu ficámos doentes no mesmo dia.
Mal tínhamos vindo ao mundo encontrámos a terra e o céu tremendo.
Tu, Bada, ficaste sem a tua casa,
mas permaneceste lá perto:
Eu, Shitao, viajei pelos Quatro mares…
Devido a um único e desprezível pensamento,
dez mil anos escorreram pelos meus dedos;
Tudo o que sobrou é apagado
para um grande vazio.”

Laozi afirmara que “a acção perfeita opera sem deixar rasto”. Um pintor dos fins da dinastia Qing levou longe esse desígnio destruindo sucessivamente as pinturas que fazia assim que as terminava. Demonstrava assim que a obra feita não era senão um resíduo que ficava de uma experiência espiritual que, esta sim, era o que lhe interessava. Shitao terá vivido intensamente essa via a ponto de absorver o ritmo da natureza – caminhar e parar para contemplar, acções de expansão e de contracção, como o ritmo do coração, a sístole e a diástole. A princípio é uma criança em fuga que caminha, sem saber porquê e para quê. O mistério da infância persistirá. No fim, já estava tudo dentro dele. Que necessidade tinha um pintor de ver?

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