Um Literato no Verão

Zhou Wenju (act. entre 942-961) é o autor de uma icónica pintura de «biombos duplos» onde de modo caprichoso fez representar uma personagem em dois tempos: no primeiro plano uma cena social: um imperador jogando com seus irmãos enquanto por trás num painel o representou no seu quarto, numa cena intima.

Um pintor do século catorze iria de certo modo inverter essa dupla representação, numa pintura em que coloca em primeiro plano um literato descansando, as vestes desarranjadas, os pés descalços, num jardim. E numa pintura atrás dele, um letrado composto e aprumado, as costas direitas, numa situação social.

Em ambas as pinturas, ao fundo está exposta, numa terceira figuração, uma paisagem. A troca dos enquadramentos é uma curiosa escolha de uma narrativa subversiva para mostrar a realidade. Liu Guandao (c. 1258-1336), na pintura Gastando o Verão (Xiao xia) um rolo horizontal a tinta e cor sobre seda (30,5 x 680,7 cm) que está no Museu Nelson-Atkins, na cidade do Kansas, dispôs em redor da sua personagem recostada num primeiro plano e acompanhada de duas mulheres que se olham de pé, certos elementos que aludem ao som, que pela sua natureza, ao ser percebido de modo recôndito é sempre entendido como mais próximo da verdade.

Uma bananeira de largas folhas, usada num jardim para captar o som do vento e o tinir das gotas da chuva; um instrumento musical, possivelmente um ruan, com as suas quatro cordas e o peculiar formato redondo como a lua, que dá o nome ao yueqin, um outro de forma semelhante, e pendurado numa pequena armação, um sino.

No painel pintado atrás dele tudo parece silencioso e grave em redor do literato sentado diante da sua mesa de trabalho, servido por três jovens.

Liu Guandao revela na escolha do enquadramento o valor do tempo de ócio de um literato. De um perfumador atrás dele evolam-se nuvens com o tradicional formato que alude ao divino na natureza. No final do rolo onde está a pintura foi acrescentado um poema por Yu Jian (1366-1427) em louvor do pintor, que confirma uma raridade:

Sedento, bebe da nascente da cascata;

purificado, corta hastes de bambu.

Tão desapaixonado como o gelo ou a neve,

como se pode confundir com gente comum?

Sendo apenas um homem como ele é,

coração e olhos plenos ao desenrolar este rolo

Como gostaria de o ter conhecido um dia

e cavalgar com ele o seu grou amarelo

no vento do Outono.

Será só uma notável ironia que Liu Guandao, que aqui mostrou a incontrolável liberdade dos homens de cultura, seja mais universalmente conhecido por ser o autor do impressivo retrato contemporâneo do conquistador Kublai Khan caçando (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 182,9 x 104,1 cm, que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) feito por um nativo do Império Celeste? 

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