A arte da caligrafia Chinesa

Introdução

Uma das características distintivas da civilização chinesa é o lugar cimeiro que a caligrafia ocupa na hierarquia das artes. As grandes artes são as artes do pincel, instrumento sensível capaz reproduzir qualquer movimento da mão, por mais subtil: a caligrafia, a pintura e a poesia. E, entre elas, a arte suprema é a caligrafia. Com efeito, a escrita chinesa não constitui apenas um meio de comunicação, mas é também uma forma independente de arte visual. A caligrafia com pincel está entre as quatro práticas tradicionais para cultivar a mente a que os letrados se deviam dedicar, para além de tocar qin, um instrumento musical de cordas, jogar qi, um jogo de tabuleiro estratégico chinês conhecido como go no Japão, e pintar.

Enquanto arte visual, a caligrafia 書法 shufa, cuja tradução literal é “o método de escrita” (shu, “escrever” e fa, “método”), vai muito para além do mero decorativismo da caligrafia ocidental (do grego, “bela escrita”), do embelezamento de letras. Uma vez que existem mais de cinquenta mil caracteres, a caligrafia chinesa tem à sua disposição um reportório imenso de formas. Trata-se de vivificar esses caracteres, de emprestar-lhes como que um movimento interior, de os carregar de qi, o Sopro/energia, que lhes conferirá coerência, e de li, uma “força”, uma acção resoluta, uma dinâmica. Assim se “dá corpo” aos caracteres, tornando-os autónomos na organização interna do texto e dotados de uma energia própria capaz de circular. O calígrafo sabe habitar no seu corpo e é isso que lhe permite “dar corpo” aos caracteres. A actividade interior do calígrafo advém gesto e este, por sua vez, advém forma. Só assim os caracteres poderão fazer prova de uma vida pelo menos tão intensa quanto aquilo a que se referem, de sugerir a presença de corpos no espaço, de objectos físicos tri-dimensionais, interpelando o espectador de tal forma que este vê neles muito mais do que manchas de tinta. Para tanto é crucial que o calígrafo exiba um comando total do pincel, o que é sempre fruto de uma longa prática que culmina na aquisição de um estilo próprio.

A caligrafia revela um tipo de conhecimento que não é apenas mental mas emocional e corporal, “conhecimento incorporado”. Todo o ser do calígrafo é implicado nos gestos caligráficos. Dá-se uma mobilização integral do corpo e uma presença de espírito total. E cada gesto, cada sequência de gestos é irreversível. Há que mover-se de um caracter para outro sem interrupção com todas as forças focadas. A actividade de quem caligrafa desenvolve-se fora do espaço-tempo quotidiano. É-se transportado para um tempo paralelo, mergulhando no estado de fluência tão característico da proximidade com o Dao.

 

Materiais

Os materiais para a prática da caligrafia são os mesmos da pintura e da escrita, os chamados 文房四寶wenfang sibao, os Quatro Tesouros do Estúdio: zhi, papel, bi, pincel, mo, tinta, yan, tinteiro (Fig.2).

O pincel de escrita chinês apresenta uma haste e uma ponta. Quanto ao tipo de pêlo, os pincéis podem ser 硬毫 yinghao, duros, 軟毫 ruanhao, macios, ou 兼毫 jianhao, mistos. A escolha de um pincel macio ou duro depende do estilo de caligrafia que se pretende executar e das habilidades do calígrafo. Os pincéis de pêlos macios são mais difíceis de controlar, mas permitem maior variação nas pinceladas. Existem três tamanhos diferentes de pincel: o tamanho grande (大楷 dakai), o tamanho médio (中楷 zhongkai) e o tamanho pequeno (小楷 xiaokai). Utilizam-se os pincéis de maior tamanho apenas para peças de caligrafia de grandes dimensões. O pincel de tamanho médio é o mais usado e serve para toda uma variedade de propósitos. O pincel de tamanho pequeno é adequado para peças de caligrafia miniaturais e na gravação de carimbos. Quanto ao comprimento da ponta, os pincéis podem ser長峰 changfeng, de ponta longa, 中峰 zhongfeng de ponta média, ou 短峰 duanfeng, de ponta curta. Os pincéis de ponta longa retêm a tinta por mais tempo e servem para escrever as linhas contínuas dos traços longos. Os de ponta média são os mais comum em caligrafia e os de ponta curta servem para escrever caracteres minúsculos e delgados. Para quem se inicia em caligrafia, o pincel de ponta média e de pêlo misto é o mais fácil de manusear. Os melhores pincéis, e também os mais caros, são os 湖筆 Hubi, fabricados em Huzhou, na província de Zhejiang, os 宣筆 Xuanbi do condado de Jingxian, na província de Anhui, os 戴月軒筆 Daiyuexuanbi, de Pequim, e os 店毛筆 Houdian maobi, da cidade de Hengshui, Hebei.

A característica preponderante do pincel é a flexibilidade. Os pêlos provêm de animais como cabras, doninhas, coelhos e cavalos, além de texugos, raposas, gatos e veados. Diferentes tipos de pêlos dão origem a graus variados de rigidez. Os mais macios são os de coelho e de cabra e os de cavalo os mais rígidos. Os de doninha são elásticos e resistentes. Os pincéis rígidos e duros não retêm uma grande quantidade de tinta e são geralmente utilizados para escrever caracteres relativamente pequenos. A qualidade do pincel depende ainda da parte do corpo do animal de onde o pêlo foi extraído e da época do ano em que isso sucedeu. Um bom pincel apresenta uma ponta bem aguçada e elástica e um pêlo uniforme.

Tradicionalmente, adquiria-se a tinta em estado sólido, em bastões, que eram depois misturados com água no tinteiro de modo a liquefazer-se. A marca de maior prestígio é Guhu kaiwen. Actualmente, também se adquire tinta líquida já preparada. A mais conceituada é a 徽墨 Huimo (tinta de Anhui), da antiga região de Huizhou 徽州, parte dela na actual província de Anhui.

O papel mais utilizado para caligrafia é o 宣紙 Xuanzhi, que é fabricado tradicionalmente em Xuancheng, na província de Anhui. Existem vários tipos de Xuanzhi, cada qual apropriado para um certo estilo de caligrafia ou pintura. Pode ser dividido em três categorias distintas: 生宣 shengxuan (xuan em bruto), que é pouco processado e tem grande capacidade de absorção de água; 熟宣 shuxuan (xuan amadurecido), com uma textura rígida e uma capacidade reduzida de absorção de água; 半熟宣 banshuxuan (xuan meio-amadurecido), que tem uma excelente capacidade de absorção de água. A selecção do papel xuan depende do propósito do calígrafo. Todavia, para o aprendiz de caligrafia, os cadernos chineses para prática de caligrafia vulgares e até mesmo o papel de jornal são uma boa como alternativa.

Os tinteiros podem ser feitos de diversos materiais, como ardósia, porcelana, bronze, etc. e variar muito em aparência. Os Duanyan (de Duanxi, Zhaoqing, em Guangdong) e os Xiyan (do condado de Xi, em Anhui), são os que gozam de maior prestígio.

 

Postura

Ao executar uma peça de caligrafia, é indispensável manter-se num estado de espírito tranquilo, evitando qualquer sentimento de pressa ou preocupação, com todas as partes do corpo a trabalhar em sintonia. A respiração deve ser suave, contínua, e estar sincronizada com o pincel, expirando enquanto este se move no papel e inspirando quando se ergue. É necessário concentração, 凝神ningshen, mas não de forma exagerada, sob pena de a caligrafia ganhar um aspecto demasiado rígido e tenso. A concentração implica algo familiar no vocabulário chinês, 內視 neishi, olhar para dentro ou o olhar interior, uma escuta por parte do calígrafo do seu silêncio interior, num estado entre presença e ausência. Essa visão interior é exteriorizada sob a forma de caligrafia porque aquela gera uma intenção, yi. Não se trata de uma visualização prévia e precisa do que se vai fazer, mas tão-só da intenção que guiará o pincel ao caligrafar, deixando espaço para a espontaneidade se manifestar. Se as pinceladas se anteciparem à intenção, o resultado será medíocre.

A caligrafia chinesa é geralmente levada a cabo sobre uma superfície plana e horizontal. Os aprendizes devem escrever sobre uma mesa, os calígrafos experientes podem escrever de pé. A posição da cabeça, do corpo, dos braços e pés afecta a qualidade da escrita. Ao escrever sentado, o corpo deve distar cerca de cinco a sete centímetros da mesa. O centro de gravidade deve situar-se na parte inferior do abdómen (丹田 dantian), o centro gerador da força que irá circular pelo braço e pelo pincel até aos caracteres. A cabeça deve manter-se direita, de modo a poder observar claramente o local onde se pretende escrever. A parte superior do corpo deve estar direita, com os ombros relaxados e equilibrados. Enquanto uma mão escreve a outra mantém o papel no lugar, com os dois braços ligeiramente afastados do corpo. Ambos os cotovelos devem pousar sobre a mesa, longe do corpo. Os pés devem apoiar-se firmemente no chão e manterem-se uniformemente afastados. Os calígrafos mais experientes podem preferir trabalhar em pé (Fig.3). Essa postura é aconselhável, aliás, quando se pretende escrever caracteres de grandes dimensões. Há três tipos de posturas em pé: a primeira, ao escrever sobre uma mesa, suspendendo o braço no ar enquanto a parte superior do corpo se debruça sobre o papel; a segunda, ao escrever numa parede, olhando em frente e com o braço estendido; a terceira, ao escrever caracteres de grandes dimensões num papel colocado sobre o chão, em que o calígrafo trabalha em movimento e inclinando-se para baixo.

A posição do pulso depende do tamanho dos caracteres. O pulso dos aprendizes deve apoiar-se na mesa. Isto sobretudo se os caracteres serão relativamente pequenos, porque então bastará mover os dedos e o pulso para manipular o pincel. Há quem amorteça o pulso com a mão que não escreve, colocando-a com a palma para baixo. Escrever com o pulso erguido é aconselhável para calígrafos experientes que assim gozarão de maior liberdade, principalmente na execução de caracteres de tamanho grande. Ergue-se o pulso 2,5 a 5 centímetros da mesa, mas com o cotovelo apoiado sobre ela. Escrever tanto com o pulso como com o cotovelo suspensos no ar é mais difícil e serve para traçar caracteres de grandes dimensões.

A maneira como se manuseia o pincel é de importância crucial. O pincel deve ser mantido na vertical (Fig. 4). Uma maneira vulgar de segurar o pincel é “o método polegar-dedos” que requer uma força coordenada dos quatro dedos e do polegar de modo a efectuar movimentos exactos e equilibrados. O polegar inclina-se, com a unha apontando para cima; as pontas dos demais dedos apontam para baixo. O polegar e o indicador mantêm o pincel na altura correcta e o dedo médio empurra suavemente o pincel em direção à palma. O quarto dedo fornece pressão no lado oposto do pincel. O dedo mínimo auxilia o quarto dedo mas sem tocar no pincel, na palma ou no papel. Todos os dedos devem estar envolvidos no controlo do pincel. A palma da mão deve estar solta e curvada o suficiente para segurar um ovo. O pulso e o antebraço devem manter-se paralelos ao papel. Existem outras maneiras de segurar o pincel, como o “método dos três dedos” e o “método dos quatro dedos”. Na caligrafia regular, segura-se o pincel na parte inferior da haste tornando-o mais fácil de manusear. Nas caligrafias corrente e cursiva segura-se o pincel na parte superior da haste, o que permite mover os dedos e o polegar com agilidade e rapidez.

As posturas-padrão e o cultivo de bons hábitos de escrita são necessários sobretudo para os aprendizes. A maior parte dos calígrafos ajusta a forma de segurar no pincel às suas necessidades criativas.

 

Aprendizagem

A primeira actividade artística das crianças chinesas é a caligrafia. Não só lhes ensinam os traços e os caracteres como também tentam despertar o seu juízo estético e compreensão acerca da criação artística, alertando-as para noções como equilíbrio, proporção, continuidade, variedade, contraste, movimento, mudança e harmonia. Tal como as artes marciais, a prática da caligrafia contribui grandemente para a capacidade de concentração, a aquisição de disciplina, a coordenação entre a mente e o corpo e a adopção de uma postura corporal correcta, o que culmina na formação de um carácter de uma força gentil e com uma energia repleta de brandura.

O ensino da caligrafia, tal como da pintura tradicional, faz-se essencialmente através da cópia e da imitação. Na arte chinesa em geral, a imitação e a cópia são muito valorizadas e consideradas o caminho para a autonomia artística e para a criação de um estilo pessoal no futuro. Há que aprender com os mestres do passado para os poder depois ultrapassar. Através da cópia, o aprendiz descobre os pontos fortes do modelo e das técnicas utilizadas, as suas próprias limitações e as opções que tem ao seu dispor, sem que seja necessário violar os princípios gerais. Uma vez atingida a maturidade, e graças ao longo treino e experiência adquirida, o pincel fluirá por si, tal a coordenação entre a mente e o corpo. A falta de treino através da cópia conduz à mediocridade. Apreciam-se boas cópias como se apreciam originais. Além disso, é graças à cópia que se conhecem hoje inúmeras obras de arte chinesas antigas, sobretudo pinturas e caligrafias.

Como todas as artes da China, aprende-se ainda caligrafia através da observação da natureza, como o movimento dos peixes na água, o voo dos pássaros, a dança do vento e os rios que correm. Deve-se fazer voltear o pincel como a águia volta a cabeça no ar, fazê-lo descer como um abutre que cai sobre a presa, empurrá-lo como o peixe que nada, com a naturalidade das nuvens que envolvem o cume das montanhas.

 

Saúde física e mental

A caligrafia chinesa não é considerada tão-só um passatempo ou uma forma de arte. Tal como o taiji e o qigong, é considerada também uma forma de terapia, eficaz na promoção da saúde física e mental. A caligrafia é um exercício físico e mental, um método para cultivar paz de espírito e concentração, assim como para libertar energia bloqueada. Além disso, melhora o sentido de equilíbrio e molda o temperamento, disciplinando-o e acalmando-o e trazendo uma sensação de paz e estabilidade. Os chineses crêem que a caligrafia, tal como a meditação, estimula os mecanismos de controle do cérebro, aumenta a circulação sanguínea e a vitalidade das células e retarda o envelhecimento. A prática da meditação é a busca de tranquilidade em repouso, mas a caligrafia é a busca de tranquilidade em movimento. Como o太極拳 taijiquan, é uma forma leve de exercício físico que envolve quase todas as partes do corpo e os músculos da respiração. A tranquilidade no movimento estimula a criatividade e provoca satisfação através da realização artística, algo que está ausente na prática da meditação.

Não é por acaso que em todas as vilas e cidades da China, logo pela manhãzinha, velhos e jovens, homens e mulheres, se reúnem em parques e jardins para fazer exercício. Entre esses exercícios tem lugar um fenómeno cultural sem paralelo noutras civilizações: a prática da caligrafia com água (Fig. 5). Os praticantes manipulam um pincel gigante e especial que se encontra amarrado a uma vara e mergulham-no num balde de água. De seguida, praticam caligrafia sobre o solo, traçando caracteres suficientemente grandes para poderem ser lidos à distância. Quando acabam de escrever os últimos caracteres, já os primeiros se evaporaram sob a acção dos raios de sol, o que lembra um pequeno happening efémero de arte contemporânea. Como a investigação médica indica que a prática regular e sustentada da caligrafia pode melhorar as funções corporais, trata-se de uma maneira de manter a forma física e mental. Além disso, os espectadores desta prática de caligrafia encetam discussões apaixonadas acerca das qualidades estéticas dos caracteres provando que o amor pela caligrafia está profundamente enraizado na população. Com efeito, a caligrafia é um tema de conversa popular na China e parte da sua identidade nacional.

 

Traços básicos

Existem entre 3 500 e 4 000 caracteres de uso corrente, embora os caracteres sejam tantos que não existe um consenso relativamente ao seu número, algo entre 50 000 e 90 000. Cada um desses caracteres, cujos formatos e números de traços variam grandemente, deve ocupar o mesmo quadrado imaginário. O número de traços mais comum num caracter chinês não-simplificado é da ordem de 11,2 e num caracter chinês simplificado é de 9,8. Os caracteres são formados através de um sistema modular. Cada módulo é formado por a partir de um conjunto de oito traços básicos que podem surgir repetidos no mesmo caracter: o ponto dian, o traço horizontalheng, o traço vertical shu, o gancho gou, o traço ascendente ti, o traço longo e descendente para a esquerda pie, o traço curto e descendente para a esquerda 短撇duanpie e o traço descendente para a direita na. Estão todos presentes no caracter yong, um dos caracteres que o aprendiz de caligrafia cedo começa a praticar (Fig. 6).

Cada traço é amiúde comparado a diversas formas e fenómenos da natureza que os aprendizes e calígrafos devem ter em mente ao trabalhar: o ponto é como uma pedra caída; o traço horizontal é como um fragmento de nuvem de verão; o gancho é uma vara de metal a dobrar-se, o gancho reverso é como disparar uma besta, etc. Os pontos podem apresentar muitos formatos diferentes mas nunca são circulares à maneira de um ponto geométrico. É o mais fundamental de todos os traços porque o método através do qual é executado serve para muitos outros. Tanto uma linha horizontal como uma linha vertical, por exemplo, principiam e terminam com o movimento do pincel requerido para se escrever um ponto. Além disso, embora geralmente pequenos, emprestam grande vivacidade aos caracteres. As linhas horizontais lembram o formato de um osso e podem igualmente ser traçadas de diferentes maneiras. Determinam a estrutura e a estabilidade do caracter e conferem-lhe uma aparência de força. Podem encontrar-se no topo, na base ou a meio de um caracter. Nas extremidades devem ser mais grossos, e mais finos a meio.  A linha vertical é a espinha dorsal de um caracter. Deve ficar bem direita, como um soldado em sentido.

 

Tipos de caligrafia

Existem vários tipos de caligrafia, sendo os mais comuns o tipo 篆書 zhuanshu ou “caligrafia sigilar”, o tipo 隸書lishu ou “caligrafia oficial”, o tipo 楷書kaishu ou “caligrafia regular”, o tipo 行書xingshu ou “caligrafia corrente” e o tipo 草書caoshu ou “caligrafia cursiva”. Cada um deles cria uma impressão visual e estética diferente. As caligrafias sigilares e oficial não eram consideradas formas de arte quando foram criadas. A antiga caligrafia chinesa servia fins práticos: comunicação e manutenção de registos. Foi sobretudo nas dinastias Sui e Tang que a caligrafia começou a ser considerada uma forma de arte e que surgiram vários tratados teóricos sobre o tema.

  A caligrafia zhuan ou “sigilar” divide-se em 大篆dazhuan, sigilar grande e 小篆xiaozhuan, sigilar pequena. A dazhuan é anterior à primeira dinastia imperial, a dinastia Qin, e evoluiu a partir da escrita gravada nos vasos de bronze da dinastia Zhou (Fig. 7).

A xiaozhuan data da dinastia Qin e apresenta formas mais simples, sendo também mais padronizada na estrutura (Fig. 8). A primeira tem uma aparência ousada e irrestrita, enquanto a segunda é mais composta e refreada. São ambas utilizadas actualmente sobretudo na gravação de carimbos, sendo a sigilar pequena bastante mais popular. Os traços podem ser grossos ou finos mas têm uma espessura uniforme e os caracteres de igual tamanho são inscritos numa forma rectangular imaginária mais longa nos lados e estreita no topo e na base, além de serem espaçados uniformemente. A direcção da escrita é vertical e da direita para a esquerda. Muitos destes caracteres são concentrados na parte superior e alongados na inferior, o que lhes confere elegância. Existem dois tipos principais de traços: linhas rectas e linhas curvas, incluindo círculos. Ambas terminam em pontas arredondadas. Trata-se de uma caligrafia serpentina e sinuosa, bastante difícil e morosa de escrever e em que o pincel se deve mover lentamente, recorrendo sobretudo à ponta central e sem variações na pressão. A rigidez e uniformidade exigem grande concentração e há pouco espaço para a expressão pessoal e livre. Devido a estas características, a zhuanshu serviu propósitos práticos durante pouco tempo, tendo sido substituída pela escrita oficial.

A caligrafia li ou “oficial” (Fig. 9), elegante e célere, tornou-se vulgar na dinastia Han. O aparecimento da caligrafia oficial depois da caligrafia xiao zhuan foi um grande avanço no sistema de escrita chinês e abriu caminho à constituição da caligrafia como uma forma de arte. Este fenómeno é conhecido como 隸變 libian, “a mudança para a oficial”. A espessura dos traços, dantes uniforme, começou a variar. A ponta do pincel passou a executar movimentos ascendentes e descendentes. Também se começaram a exercer diferentes graus de pressão no pincel, o que implicava um maior número de movimentos e técnicas de dedos e punhos. Os traços circulares ou semi-circulares desapareceram, restando apenas linhas rectas e ângulos agudos. Estava lançada a base para a forma quadrada e estável dos caracteres chineses. A forma dos caracteres mudou de verticalmente alongada para horizontalmente larga. Com efeito, os caracteres da escrita oficial são largos e curtos. As linhas horizontais, em geral, são planas e o traço gou, o “gancho”, ainda está ausente.

A caligrafia kai ou “regular” (Fig. 10) teve origem na dinastia Han Oriental e atingiu a sua forma actual no séc. V, mas amadureceu e popularizou-se na dinastia Tang, inaugurando uma era de estabilidade na caligrafia chinesa, à qual associou um conjunto completo de regras e padrões, em grande parte devidos ao letrado confucionista e calígrafo Ouyang Xun. Como a caligrafia oficial, é de aparência igualmente precisa, mas mais requintada, menos formal e pesada. A sua supremacia para uso oficial tornar-se-ia incontestável. A caligrafia regular obedece a regras fixas na padronização do traço, na ordem dos traços e no formato da escrita. Assenta em técnicas prescritas para três grandes áreas: como usar a tinta, como formar os caracteres e como gerir a composição. Também é designada por 真書zhenshu, caligrafia verdadeira, ou 正書zhengshu, caligrafia recta, ou seja, sem curvas. Os caracteres têm uma aparência quadrada, nítida, ordenada e firme sem deixar de ser dinâmica. São pincelados traço a traço, sem ligação entre eles e levanta-se o pincel no final de cada pincelada.

A caligrafia xing ou “corrente” (Fig. 11) desenvolveu-se no final da dinastia Han devido à necessidade de acelerar a escrita. Tratou-se de um passo importante no desenvolvimento da caligrafia. Encontra-se no meio-termo entre a caligrafia regular, em relação à qual é menos clara e precisa, e a caligrafia cursiva, em relação à qual é menos lesta e mais nítida, sendo frequentemente designada também como “semicursiva”. Escrever com maior velocidade e fluidez implica combinar traços e simplificar caracteres. O caminho que o pincel percorre ao traçar os caracteres é fácil de observar porque a ligação entre as pinceladas é articulada com clareza. Adaptando-se bem a todas as formas de comunicação manuscritas é, de entre todas, a caligrafia mais utilizada. Uma vez que nem sempre segue os padrões prescritos, esta caligrafia não só é apenas prática, como oferece grandes oportunidades para a expressão artística individual.

Enquanto os caracteres da caligrafia regular apresentam um tamanho uniforme, o tamanho pode variar na caligrafia corrente. Daí ser muito importante, tanto na corrente como na cursiva, ajustar o seu tamanho de modo que o todo não perca ritmo e equilíbrio. Tanto a caligrafia corrente como a cursiva não são escritas traço a traço mas ligando os traços entre si, sobretudo na cursiva. São rápidas e espontâneas, fluidas e livres, com graça no movimento e cheias de ritmo. A corrente e a cursiva fogem às regras, até mesmo da ordem normal dos traços, e não se ensinam nas escolas, nem servem para a documentação oficial, dada a maior dificuldade da sua leitura. A velocidade não é apenas cinética, advém igualmente de suavizar os ângulos e de ligar os traços. Na China, compara-se a caligrafia regular a manter-se de pé, a caligrafia corrente a caminhar e a caligrafia cursiva a correr. A coesão e o bom ritmo da obra não permitem qualquer modificação uma vez concluída a peça. Qualquer modificação destruiria o ritmo. Os erros e correcções são, por isso, preservados e um bom exemplo é o 蘭亭序Lantingxu, Prefácio aos poemas compostos no Pavilhão das Orquídeas de Wang Xizhi, considerada a maior obra-prima da caligrafia chinesa de todos os tempos (Fig. 18). Consideram-se os erros e correções parte integrante das obras e nunca são eliminados, até mesmo quando são copiadas.

A caligrafia cao ou “cursiva” (Fig. 12) foi usada pela primeira vez na dinastia Han para fazer cópias apressadas e amadureceu na dinastia Jin. É a caligrafia oficial ou regular escrita de forma extremamente rápida, ousada e irrestrita, com os vários traços dos caracteres ligados entre si, o que lhe confere uma aparência fluida e animada. É ainda mais vibrante e energética do que a caligrafia corrente. A caligrafia cursiva leva a caligrafia corrente ao extremo, a mais rapidez, criatividade e liberdade. A caligrafia cursiva implica uma grande variedade de técnicas ausentes nas demais caligrafias, como uma alternância de movimentos subtis e lentos e de gestos dinâmicos semelhantes aos das artes marciais, assim como domínio na criação tanto manchas de tinta difusas como de pinceladas secas. Os traços são unidos com grande frequência, com o último traço de um carácter a fundir-se com o primeiro traço do seguinte, e os caracteres surgem ainda mais abreviados. Enquanto as outras caligrafias se adaptam bem à escrita em linhas horizontais, nas caligrafias corrente e cursiva torna-se mais fácil e natural escrever em colunas verticais de acordo com a tradição chinesa.

Na caligrafia cursiva, e em menor grau na corrente, a sensação de ritmo e movimento na escrita não se compadece com paragens. Para manter o fluxo de energia na escrita, a quantidade de tinta depositada no pincel é muito maior, para que o artista possa escrever vários caracteres antes de parar para o recarregar. Logo após a recarga, o pincel encontra-se cheio de tinta e as linhas traçadas surgem grossas e escuras, os caracteres pesados e saturados parecendo mais próximos do espectador. À medida que a escrita avança, a tinta vai-se esgotando e os traços tornam-se mais finos e leves, parecendo distantes do espectador até que se efectua uma nova recarga. Este ciclo empresta um ritmo que alterna entre peso e leveza, humidade e secura, proximidade e distância que está em consonância com a noção de yinyang e produz um efeito tridimensional na peça de caligrafia.

Como a caligrafia cursiva se liberta de muitas das regras da caligrafia regular, quase tudo fica a critério do calígrafo e é a ele que cabe tomar a maior parte das decisões. Dado ser a mais expressiva das caligrafias tradicionais e favorecer a inovação, a informalidade e a individualidade, a cursiva é a favorita entre os calígrafos profissionais. Muitos dos que a praticam exibem personalidades excêntricas. No entanto, há algumas regras convencionais que continuam a ser respeitadas de modo que a legibilidade se preserve. Essa legibilidade não se dirige a todos mas apenas ao que adquirem treino na sua decifração. Com efeito, uma vez que recorre a um grande número de traços religados e se atém apenas ao contorno dos caracteres, a cursiva é amiúde ilegível para os leitores destreinados. Tem sido comparada a uma dança de tinta no papel, aos movimentos das artes marciais e a uma melodia dramática. Reflecte o humor e a disposição do calígrafo de forma mais clara. A sua natureza dinâmica e fluente coloca-a em destaque enquanto forma de arte.

A caligrafia cursiva divide-se em três tipos: a 小草xiaocao, ou cursiva pequena, é a mais refreada; a 大草dacao, cursiva grande, é pouco refreada; e a 狂草kuangcao, a cursiva louca, é a mais desenfreada, a mais vertiginosa. A cursiva louca surgiu na dinastia Tang (Figs. 21 e 22).

 

Regras e técnicas

A caligrafia é a arte de combinar os traços dos caracteres e de combinar os caracteres entre si num espaço delimitado. O pincelar de um traço divide-se em três fases: 起筆 qibi , 運筆yunbi e 收筆shoubi, ou seja, principiar, continuar e terminar. Esse processo deve conferir ossatura (gu) aos caracteres, uma estrutura feita de energia concentrada. Quando os caracteres não têm osso mas apenas carne parecem flácidos e sem vida. O grande calígrafo Su Shi蘇軾 (1037–1101) afirmava a propósito da caligrafia: 書必有神、氣、骨、血、肉,五者闕一,不為成書。“O caracter caligráfico deve ter expressão (shen), energia (qi), ossatura (gu), sangue (xue) e carne (rou). Caso algum destes elementos esteja ausente, não se trata de caligrafia!”

A escrita dos traços de um caracter principia em geral do canto superior esquerdo para o canto inferior direito, uma sequência geral adequada para redigir um texto na vertical em colunas, de acordo com a maneira tradicional, o que é uma consequência da escrita em ripas de madeira e bambu antes da invenção do papel. As regras de ordem dos traços representam a forma mais rápida e eficiente de escrever caracteres equilibrados, pois permitem ao calígrafo identificar com prontidão o seu centro de gravidade e dispor os restantes componentes de acordo com ele. A ordem prescrita dos traços também facilita a escrita acelerada sem comprometer a legibilidade. E representa um fluxo de energia que principia na parte inferior do abdómen do calígrafo para fluir pelo seu braço e mão até à folha de papel.  A rota linear da tinta torna visível essa energia e a qualidade da escrita é aferida por ela. Há mesmo quem acredite que a energia não se esgote no papel mas se transmita até aos espectadores.

A estrutura dos caracteres chineses assemelha-se à de edifícios erguidos com vigas padronizadas. Para construir um bom edifício há que conseguir bons materiais e posicioná-los no lugar devido de acordo com uma planta harmoniosa. Cada caracter deve ter uma aparência coesa e equilibrada, sem aglomerações e sem partes soltas.  A relação que os diferentes módulos de um caracter estabelecem entre si deve assemelhar-se às boas relações entre as pessoas, que são estáveis e equilibradas quando há respeito pelo espaço de cada um e existe mútua dependência e cooperação.

A relação estrutural entre os traços de cada caracter exige coerência e harmonia entre os componentes. Cada parte deve subordinar-se ao todo. Como se inserem num quadrado imaginário, é necessário ajustar tanto a forma como o tamanho dos componentes e módulos que os constituem. Além disso, para que os componentes se encaixem, alguns traços devem ser alterados para outro tipo de traços, de modo a ocuparem menos espaço, o que sucede geralmente no radical (部首bushou). Por exemplo, o caracter para “veículo”, che, surge como um radical em qing e em hong e muda o seu formato devido à diferente localização. Isto sucede para que o equilíbrio do caracter não se perca e o seu centro de gravidade não se altere. Um caracter que parece tropeçar ou desequilibrar-se parece também errado. Caso o caracter não seja atravessado por uma, os componentes que se dispõem verticalmente devem estar centralizados e equilibrados numa linha vertical imaginária. De modo análogo, deve imaginar-se uma linha horizontal na parte inferior do caracter, ainda que ela não faça parte da estrutura de um caracter, de modo a este parecer estável e bem implantado.

No pensamento chinês, a flexibilidade é grandemente valorizada. As regras são sempre flexíveis de modo a ajustarem-se a casos particulares. Assim, para preservar o equilíbrio de determinados caracteres, estes não se inserem num quadrado imaginário exacto. Trata-se de caracteres cujos módulos à esquerda e à direito variam em número de traços ou quando do módulo direito faz parte um traço vertical descendente. O componente mais complexo e o que possui o traço vertical descendente são caligrafados um pouco mais abaixo do que o outro, como em e em , respectivamente. O equilíbrio assimétrico é um princípio estético muito importante na caligrafia chinesa. Se num caracter houver dois traços verticais paralelos, o da direita deve ser caligrafado um pouco mais grosso do que o da esquerda e descer um pouco mais abaixo, o mesmo sucedendo em módulos do tipo caixa como em . As linhas horizontais de uma caixa devem ser paralelas, mas as linhas verticais podem variar. As linhas verticais de uma caixa alta e estreita devem ser paralelas e rectas mas, numa caixa larga e curta, devem ser mais largas na parte superior e mais estreitas na parte inferior. Além disso, quando de um caracter fazem parte três traços inclinados para baixo e para a direita do lado direito, dois desses traços rectos, o de cima e o de baixo, são transformados em pontos para evitar repetições. Por conseguinte, o princípio do equilíbrio assimétrico está intimamente associado ao princípio da variação dentro da unidade, fundamental na arte chinesa.

Existem duas técnicas principais de ataque ao começar e finalizar um traço, a pincelada indirecta ou com a ponta oculta, (藏鋒 cangfeng) e directa ou com a ponta revelada (露鋒 loufeng) (Fig. 14). Na primeira “oculta-se” o primeiro e o último toque do pincel (落笔luobi), começando a escrever na direcção oposta à pretendida. Por outras palavras, começa-se por mover o pincel levemente para a esquerda antes de pincelar um traço que se dirige para a direita ou deve-se começar por mover levemente para cima um traço que se dirige para baixo. Para ocultar a ponta no final faz-se o pincel recuar levemente na direcção oposta ao traço antes de ser retirado do papel. A ponta oculta no final de uma linha horizontal tem sido comparada na literatura clássica sobre caligrafia chinesa a galopar a cavalo rumo a um desfiladeiro e parar abruptamente à beira do precipício. Esta técnica cangfeng permite que a energia fique contida no traço, conferindo-lhe força interior. É por isso que os caracteres com pontas ocultas têm uma aparência reservada e uma aura afirmativa. É utilizada sobretudo na caligrafia regular. 露鋒 loufeng consiste na técnica de “revelar” a direcção que se pretende para o traço no primeiro e no último toque do pincel (Fig. 15). Os caracteres com pontas reveladas têm uma aparência acerada, extrovertida e ousada. Esta técnica é utilizada sobretudo nas caligrafias corrente e cursiva. Com o seu gosto pela classificação, os chineses criaram ainda muitas outras designações específicas para toda uma panóplia de movimentos do pulso e do pincel na elaboração de uma peça caligráfica.

 

Composição

A caligrafia implica a combinação de caracteres que, por sua vez, implica a capacidade de os dispor correctamente, de gerir o espaço e de estabelecer uma distância ideal entre as linhas. Daí resultará um jogo feliz entre o preto da tinta (cheio) e o branco do papel (vazio). Nunca é demais enfatizar a importância do jogo do cheio e do vazio numa peça de caligrafia ou pintura chinesa. Esse jogo tem lugar não só na disposição geral como na composição de cada caracter. Independentemente da caligrafia adoptada, deve haver espaço para respirar no interior e em redor de cada caracter por onde o qi, o sopro, possa fluir sem obstruções. Nas caligrafias corrente e cursiva, em que o tamanho dos caracteres e o espaço entre eles podem variar, há que ter em consideração a sua interacção e um caracter pequeno ou leve poderá ser compensado por outro grande ou espesso. Essa interacção poderá ocorrer entre caracteres consecutivos ou entre caracteres de colunas diferentes ou até de diferentes partes do texto, a excelência do calígrafo sendo revelada pelas escolhas que faz.

A aparência de uma peça de caligrafia como um todo orgânico é conseguida, por exemplo, pela manutenção do mesmo grau de inclinação de todos os traços horizontais independentemente do lugar onde se encontram. E todos os traços verticais devem mostrar-se direitos. Todavia, a uniformidade geral não é desejada ou a peça caligráfica pareceria rígida e sem vida. Pelo contrário, uma das características de um calígrafo digno desse nome é conseguir escrever de maneira diferente todos os caracteres que se repetem num mesmo texto.

Antes de tocar com o pincel no papel é necessário ter uma boa ideia daquilo que se pretende escrever e sob que forma, tanto no que diz respeito à disposição geral como no que diz respeito à disposição dos traços de cada caracter. Na caligrafia chinesa, a indecisão é fatal pois a ponta do pincel irá revelá-la claramente. Cada traço deve ser executado de um só fôlego e está fora de questão tentar retocá-lo sob pena de o destruir.

 

A cosmovisão subjacente

A prática e a apreciação da caligrafia chinesa implicam um estudo da filosofia (sobretudo do taoísmo) e da cosmovisão chinesa relacionada com o太極 taiji, o Pólo Supremo, e a polaridade do par 陰陽yinyang.

A caligrafia chinesa, tal como a pintura tradicional, incorpora os grandes princípios taoístas. Por exemplo, no capítulo 22 do道德經 Daode Jing pode ler-se: “Dobra-se e, assim, fica inteiro./ Curva-se e, assim, endireita-se./ Esvazia-se e, assim, renova-se./ Escasseia e, assim, obtém-se./ (…) Não se exibe e, assim, luz./ Não se afirma e, assim, sobressai./” Da mesma forma, ao lançar uma pedra, o braço dirige-se primeiro para trás e, ao dar um salto, é preciso primeiro baixar-se. A acima mencionada técnica da ponta oculta reflecte esta dinâmica: para que uma linha horizontal pincelada da esquerda para a direita retenha a sua força, o pincel deve começar por se mover em direcção à esquerda. Incorpora-se aqui a polaridade yinyang, que tão bem se expressa no seu conhecido símbolo em que a metade branca contém um ponto preto e a metade preta contém um ponto branco. Na caligrafia, a base da expressão artística encontra-se precisamente no jogo de contrastes yinyang, como erguer-pressionar, espesso-fino, vazio-cheio, seco- húmido, grande-pequeno, alto-baixo, etc. As coisas resultarão se houver um bom equilíbrio entre os dois pólos. O grande calígrafo é aquele que melhor sabe jogar esse jogo de modo a conceber uma peça plena de vitalidade e de ritmo.

Ainda no tema yinyang, a crença taoísta de que tudo quanto é complexo deriva de algo simples espelha-se na própria estrutura modular dos caracteres que podem ser reconduzidos a apenas oito traços básicos e, em última instância, a um único ponto. Do mesmo modo, o 易經Yijing, o Clássico das Mutações, afirma que existem no universo duas fases, yin e yang, que dão origem a tudo quanto existe no mundo e que, em última instância, podem ser reconduzidos ao qi, a respiração do Dao, do qual são uma dupla expressão. A fonte última de energia de todo o movimento e mudança é o qi e este deve circular sem escolhos através do calígrafo quando compõe uma peça.

É comum ler-se que a caligrafia deve ser avaliada como uma expressão directa do coração-mente do artista. Acredita-se que através da caligrafia o calígrafo exprime a sua naturezaxing, os seus sentimentos qing, a sua intenção, yi. Um tipo de julgamento estético comum é deduzir da caligrafia o carácter do calígrafo e a sua envergadura moral. Mas a natureza, os sentimentos e as ideias do calígrafo estão longe de ser importantes no sentido estrito. O bom calígrafo exprime através de si algo de muito mais poderoso do que esses estados contingentes e circunscritos, exprime o próprio Dao da natureza.

 

Apreciação

Ao escrever com pincel, o elemento-chave é a força, li, ou vigor dos traços, porque revela a energia interior a fluir sem entraves, com ritmo e naturalidade. Um caracter com força exibe uma estrutura poderosa e parece carregado de energia. Essa força deve estar presente mesmo em peças de caligrafia consideradas suaves. Os chineses dividem as peças de caligrafia entre dois tipos: firmes e suaves. As caligrafias firmes são poderosas e cheias de vigor, comparáveis a dragões e a tigres ou rápidas como cavalos galopando ou uma espada volteando no ar. As caligrafias suaves são delicadas, elegantes, graciosas como as brisas quentes da primavera, como belas mulheres com flores na cabelo ou como dançarinas com cinturas delgadas.

A caligrafia deve ser avaliada tendo em conta ainda outros factores, como a composição e a dinâmica espacial, o equilíbrio dos caracteres e a cooperação entre si, os jogos de contrastes, a qualidade dos traços, a coordenação das linhas e a capacidade de escrever de maneiras variadas os mesmos caracteres. A variação sobre o mesmo tema é omnipresente (por exemplo, nas impressões digitais, nas faces humanas, etc.) e é um dos grandes engenhos da natureza. Ora, para os chineses, toda a boa arte é conforme à natureza.

Aqueles que sabem avaliar a qualidade das peças de caligrafia prestam ainda atenção à correcção de escrita dos caracteres, isto é, ao respeito pelas regras da ordem dos traços; à legibilidade, ainda que apenas para aqueles que estão treinados naquela caligrafia específica, como sucede com a cursiva; à recusa do adorno supérfluo; e à adequação entre a caligrafia e o seu significado. Com efeito, a caligrafia deve estar em consonância com o teor do texto caligrafado e ser capaz de criar a atmosfera apropriada, o que implica a compreensão do significado desse texto e dos princípios estéticos que evoca.

 

Os grandes calígrafos
Da dinastia Qin (221 a.C. e 206 a.C.) à dinastia Jin (266-420 d.C.)

O primeiro calígrafo de que se conhece o nome foi Li Si 李斯 (c. 280 aC-208 a.C.), um político da dinastia Qin. Foi ele quem sistematizou a escrita chinesa em caligrafia sigilar pequena, que se tornou o padrão imperial do estado de Qin. Da dinastia Han Oriental, tem-se notícia de dois grandes calígrafos, Cai Yong蔡邕 (132–192), um oficial que redigiu estudos acerca da caligrafia sigilar, e Zhang Zhi 張 芝 (?–192), um pioneiro da caligrafia cursiva que viria a ganhar o epíteto 草聖caosheng, “o sábio da cursiva”, e a ser colocado no grupo dos 四賢sixian, “os quatro virtuosos” da caligrafia chinesa.

Zhong Yao鍾繇 (151–230), um funcionário do governo que foi aluno de Cai Yong, foi também o calígrafo mais importante das dinastias Han-Wei. A sua maior contribuição foi no sentido de tornar a caligrafia regular (楷書kaishu) a caligrafia padrão. 還示表Huanshi biao, uma das suas obras em caligrafia regular exibe caracteres elegantes e praticamente isentos de qualquer influência da escrita oficial, sua antecessora (Fig. 18). É, aliás, considerada a primeira peça em caligrafia regular da história. 宣示表†Xuanshì biao薦季直表Jianjizhi biao力命表 Liming Biao são outras das suas obras de renome. Xuanshi biao é considerado o primeiro exemplar de caligrafia regular conhecido. Zhong Yao é por isso considerado “o pai da caligrafia regular” e pertence ao grupo dos “quatro virtuosos” da caligrafia chinesa.

A dinastia Jin foi uma época esplendorosa na história da caligrafia chinesa, com nada menos do que quatro calígrafos de excepção. A primeira foi Wei Shuo 衞鑠 (272–349), também conhecida como senhora Wei, 衛夫人 Wei furen. Wei Shuo foi aluna de Zhong Yao. No seu tratado 筆陣圖Bizhen tu, Diagrama da posição do pincel, distinguiu sete maneiras de segurar o pincel (七勢qishi) na caligrafia regular, precursoras dos bem conhecidos 永字八法yongzi bafa, as “oito técnicas do caracter yong” de Wang Xizhi. As “oito técnicas do caracter yong” dizem respeito à maneira de caligrafar os oito traços básicos.

O segundo calígrafo de excepção foi precisamente Wang Xizhi 王羲之, conhecido como 書聖shusheng, “o sábio calígrafo”, que foi aluno de Wei Shuo. A sua opus magnum é 蘭亭序Lantingxu, Prefácio aos poemas compostos no Pavilhão das Orquídeas, considerada a principal obra em caligrafia corrente da história (Fig. 19). O original, contudo, não sobreviveu à passagem do tempo. Diz-se que foi enterrado com Li Shimin, o segundo imperador da dinastia Tang, também ele um excelente calígrafo. As cópias existentes do Prefácio aos poemas compostos no Pavilhão das Orquídeas foram feitas por Feng Chengsu, da dinastia Tang, e por um calígrafo da corte da dinastia Qing. A história por trás desta obra-prima de caligrafia é a seguinte. Para comemorar a chegada da primavera, Wang Xizhi e quarenta amigos letrados encontraram-se no Pavilhão das Orquídeas em Shanyin, um subúrbio da actual cidade de Shaoxing, no Zhejiang, no dia três de março do nono ano de Yonghe (353 d.C.). Corria uma brisa suave e o sol brilhava. Os letrados jogaram então ao 流觴曲水 liushangqushui, a festa do riacho sinuoso, um jogo do Festival de Purificação da Primavera que consistia em lançar uma taça de vinho ao longo de um pequeno curso de água sinuoso, com pessoas sentadas em ambas as margens. Quando a taça parava de flutuar, a pessoa sentada à sua frente tinha de ingerir o conteúdo e improvisar um poema. Naquele dia, os letrados embriagados compuseram vinte e seis poemas. Pediram então a Wang Xizhi que redigisse um prefácio, tendo em vista publicá-los. Num brevíssimo espaço de tempo, o igualmente embriagado Wang Xizhi caligrafou 324 caracteres em vinte e oito linhas. Embora se tratasse de um rascunho, viria a tornar-se no modelo mais seguido da história da caligrafia e exaltado como 天下第一行書, tianxia diyi xingshu, “a primeira caligrafia corrente sob o Céu”. Os traços são finos e livres, requintados e graciosos, exalando toda a atmosfera de fraternidade e alegria que o grupo de letrados gozou naquele memorável dia de primavera. Wang Xizhi é também considerado o grande mestre da variação (變化, bianhua), pois fazia questão de caligrafar os mesmos caracteres de forma diferente de cada vez que surgiam no texto. Por exemplo, o caracter zhi surge vinte vezes no Prefácio aos poemas compostos no Pavilhão das Orquídeas e de todas foi sempre escrito de maneira diferente.

Demonstrando grande versatilidade, Wang Xizhi é autor de outras obras-primas noutros tipos de caligrafia. 黃庭經Huangting Jing foi redigido em escrita regular sobre uma seda amarelada e conta com cem linhas. Embora os caracteres variem em tamanho, Wang Xizhi conseguiu que o conjunto resultasse harmonioso e natural. Esta peça está na origem do grande período áureo da caligrafia regular, a dinastia Tang. Como se disse, Wang Xizhi é o ainda o autor do método 永字八法yongzi bafa, “as oito técnicas do caracter yong”, que foi perpetuado através de tratados através dos tempos, desde Cui Yuan 崔瑗 (77-142) a Ouyang Xun 歐陽詢 (557-641) em 八訣Bajue, O princípio dos oito traços. Diz-se que Wang Xizhi passou quinze anos a treinar apenas a caligrafia do caracter yong.

O terceiro calígrafo é Wang Xianzhi 王獻之 (344–386), o mais novo e sétimo filho de Wang Xizhi. Eram conhecidos como “os dois Wang”. Xianzhi sofreu grande influência do estilo caligráfico do pai, mas foi capaz de inovar. É conhecido pela escrita cursiva de um só traço, ou seja, na qual todos os caracteres são redigidos como um único traço. Wang Xianzhi é um dos “quatro sábios da caligrafia”. A sua capacidade para inovar é visível em 洛神賦Luo shen fu, uma obra em caligrafia regular considerada mais livre e divertida do que a do seu célebre pai.

O quarto calígrafo é Wang Xun 王珣 (349–400), sobrinho de Wang Xizhi. Ficou conhecido por 書伯遠帖shu Boyuan tie, Carta para Boyuan, uma missiva dirigida ao seu amigo Boyuan 伯遠. Esta peça está entre três consideradas 三希sanxi, “as três sumidades da caligrafia”.

 

Dinastia Tang (618–907)

Na dinastia Tang surgiu um número considerável de calígrafos notáveis. Yu Shinan, Xue Ji e Chu Suiliang e Ouyang Xun compõem os chamados “quatro grandes calígrafos do início da dinastia Tang”.

Yu Shinan虞世南 (558–638) foi um confucionista e secretário imperial do reinado do imperador Taizong. É também um dos quatro maiores calígrafos do início da dinastia Tang. Aprendeu caligrafia com o monge Zhu Yong, um descendente longínquo de Wang Xizhi. A sua caligrafia destaca-se por ser suave e tranquila.

Xue Ji 薛稷 (649-713) foi um oficial que serviu a dada altura o imperador Ruizong e depois se tornou 左散騎常侍zuo sanqi changshi, um consultor dos exames imperiais. Dedicou-se ao estudo de muitas obras caligráficas de Yu Shinan e Chu Suiliang, mas criou o seu próprio estilo. Também foi um pintor e poeta de talento, ou seja, era excelente nas Três Perfeições (caligrafia, pintura e poesia). A estela 信行禪師碑Xinxing Chanshi bei, O mestre Chan [Zen] Xinxing, um oficial da dinastia budista Sui, é considerada a sua obra principal. A estela, com aproximadamente 1800 caracteres, não sobreviveu ao tempo, mas existem fragmentos de decalques a tinta. Os caracteres são de grande elegância, com traços finos, e incorporam elementos das caligrafias corrente e cursiva na caligrafia regular.

Chu Suiliang 褚遂良 (596–658 ou 659), que serviu nos reinados dos imperadores Taizong e Gaozong, foi o autor da caligrafia que se encontra em duas estelas no Pagode do Ganso Selvagem em Xi’an, o 聖教序shengjiao xu, Prefácio às escrituras budistas, composto pelo imperador Taizong, ele próprio um excelente calígrafo. Os traços dos caracteres de Chu Suiliang parecem delgados, mas percebe-se depois que encerram poder e elasticidade. Exibem vestígios tanto da caligrafia corrente como da caligrafia oficial, o que empresta à obra vivacidade e dinamismo.

Ouyang Xun 歐陽詢 (557-641) foi um calígrafo imperial que se destacou na caligrafia regular. Através da introdução de variações constantes e subtis nos caracteres impedia a caligrafia de se tornar monótona. Das muitas estelas com caligrafia sua, uma das mais conhecidas é 般若波羅蜜多心經o Sutra do Coração Prajnaparamita (Fig. 20) que se caracteriza por uma majestosa regularidade. Outra obra notável é仲尼夢奠帖zhong ni meng dian tie, Em memória de Zhong Nimeng, que consiste em setenta e oito caracteres em nove linhas. É por muitos considerada como a melhor peça de caligrafia regular da China. Apresenta grandes semelhanças com o Prefácio aos poemas compostos no Pavilhão das Orquídeas de Wang Xizhi, mas com inovações próprias.

Zhang Xu 張旭 (ca. 658–747) era um oficial da corte imperial que se entregava ao consumo excessivo de álcool. Era natural de Suzhou, na actual província de Jiangsu. Foi exímio na escrita cursiva.  Ele próprio afirmou que construiu o seu estilo a partir do espectáculo de um afamado executante de dança com espadas. Era um estilo infrene que desafiava as convenções. Zhang Xu acreditava que o álcool fazia surgir todo o seu génio e tinha o costume de se embriagar antes de caligrafar uma peça, torcendo e girando o pincel com uma velocidade frenética, a gritar e a rir. Por vezes, chegava a mergulhar o seu próprio cabelo na tinta e usá-lo como pincel para caligrafar nas paredes de sua casa. Ligava os caracteres uns aos outros através de linhas contínuas e fazendo-os variar grandemente em tamanho (Fig. 21). Devido à natureza desenfreada desta caligrafia, ficou conhecida como狂草kuangcao, cursiva louca, e tornou-se muito influente em meados da dinastia Tang. É de notar que a qualidade das obras de Zhang Xu decrescia quando se encontrava sóbrio. Zhang Xu ficou conhecido como um dos飲中八仙 yinzhong baxian, “oito imortais da taça de vinho” e como 草聖caosheng, “o sábio da cursiva”.

Huai Su 懷素 (ca.725–ca.785) apaixonou-se em tenra idade pela caligrafia mas, como a sua família era pobre, não podia adquirir os materiais necessários para a praticar. Resolveu então plantar palmeiras na sua cidade natal de modo a poder praticar sobre as folhas. Quando aos dez anos se tornou monge budista, continuou a praticar entre leituras de sutras e sessões de oração e meditação. Ao invés da maioria dos calígrafos chineses nunca foi funcionário do governo.

À semelhança de Zhang Su, abraçou o álcool como parte integrante do seu processo criativo e, tal como ele, destacou-se na caligrafia cursiva louca, tendo alcançado a fama aos trinta anos. Quando estava ébrio, escrevia por vezes sobre a veste ou nas paredes do templo ou em qualquer outra coisa que estivesse à mão. Embora Huai Su se baseasse no estilo de Zhang Xu, foi capaz de criar o seu próprio estilo. Tal como o pincel de Zhang Xu, o pincel de Huai Su girava e dançava, criando contrastes entre traços leves e pesados. Mas os seus caracteres diferiam dos de Zhang Xu por se disporem, com diferentes tamanhos, numa agradável desordem e pelas linhas graciosas dos traços, o todo conferindo uma impressão de dignidade e harmonia (Fig. 22). Costumava usar um pincel fino para escrever caracteres grandes e os seus traços, arredondados e arrojados, são muito mais finos do que os de Zhang Xu. E, quando a levantava do papel, a ponta do pincel deixava um rasto determinado na folha, através de um gancho peculiar. O seu estilo único de caligrafia ficou por isso conhecido como “traços de aço e ganchos de prata”. Como Zhang Xu demonstra controlo na liberdade e moderação no excesso considera-se que atingiu o zénite na caligrafia cursiva. Entre as obras de escrita cursiva mais aplaudidas de Huai Su conta-se a sua autobiografia. Consiste em 698 grandes caracteres em cursiva louca distribuídos por 126 linhas traçados com um pincel fino, o todo destilando uma paradoxal impressão de regularidade porque há uma força contínua que permeia toda a peça. Esta obra representa de forma magistral o exercício da liberdade com controle.

Zhang Xu e Huai Su, os dois maiores calígrafos da cursiva da dinastia Tang, são conhecidos popularmente como 顛張醉素dian Zhang zui Su, “o Zhang maluco e o Su bêbado” ou 張顛狂僧 Zhang dian kuang seng, “o Zhang maluco e o monge louco”. As obras de ambos tiveram grande influência nos calígrafos posteriores, como Yan Zhenqing, e, muito mais tarde, no século XX, o presidente Mao Zedong.

Para além de Wang Xizhi, o nome mais augusto da história da caligrafia chinesa é Yan Zhenqing 顏眞卿 (709–785). Yan Zhenqing foi um estadista que se especializou tanto na caligrafia regular como na caligrafia cursiva. Elevou esta arte a um novo patamar ao criar o estilo que tem o seu nome, 顏體Yanti, o estilo Yan. O estilo Yan é de formato quadrado, equilibrado e firme, com algo de majestoso e caracteriza-se pela força e pela ousadia, pela variabilidade de traços e por uma impressão de poder impressionante.

O desenvolvimento do seu estilo pessoal pode ser dividido em três fases: anterior aos cinquenta e cinco anos, anterior aos sessenta e cinco e anterior à sua morte aos setenta e seis. Na primeira fase aprendeu caligrafia com os grandes mestres Zhang Xu e Chu Suiliang. As suas obras mais conhecidas são 多寶塔碑duobao tabei, Estela do Pagode Duobao, e 祭姪文稿ji ji wengao, Rascunho para uma elegia ao meu sobrinho, caligrafada no ano de 758. Ao contrário do Prefácio aos poemas compostos no Pavilhão das Orquídeas, fruto de uma ocasião feliz, esta obra de Yan Zhenqing teve origem numa tragédia comovente. O seu sobrinho Yan Jiming e o pai combateram contra um exército rebelde durante a rebelião An Lushan-Shi Siming nos anos de Tianbao na dinastia Tang. Mas foram ambos derrotados e mortos. Quando lhe levaram a cabeça do sobrinho, Yan Zhenqing, desgostoso, compôs vinte e cinco versos num total de 234 caracteres. Nos primeiros doze versos foi capaz de exercer sobre si um certo controlo, mas os demais exprimem o seu grande pesar e o pincel varia em movimento e abre espaços irregulares entre caracteres e versos, de tal maneira que a sua dor se pode ver. E é essa a grande beleza desta obra. Não há peça que revele melhor a caligrafia enquanto meditação sobre a vida.

A segunda fase de Yan Zhenqing foi a da maturidade, quando passou a manejar o pincel com mais força, maior rectidão e controle e o seu estilo se acabou de formar por completo.

A última fase foi o culminar da sua realização quando consolidou o estilo e caligrafou outra obra-prima, 顏勤禮碑Yan qinli bei, Estela de Yan Qinli (Fig.23). Nesta estela encontra-se uma inscrição que Yan Zhenqing executou aos setenta e um anos de idade em homenagem ao seu bisavô, Yan Qinli. A estela foi erguida por volta do ano de 779. Encontra-se actualmente em exposição permanente no Museu Beilin da cidade de Xi’an, no Shaanxi. É a estela mais bem preservada de Yan Zhenqing. Quando foi desenterrada em 1922 encontrava-se partida ao meio, mas sem que os caracteres tivessem sido danificados. Exibe quarenta e quatro linhas nos quatro lados, num total de 1.667 caracteres.

Liu Gongquan 柳公權 (778–865) é conhecido como um dos quatro mestres da caligrafia regular, tal como Yan Zhenqing, Ouyang Xun e Zhao Mengfu. A 玄秘塔碑   Xuanmita bei, Estela do Pagode Xuanmi, com um total de 1 512 caracteres, foi erguida em 841, quando Liu Gongquan contava sessenta e quatro anos. A obra apresenta uma impressão geral de brio e de ordem, com inícios e fins de pinceladas nítidos (Fig. 24).

 

Dinastia Song (960-1279 d.C.)

Os “quatro mestres de caligrafia da dinastia Song” são Su Shi, Huang Tingjian, Mi Fu e Cai Xiang. Cai Xiang 蔡襄 (1012–1067), oficial e poeta, além de calígrafo, destacou-se nas caligrafias regular e cursiva. Os seus caracteres aparentam simplicidade e vigor. A sua obra mais representativa é 萬安橋記Wan’an qiaoji, Relato sobre a ponte Wan’an, onde registou a conclusão da ponte Wan’an.

Su Shi 蘇軾 (1037–1101), também conhecido por Su Dongpo 蘇東坡, foi um oficial e grande poeta, pintor e calígrafo. A personalidade afoita criava-lhe dissabores e encontrava-se exilado no Hubei quando compôs a sua peça de caligrafia mais célebre, 寒食帖 hanshi tie, A comida fria, onde expressava a sua solidão e desapontamento com a carreira de oficial. O tamanho dos caracteres e a distância entre eles, assim como a espessura e distância entre as linhas, variam ritmicamente de acordo com o conteúdo emocional e tornam a obra profundamente individual.

Huang Tingjian 黃庭堅 (1045–1105) foi um oficial letrado e poeta e um mestre muito criativo na escrita corrente, tendo criado o seu próprio estilo. Numa mesma linha, os caracteres podem surgir distorcidos e mal proporcionados e inventou a técnica conhecida como 飛白feibai, “branco voador”, que pode ser apreciada na peça 廉頗藺相如傳 Lian Po Lin Xiangru zhuanjuan, Biografias de Lian Po e Lin Xiangru. Consiste em pressionar o pincel com força sobre o papel e depois puxá-lo vigorosamente, de tal maneira que as cerdas se separam, deixando espaços em branco no interior de um traço.

Mi Fu 米芾 (1051–1107) foi um pintor, poeta e calígrafo de génio. Foi influenciado por Wang Xizhi mas depois criou um estilo que se designa com o seu nome, estilo Mi Fu. Mi Fu, que tinha uma personalidade excêntrica, era conhecido como米癫 Midian, “o Mi lunático”. Uma obra-prima de Mi Fu é 蜀素帖 Shusu tie, Sobre seda de Sichuan, caligrafada sobre seda preciosa de Sichuan. O proprietário da seda pediu a calígrafos de renome que escrevessem sobre ela, o que exigia um trabalho perfeito. Apenas Mi Fu se mostrou confiante e aceitou a tarefa. Caligrafou então oito poemas numa magnífica caligrafia corrente (Fig. 25).

Huizong宋徽宗 (1082–1135), cujo nome pessoal era Zhao Ji 趙佶, foi o oitavo imperador da dinastia Song e também um poeta, pintor e calígrafo de enorme talento, além de tocador de qin, um instrumento musical chinês, e perito em chá. Criou um tipo de caligrafia conhecido como 瘦金 soujinti, ouro delgado. “Ouro delgado” porque lembra filamentos de ouro retorcidos. A caligrafia de “ouro delgado” é amiúde comparada a “folhas flutuantes de orquídea” e ao “bambu que se move ao vento” e exerceu uma influência de longo alcance nas gerações posteriores de calígrafos.

Uma das obras de caligrafia mais conceituadas deste imperador é 草書千字文 caoshu qianzi wen, Um ensaio de mil caracteres em caligrafia cursiva. A peça foi caligrafada num longo rolo de mão com padrões dourados no fundo, pintados por pintores imperiais, e o conjunto emana um grande requinte.

 

Dinastias Yuan (1260-1368 d.C.), Ming (1368-1644) e Qing (1644-1912)

Zhao Mengfu 趙孟頫 (1254–1322) foi um letrado, pintor e calígrafo da dinastia Yuan que descendia da família real da dinastia Song, mas levou uma vida monástica no sul da China. Em jovem dedicou-se ao estilo do imperador Gaozong, mas adoptou depois o estilo livre e elegante de Wang Xizhi e Wang Xianzhi e excedeu-se tanto na caligrafia corrente como na regular com caracteres pequenos. A doçura e a elegância magistral das suas obras coloca-o ao lado dos três mestres da caligrafia regular, Yan Zhenqing, Liu Gongquan e Ouyang Xun. Uma das suas obras-primas intitula-se 州妙嚴寺記Huzhou Miaoyansi ji, Recordação do Templo Miaoyan em Huzhou (Fig. 28).

Chen Xianzhang 陳獻章 (1428-1500) foi um poeta, pensador e calígrafo do sul da China, um mestre famoso em literatura budista Chan (Zen) da dinastia Ming. O imperador convidou-o a deslocar-se à capital, Pequim, para o nomear membro da Academia, mas Chen Xianzhang recusou a homenagem. Preferiu permanecer na sua cidade natal, Baisha, e continuar a ser um humilde professor. A sua caligrafia cursiva louca é vigorosa e selvagem. Recorria à acima mencionada técnica feibai, “branco voador”, e a versões tão simplificadas dos caracteres que os tornava quase irreconhecíveis, além de unir a maioria dos traços num único movimento do pincel. Alguns caracteres eram enormes, outros minúsculos e o efeito do conjunto é de velocidade e de força. Um bom exemplo da sua idiossincrasia é 草書七言詩 caoshu qiyan shi, Poema de sete palavras em caligrafia cursiva.

Seguem-se nomes e obras de outros calígrafos da dinastia Ming, todos eles letrados e funcionários do governo em alguma fase da vida. Tang Yin 唐寅 (1470–1524) foi pintor, poeta e calígrafo, tendo elevado a caligrafia corrente a um novo patamar. Wen Zhengming 文徵明 (1470–1559) com talento para a pintura e a poesia, foi ainda um grande mestre das caligrafias regular e corrente, com técnicas caligráficas influenciadas por Huang Tingjian. Dong Qichang 董其昌 (1555–1636), destacou-se na pintura e na caligrafia. De início, seguiu o modelo de Zhao Mengfu e Wen Zhengming, mas posteriormente adoptou como mestres os calígrafos das dinastias Jin e Tang. A sua caligrafia caracteriza-se pela suavidade e simplicidade (Fig. 29).

Huang Ruheng 黃汝亨 (1558–1626) soube combinar o estilo de Su Shi com o de Mi Fu. Entre as suas obras destaca-se a reprodução do álbum 唐詩畫譜Tangshi huapu, Pinturas de poemas da dinastia Tang. Wang Duo 王鐸 (1592–1652) foi calígrafo, pintor e poeta. Em caligrafia, seguia o estilo de Yan Zhenqing e de Mi Fu, com traços refinados e composição perfeita. A洛神賦書畫合璧卷 Luoshen fu shuhua hebi juan, A deusa do Rio Luo, foi caligrafada em cursiva por Zhu Yunming祝允明 (1460-1526) e exibe traços dinâmicos mas coerentes e uma habilidade notável para controlar a velocidade do pincel.

Shitao石濤 (1641-1718) foi um pintor e calígrafo a todos os títulos excepcional do início da dinastia manchu Qing. Descendia da família imperial da dinastia Ming e tornou-se monge em criança para escapar a perseguições. Explorou todos os tipos de caligrafia mas preferia a corrente. Os seus traços são espessos e poderosos. Foi autor de numerosos tratados sobre arte, como 苦瓜和尚畫語錄Kugua Heshang hua yulu, Dizeres acerca da pintura do monge Abóbora Amarga, onde analisa as teorias chinesas acerca da pintura e da caligrafia.

Zheng Xie 鄭燮 (1693–1765), mais conhecido pelo pseudónimo Banqiao 板橋, foi um pintor da dinastia Qing. Tornou-se magistrado em Shandong através do concurso público mas, após doze anos de serviço e desgostoso com o funcionalismo, acabou por renunciar ao cargo. Aos cinquenta e cinco anos serviu por um curto período de tempo como calígrafo e pintor oficial do imperador Qianlong. Depois da renúncia ao cargo, tornou-se num dos 揚州八怪Yangzhou baguai, “os oito excêntricos de Yangzhou”. Gostava de pintar bambus, pedras e orquídeas (Fig. 30). Diz-se que pintava orquídeas como quem caligrafa caracteres e que caligrafava caracteres como quem pinta orquídeas. Recorria numa única peça a vários tipos de caligrafia, oficial, cursiva e corrente. Traçava uns caracteres no estilo de Wang Xizhi, outros no estilo de Wang Xianzhi, outros ainda no estilo vigoroso das estelas da dinastia Han e alguns na cursiva louca. Tudo vai mudando na sua caligrafia tal como na natureza nada permanece idêntico. E, como na natureza, tudo acaba por parecer harmonioso.

Percorrido este breve périplo por alguns dos grandes calígrafos da China imperial, constata-se que a maioria deles, e ao longo de todas as dinastias, foram funcionários do governo ou até imperadores. A caligrafia como arte esteve sempre relacionada com o poder político. Uma das razões para isso é porque a caligrafia foi, durante doze séculos, uma parte importante do concurso para o serviço público. Esperava-se que os membros da classe alta e os funcionários do governo tivessem talento para a caligrafia. E criar um estilo caligráfico individual era uma forma de sedução e de distinção social.

 

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