Bada Shanren: o espelho do vazio

As notícias graves chegavam-lhe numa sequência desesperante. Zhu Da tinha 18 anos em 1644, quando cai a dinastia Ming, a cuja família imperial ele pertencia. Pouco tempo depois morre o seu pai. À sua volta o mundo parecia desabar. Não se sabe se por protesto contra o novo poder ou pelo choque emocional que tudo aquilo lhe causou, o jovem Zhu pegou num papel e escreveu o carácter ya, que significa “mudo”, e afixou-o do lado de fora da porta da sua casa. Para aqueles que encontrava na rua e desconheciam o seu estado, usava um leque para quando lhe dirigissem a palavra. Abria então o leque e eles podiam igualmente ler nele inscrita a palavra “mudo”. É certo que já o seu pai seria mudo, mas no caso dele, não falar, parece ter sido uma decisão consciente, tomada num momento de alarme. É provável que soubesse melhor que ninguém o sentido trágico da vida de uma pessoa que não se pode comunicar com os outros através da fala. Doravante ele, que tinha as emoções à flor da pele – ficarão famosos para o atestar, os seus ataques de choro ou de riso – só se exprimirá por gestos ou através da tinta de um pincel.

De acordo com o escritor americano de origem russa, Vladimir Nabokov, a diferença entre os artistas e a maioria das pessoas situa-se no facto de que, enquanto a maior parte das pessoas capta a semelhança entre as coisas, os artistas percebem melhor as diferenças. Possuem uma forma de ver as coisas do avesso. O que é interessante no nosso tempo é que essa forma de ver as coisas de outro modo deixou de ser exclusiva dos artistas e passa a ser uma necessidade de todos. Essa será a forma eficaz de agir, como as ciências – desde a economia à biologia – não param de nos dizer. E tal como era um exclusivo dos artistas, a procura da inspiração passou a ser também uma necessidade de todos. E podemos encontrar inspiração em coisas que admiramos ou na vida de pessoas. O trajecto de algumas pessoas é um magnífico exemplo desse caminhar às avessas da maioria das pessoas. A história do pintor chinês Zhu Da (1626-1705) é bem a prova disso mesmo. Certo dia, nesse caminhar às cegas em busca das várias possibilidades do eu, descobriu o nome Bada Shanren, “o eremita dos oito grandes horizontes”. Estava encontrada a chave que para sempre o tornaria numa lenda da história da pintura chinesa. A lenda de um rebelde, um homem excessivo na forma de viver e de pintar.

 

Uma Vida em Perigo

 

Numa daquelas saborosas histórias de que os Chineses possuem o segredo e que falam da magia da pintura, conta-se como foi precoce a vocação do jovem Zhu Da para a pintura. No decurso de uma infância que se adivinha feliz, Zhen Ding, o seu biógrafo, conta que com apenas oito anos ele terá pintado uma flor de lótus num lago, com algumas pétalas caídas na água. Dizia-se que, quando as pessoas entravam na sala onde a pintura estava exposta, podiam sentir a brisa leve transportando o perfume da flor que inundava o ambiente. Mais tarde conta-se também que chegou a pintar num zhang – um rolo de pintura com cerca de 3 metros – um dragão que parecia estar sempre na iminência de voar. Duas curiosas histórias que subtilmente nos falam do perfume das flores, característica yin, e de um dragão que voa, que é claramente yang.

E, no entanto, a pintura não será a sua primeira opção de vida. Tanto o seu pai como o seu avô eram reputados mestres de caligrafia e de pintura e parece ter sido a caligrafia a despertar primeiro o seu entusiasmo juvenil. Mas, tudo isso agora, ficava para trás. De momento está apenas preocupado em fugir. Escapar de um mundo que se desmorona à sua volta. E tinha boas razões para recear os novos poderes. A sua família descendia directamente de Zhu Yuanzhang, o próprio fundador da dinastia Ming (1368-1644). Ao 16.º filho desse imperador, Zhu Quan, tinha-lhe sido atribuído um vasto domínio feudal para administrar na província de Jiangxi, um território situado entre o rio Changjiang (o Yangzi) e Guangdong, com a capital em Nanchang, onde Zhu Da se encontra agora em perigo. A norte, na capital, entrara no dia 25 de Abril de 1644 o líder rebelde Li Zicheng, à frente das suas improvisadas tropas de revoltosos. Era o culminar de anos de levantamentos populares de camponeses contra o decadente império Ming. O imperador compreende que é chegada a hora de partir. Sobe à Colina de Carvão, sobranceira à Cidade Proibida e suicida-se. O trono fica vazio. Há muito que os Tártaros Manchus se vinham preparando para esta ocasião. Sob o pretexto de salvar a China da rebelião e com a conivência e traição de alguns Chineses, tomam eles por sua vez a cidade de Pequim. A 6 de Junho instalam-se para permanecer por longos anos à frente do império. Estender o seu domínio ao sul do país já não foi tão fácil. Os focos de resistência multiplicavam-se. Em Nanquim, a capital do sul, o príncipe Fu é nomeado imperador. Em Sichuan, Zhang Xianzhong, outro pretendente, auto-proclama-se imperador do Grande Reino do Ocidente, numa aventura que traria grandes custos aos padres Católicos que lá moravam, incluindo o Pe. Gabriel de Magalhães. Mais a sul, Yong Li, ainda outro pretendente, revolta-se, logo em 1646, e toma as províncias de Guangdong e Guangxi. Os combates sucedem-se e em breve os Manchus tomam Cantão (Janeiro de 1647), onde o rebelde se refugiara. Yong Li retira-se então para Guilin no Guangxi. De novo os Manchus vão no seu encalço, mas desta vez não iria ser tão fácil. Em seu auxílio, como recorda Charles Boxer, vão 300 portugueses de Macau sob o comando de Nicolau Ferreira. Yong Li resiste e sete províncias do sul declaram-lhe o seu apoio. Os combates parece que se eternizam. Os tempos estão caóticos. O jovem Zhu, com conhecimentos históricos e literários sabe o que normalmente acontece nestes períodos mergulhados na confusão e na desordem. Vive com angústia crescente o desenrolar dos acontecimentos. Até que, em 1648, os Manchus ocupam Nanchang. Agora, a única alternativa é a fuga. E foge para a montanha Fengshin. Tem 23 anos e a experiência de alguém que tem que procurar refúgio nas solitárias montanhas moldaria para sempre o seu carácter. No momento em que percebeu que já não havia lugar para ele na sua própria terra, entendeu que a partir daí viveria permanentemente como um estrangeiro no mundo. Forçado a confiar na bondade dos estranhos. E os primeiros a acolhê-lo foram um grupo de monges de uma comunidade budista que vivia na montanha.

 

Vida de Monge

 

Talleyrand, o famoso diplomata Francês, costumava dizer que “a palavra fora dada ao homem para este poder esconder os seus pensamentos”. Zhu Da, o mudo, não possuía ou não queria fazer uso dessa capacidade. Mas, também não era essa a sua vocação. A sua era uma vocação para a Verdade, e era isso que ele iria descobrir junto dos seguidores de Buda. A prática religiosa, com a sua acção de integrar e re-ligar as pessoas, já de si seria uma vivência extremamente gratificante para alguém nas circunstâncias de Zhu Da. Que essa religião que encontrou fosse o Budismo, com o seu sentido de arte de viver, só tornou a ocasião ainda mais feliz.

Ao entrar nesse mosteiro budista no alto da montanha Fengshin, é possível que com a sua sensibilidade visual, não tenha deixado de reparar numa imagem, então muito popular, da deusa da misericórdia Guanyin, na sua versão de portadora de filhos. Ao olhar para essa imagem de uma mulher com um bebé no colo, provavelmente sorriu, como só costumam fazer as pessoas realmente solitárias e sentiu finalmente alguma paz. Essa imagem da deusa Guanyin, de resto, confundia-se agora no Império do Meio com uma outra que os Cristãos missionários traziam do distante Ocidente. Havia até pessoas bem informadas, nessa China do século 17, que sabiam que o Deus dos Cristãos era uma mulher e trazia um filho no colo. O que se torna tanto mais curioso se nos lembrarmos que Guanyin é a representação chinesa do “buda da misericórdia” indiano Avalokitesvara – um homem. Talvez a solução para este enigma da representação de Deus se encontre num quadro pintado na Europa por um contemporâneo de Zhu Da, chamado Rembrandt van Rijn (1606-1669), e intitulado O Regresso do Filho Pródigo (1669). Nessa pintura está a figura de um pai que recebe carinhosamente o seu filho, colocando-lhe as mãos nas costas. Dessas duas mãos, uma é claramente a mão de um homem e a outra é visivelmente uma mão de mulher. Mas, após esse primeiro contacto com as imagens do budismo, outras questões lhe terão aparecido de uma forma especialmente sedutora. Começando pela própria doutrina. O Budista acredita que a ascese só é conveniente após provar a vida, desiludir-se com ela e não começar pela negação. Toda a vida é decepção, diziam-lhe, e ele só o podia confirmar. O que é importante para a salvação é conhecer as quatro nobres Verdades: o sofrimento, a origem do sofrimento, a sua cura e o meio para chegar a essa cura. Uma espécie de medicina na qual é preciso esquecer a noção de “eu”. E então Zhu Da tenta esquecer-se que é Zhu Da. Adopta um novo nome, agora ele é Chuanqi, “o que transmite inspiração”. É apenas o primeiro de uma longa série de nomes que irá adoptar ao longo da vida. Vai-se habituando com naturalidade à vida no mosteiro. Talvez já suspeitasse da diferença fundamental que o distinguia dos seus contemporâneos, por isso era tão imensa a vontade que tinha de pertencer a algo ou a alguém. Vai progredindo nos graus iniciáticos e em 1653 está com 27 anos e recebe o título de mestre Budista. Sente, então, que é chegada a hora de ir, por sua vez, ensinar aquilo que tinha aprendido. Mostrar os efeitos que a força da compaixão tinha operado nele. Muda-se então para o mosteiro Hungya e começa a conquistar discípulos.

 

A Via do Pintor

 

O ano de 1659 é marcado por dois acontecimentos: um político e um outro pessoal, dois aspectos que na vida de Zhu Da sempre andaram interligados. Do ponto de vista político, esse é o ano em que toda a China é obrigada a reconhecer o poder dos Tártaros Manchus. Para que não restasse qualquer dúvida sobre a sua força, os novos senhores tinham feito publicar uma ordem logo em 1645, que mandava que todo o Chinês devia rapar o alto da testa e amarrar o cabelo numa longa trança. Um caso extraordinário de invasão do poder do Estado na vida dos cidadãos. E que era tanto mais ofensivo quanto os chineses gostavam de usar os cabelos longos e elaboradamente penteados, como sinal de masculinidade e elegância. A veia satírica do povo humilhado logo resumiu o dilema numa frase: “conserve os cabelos e perca a cabeça ou perca os cabelos e conserve a cabeça”. A nível pessoal, é desse ano que datam os primeiros trabalhos de Zhu Da em pintura. Trata-se de um álbum de 15 folhas com pinturas de flores, frutos árvores e rochas – curiosamente, alguns dos seus futuros temas predilectos. O facto de Zhu Da seguir a via da pintura é já em si um acontecimento extraordinário, pois à parte a tradição familiar que deixara para trás ao fugir, em Nanchang, ao contrário dos grandes centros como Suzhou ou mais recentemente Songjiang, não havia propriamente uma grande tradição pictórica. Então à falta de antecedentes locais, o que e como pintar? Já que o porquê não se explica.

Seria necessário conhecer a situação da pintura na China. Eram tempos marcados pela grande figura do pintor e teórico Dong Qichang (1555-1636). Ele era o principal impulsionador do reavivar de uma antiga convenção teórica que distinguia os pintores entre os “cultos amadores” e os meros “profissionais” da pintura. Sendo ele próprio, Dong Qichang, o mais proeminente representante dos primeiros. Gozava de um imenso prestígio social, alicerçado nos seus vastos conhecimentos da história da pintura. Era igualmente versado na tradição Budista e estava a par de todos os grandes debates filosóficos do seu tempo. As suas teorias especificamente sobre a pintura eram extremamente elaboradas. Em traços muito gerais, e quanto ao essencial, pode-se dizer que ele considerava que, pelo menos desde a dinastia Tang, existiam duas escolas de pintura bastante distintas: a do Norte (classificação que não é de modo nenhum geográfica mas antes deriva de conceitos próprios do budismo Chan), que se caracteriza pelo meticuloso trabalho do pincel e pelo uso da cor, era praticada por pintores profissionais e era inferior; pelo contrário, a escola do Sul realça o trabalho do pincel através da tinta, era praticada por amadores cultos e era superior. Outras oposições que se irão manifestar na teoria da pintura tradicional chinesa, como a pintura sobre seda ou sobre papel, realismo ou expressão, emergem destas teorias de Dong Qichang e marcam até hoje o debate em volta da pintura na China.

Para Dong Qichang o estabelecimento destas teorias sobre a pintura tinha ainda o mérito de o promover socialmente e foi assim que ele pôde ocupar os mais altos cargos oficiais. Muito rico, era igualmente um grande coleccionador de arte. Entre o seu espólio figurava em lugar de destaque a pintura Refúgio nas Montanhas Fuchun, a obra-prima do grande pintor da dinastia Yuan, Huang Gongwang. Mas, apesar das suas rígidas formulações, a verdade é que, tal como muitos outros “amadores cultos”, ele recorria aos serviços de “pintores-fantasmas”, que faziam obras no seu estilo para poder corresponder às solicitações. Essas obras destinavam-se principalmente a ofertas a pessoas que para ele tinham menos importância.

Zhu Da, o mudo, estava agora muito longe destes jogos de alta sociedade, que por esses dias tinham lugar nos grandes centros, como Songjiang, onde vivia Dong Qichang e o seu círculo, mas tê-los-á certamente conhecido na sua juventude. E essa memória acabará por fazer com que se reconheça inqualificável. Mas isso será mais tarde, por agora aproximava-se um ano decisivo na sua vida.

 

O Homem na Varanda

 

1661 foi esse ano extraordinário. A política e a vida sempre a correrem paralelamente. Esse é o ano em que, já muito para Oeste, na Birmânia, é assassinado o último pretendente ao trono Ming. Zhu Da deve ter perdido todas as esperanças. Tem 35 anos e de novo sente a falta de sentido da vida. Toma então uma atitude desesperada. Queima as suas vestes de monge, desce à cidade e procura conforto no vinho. As pessoas que o vêem passar na rua não têm qualquer dúvida: Zhu Da está louco.

Para lá do seu comportamento social, do que não há dúvida é que esse foi o ano em que Zhu Da entrou definitivamente na via da pintura. Será um caminho doloroso, pois ele é da estirpe daqueles que, como Rembrandt ou Van Gogh, só concebem a pintura como um acto radical de dizer a vida.

E é por isso que daqui em diante a sua vida terá a clareza de alguém que está na varanda de uma casa: ele simultaneamente vê e mostra-se. Naquilo que dele era percebido pelos outros como o comportamento próprio de um louco, deveríamos talvez ler antes de mais nada a posição de uma pessoa que diz “não”. Todos conhecemos as tremendas implicações que pode ter o facto de nos expressarmos através desse monossílabo. E é interessante repararmos no desenvolvimento de um bebé. Quando ele diz “não”, é quando começa a manifestar a sua individualidade, a sua diferença. No homem adulto, só dizer “não” já não basta. Tem que escolher um caminho, mesmo tendo a consciência de tudo quanto perde não seguindo todos os outros “sim” que sabe existirem. Matisse costumava dizer: “Queres dedicar-te à pintura? Começa então por cortar a língua, porque a partir daqui não te deverás exprimir senão através dos teus pincéis”.

 

Em Zhu Da, esse primeiro passo já está dado: há anos que ele não falava com ninguém. Faltava saber a que é que ele ia dizer “sim”. E era agora o momento em que ele partia ao encontro. Porque no caso de Zhu Da, como em Pablo Picasso, não se tratava nunca de procurar, mas de encontrar. A diferença é que enquanto procurar implica uma pergunta, e está do lado da filosofia, encontrar é só responder, ou seja, é pura poesia. Zhu Da começa por ir ao encontro da natureza. Pinta ao ar livre, compreende com o pincel como as folhas do lótus se dobram à passagem do vento. Um pintor mais antigo, Wang Liu, caracterizava esta forma de se aproximar da natureza com uma frase que ficou célebre: “Eu aprendo com o meu coração, o meu coração aprende com os meus olhos, os meus olhos aprendem ao olhar para as montanhas da minha terra natal”. Quando Zhu Da pinta os animais dá-se o milagre. As águias assumem sentimentos humanos, o seu olhar exprime desconfiança, desdém, desprezo. Os peixes têm claramente olhos humanos. Perpassa por todos eles um ácido humor negro. Será que ele estava a sublimar através das suas pinturas o desprezo que sentia pelos usurpadores manchus? Mas, não, não podia ser. Todas as pessoas que o viam passar na rua, tantas vezes bêbedo, expressando-se por gestos exagerados, não tinham qualquer dúvida, Zhu Da estava louco.

 

Um Lugar no Mundo

 

A rejeição social crescia ao ritmo da sua vontade de integração. Agora, que não estava mais com os seus amigos budistas, tentou levar uma vida laica. Sabe-se que casou, provavelmente teve filhos. As incertezas sobre vários aspectos da sua vida reflectem o facto de que durante a sua vida, Zhu Da encontrou relativamente poucos admiradores ou até coleccionadores da sua obra. Um número que foi aumentando com a sua idade. Só no nosso século é que verdadeiramente Zhu Da será respeitado como uma das mais importantes figuras da pintura chinesa. Esta dificuldade de reconhecimento radica, no entanto, na completa novidade e audácia da sua obra, distante de qualquer outro trabalho feito anteriormente na China. Mas, no complexo contexto social do seu tempo, que posição é que ele poderia esperar ocupar? A nível pessoal, o seu comportamento excêntrico, curiosamente funcionou de uma forma dupla. Se, por um lado, o forçava à marginalização social, por outro, assegurava-lhe que os seus velhos inimigos, os manchus, nunca o levariam a sério. Ao nível profissional e pegando na teorização crítica de Dong Qichang, podia-se perceber como ela só funcionava a um nível superficial. Na realidade, a pintura de Zhu Da deveria ser integrada na categoria de “culto amador”, quando de facto, essa era a sua profissão. Era daí que ele ganhava dinheiro para viver. E havia mais pintores a viverem fora deste proclamado enquadramento.

A ironia da situação de pintores como Zhu Da resultava do reconhecimento de que, tanto na teoria como na prática não existia um lugar para eles na ordenação oficial do escalonamento social. Muitos desses pintores, que de uma forma ou de outra recusavam a nova ordem manchu, criaram mesmo um termo para se auto-definirem – chamavam-se a si mesmos yimin, ou seja “as sobras”, pessoas que sobravam da anterior dinastia dos Ming e que não viam com bons olhos a chegada dos Qing. Muitos deles foram tentados pelo antigo ideal do eremita que vive em reclusão, sozinho na solitária montanha. Um ideal que sempre ressuscitava em momentos como estes de mudança dinástica. Não será esse, no entanto, o caminho de Zhu Da. Ele é o homem na varanda, ele tem que ver as outras pessoas ao mesmo tempo que se revela aos outros. Talvez não seja por acaso que a mais famosa cena da mais conhecida peça de teatro sobre o amor – Romeu e Julieta – decorra precisamente numa varanda. Não, definitivamente, ele precisava de caminhar por entre a gente.

 

O Seguidor do Dao

 

Tal como o viajante apressado que precisa de reunir com cuidado todos os elementos que lhe vão ser úteis para a viagem, nesse ano de 1661, toma ainda uma outra importante decisão – é tempo de se aliar aos círculos Daoístas. Existia entre os Daoístas uma grande tradição de resistência contra o poder. Resistência activa ou passiva que podia estar muitas vezes na origem de grandes revoltas populares.

Em termos doutrinais o budismo Chan, que Zhu Da conhecera na montanha Fengshin não era muito diferente dos ideais Daoístas. Ele mesmo dirá mais tarde: “Na minha criação, o Chan e o Dao são uma e a mesma coisa”. Há que notar, no entanto, que tem apenas 35 anos quando resolve abraçar o Daoísmo e esta era uma escolha que só se costumava fazer bastante mais tarde na vida. Normalmente efectuada por pessoas que já estavam fora da vida activa da comunidade. Na verdade, o Daoísmo exigia uma predisposição para o pensamento não convencional, uma forma de conhecimento não abstracto que habitualmente as pessoas só possuem já mais para o fim da vida.

 

Ao contrário do Confucionismo, a outra grande corrente de pensamento de origem chinesa, o Daoísmo implica uma grande disponibilidade. Enquanto o Confucionismo é didáctico e se refere à educação para viver em sociedade e adequar-se às convenções, o Daoísmo tem mais a ver com a espontaneidade, a originalidade. Daí também a sua tradição anti-poder que, no entanto, é apenas uma consequência exterior da doutrina, que fala de libertação sim, mas de libertação do indivíduo em relação às convenções que o prendem, de algum modo o iludem quanto à sua verdadeira natureza. E será sobretudo esta faceta libertadora contida no Daoísmo que Zhu Da vai aproveitar para a sua viagem.

Não é que saiba exactamente para onde vai. Mas aqui podia aprender aquilo que o grande místico espanhol S. João da Cruz (1542-1591) sabia: “Para venir a donde no sabes, has de ir por donde no sabes”. Se o importante é continuar a viagem, então o Daoísmo aligeira-lhe a bagagem de viajante. Explica-lhe como não se agarrar a pesos inúteis: “O homem perfeito usa a mente como um espelho. Ela nada aprisiona e nada recusa. Recebe mas não conserva”, como está escrito no Zhuangzi. Só que a via do despojamento total, da libertação das amarras inúteis não é fácil e por vezes os seguidores do Dao vão por caminhos extravagantes. Procuram estados artificiais para chegar a verdades naturais. In vino veritas, diriam os nossos maiores da Antiguidade mediterrânica e na China os seguidores do Dao não são diferentes. Zhu Da entrega-se a grandes bebedeiras. Nessas alturas leva demasiado à letra a ideia do necessário despojamento e vai pintar completamente nu. Aqueles que sabem do caso dizem que é apenas mais uma manifestação da sua loucura.

 

O Traço Único do Pincel

 

O seu envolvimento com os seguidores do Dao tornava-se, então, um dado adquirido. Estava na altura de dar um outro passo. Tal como fizera depois da primeira estadia num mosteiro Budista, sente que é chegada a hora de transmitir aquilo que descobrira. Mas desta vez será diferente. Quer começar tudo do princípio. Empenha-se em escolher ele mesmo o local onde deverá nascer o novo mosteiro. Um antigo templo budista em ruínas será o local escolhido. A reconstrução será demorada, levará seis longos anos. Entretanto terá tempo para aprofundar a via da pintura. Muitos dos trabalhos de Zhu Da têm sido identificados com a chamada corrente de pintura Xie-yi, palavra que significa “descrever uma ideia”. É uma forma de pintura cujo nascimento é difícil de precisar no tempo e que se caracteriza por sugerir e resumir a realidade com grande economia de meios. Requer normalmente para isso o estudo da arte da caligrafia e uma constante e apurada observação da natureza. No fim o pintor tem que saber registar a sua ideia com grande espontaneidade, quase como uma reacção instintiva, sendo esta verdadeiramente a única regra que o pintor Xie-yi deve respeitar.

Essa espontaneidade do artista era tanto mais apreciada quanto tradicionalmente o primeiro traço feito com o pincel numa pintura era identificado com o Sopro original, aquele que emana do Vazio primordial, uma noção fundamental na cosmogonia chinesa. Sem a presença desse Sopro original – cuja presença seria assim um pouco, para nós ocidentais, como colaborar com Deus na criação do mundo – a pintura era desprovida de sentido. Por isso esse primeiro traço deveria ser longamente meditado, pois uma vez aplicado, com único gesto rápido, ele teria de manter a energia de um laço de união entre o homem-pintor e o resto da natureza. Como parte do Sopro original, esse traço é um elemento essencial ao funcionamento do par Yin e Yang do qual brotam os 10 mil seres. A questão era tão séria que, para se preparar para esse momento único de transmitir o Sopro à pintura, o pintor podia levar semanas. O que estava em causa nessa pintura, que não admite a ideia de esboço, era mostrar mais do que uma semelhança, uma presença. Uma pintura paradoxal, feita de essências e não de aparências.

Zhu Da sabia como ninguém utilizar essa linguagem do traço único do pincel, cuja aparente facilidade tem origem na escrita ideográfica. O reconhecimento desse seu saber fá-lo-á anos mais tarde quando encontrar esse nome mágico de Bada Shanren. Mas isso será muito mais tarde. Por agora ele está feliz porque acaba de ver realizado o seu projecto de construir um mosteiro Daoísta. Põe-lhe o nome de “Nuvem Verde”, Qing-yun. Corre o ano de 1667 e ainda não sabe mas é ali que irá viver os próximos cinco anos, como chefe e guarda da comunidade.

 

O Encontro no Espelho

 

A sensação de perda será sempre um factor decisivo na vida de Zhu Da. Em 1672 tem 46 anos e recebe a notícia da morte do seu mestre, o abade Hongmin. O choque de mais esta morte tê-lo-á feito decidir-se a ser, a partir de então, um monge artista itinerante.

Nessa sua nova faceta, a fama do seu trabalho vai aumentando e começa a conquistar um pequeno número de admiradores. Certo dia, decorre o ano de 1679, essa fama chega aos ouvidos de Hu Yitang, o governador de Linchuan que o convida para uma estadia na sua residência, de acordo com as regras habituais de mecenato vigentes à época. Só que o convite vinha envenenado.

Ao chegar, é informado sobre uma condição que lhe é imposta: terá que colaborar num projecto de História da dinastia Ming. Um projecto encomendado pelo próprio imperador, o fabuloso Kangxi. Ora, colaborar com as autoridades era algo que não estava definitivamente nos seus planos. Mas, a uma encomenda imperial não era simplesmente possível dizer não. Encurralado, recorre à única saída possível. Não diziam as pessoas que ele era louco? Muito bem, eis uma bela ocasião para o provar. Zhu Da acentua então o seu carácter extravagante.

 

Multiplicam-se as ocasiões em que é visto nas tabernas a cultivar o prazer do vinho. Li Bai, o grande poeta dos Tang, parece que fala por ele, quando escreve: “Quando estou bêbedo ignoro céu e terra, trôpego, procuro o leito solitário, esqueço a minha existência: este o maior de todos os prazeres”. Num homem mudo a bebedeira parece mais visível; o gesticular descontrolado, a vontade inútil de comunicar por sons, os ataques de choro ou de riso.

O mecenas, finalmente, não tem outro remédio senão deixá-lo seguir a sua vida de boémio louco. Volta então a calcorrear os caminhos em volta de Nanchang, de taberna em taberna. Anda já perto dos 60 anos, tinha idade para ter juízo, dir-se-ia. Mas a única coisa que vem adquirindo de uma forma segura é uma grande intimidade com os utensílios da sua pintura. Descobre cada vez mais nomes para identificar as suas pinturas. Durante um tempo assina simplesmente Lu, que significa “asno”, um qualificativo injurioso que se chamava aos monges. Até que, subitamente, num dia feliz, compreende como sai luminoso o traço escuro do pincel e assina a sua pintura com 4 caracteres: Ba da Shan ren (ou Pata-chan-jen), “o eremita dos oito grandes horizontes”.

Os oito horizontes eram as oito direcções do espaço que o artista podia revelar com um único traço de pincel. O nome contém ainda uma alusão ao sutra Budista Badaren Jue-Jing, que fala dos oito grandes despertares do Homem. O seu domínio da caligrafia permite-lhe ainda que, ao assinar os 4 caracteres, eles se assemelhem a outros dois cujo significado era “para rir” e “para chorar”, duas características que os contemporâneos sempre associaram à sua personalidade. Estava-se em 1684, faltavam-lhe dois anos para atingir os 60 e ele sabia que tinha alcançado o ponto mais alto a que um pintor pode chegar. Doravante todas as suas pinturas terão essa assinatura mágica: Bada Shanren e é assim que ele passará a ser conhecido.

 

Shitao, um Amigo na Pintura

 

What’s in a name?”, perguntava no auge do desespero da incompreensão a jovem donzela dos Capuletos de Verona. E ela mesmo respondia; “it is nor hand, nor foot, nor arm, nor face, nor any other part/ Belonging to a man.” De facto, aparentemente, como ela dizia “That wich we call a rose/ By any other word would smell as sweet”.

E, no entanto, sabemos da importância que têm os nomes. Zhu Da certamente que sabia, pois transportou consigo toda a vida esse nome Zhu dos derrotados. E apesar de ter usado muitos outros nomes ao longo da vida, só mudou de facto o seu nome para Bada Shanren quando a pintura se tornou mais importante que a vida. Terá sido por isso com grande emoção que um dia ouviu falar de um parente – pertencente a essa, agora maldita, família Zhu – que também se dedicava à pintura e que começava a ficar famoso em Yangzhou, na província de Jiangsu. Este parente distante e mais novo do que ele chamava-se Shitao (ou Tao-chi) (1642-1707). O seu caminho na vida tinha sido bastante parecido com o de Bada Shanren. O pai de Shitao fora assassinado por membros do seu próprio clã durante os dias tumultuosos que se seguiram à chegada dos manchus, quando ele tinha apenas 3 anos. A criança fora por isso, confiada a um mosteiro. Depois de adulto também andara vagabundeando de terra em terra, vendendo as suas pinturas. Tal como Bada Shanren também a sua posição social era inqualificável. A sua pintura era simultaneamente um modo de ganhar a vida e um meio de expressão individual, própria dos “amadores cultos”. Era por isso também considerado um excêntrico.

Os dois homens têm certamente muito para conversar. E Bada Shanren escreve-lhe – existem hoje 13 dessas cartas que escreveu ao seu parente. Envia-lhe pinturas para ele completar. Shitao responde-lhe e pede-lhe pinturas. Envia-lhe também obras suas. Numa delas, datada de 1696, vê-se um pescador junto a um rio e ele escreve: “O céu está atravessado por nuvens que desaparecem ao longe, com um sorriso nos lábios, o pescador sentou-se junto à água. Em vez dos peixes brancos, ele pesca o verde primaveril. Para além do universo criado, ele alcança o Vazio Supremo.” Shitao não era, por outro lado, um “artista louco”, como era Bada Shanren.

Isso permitiu-lhe desenvolver todo um edifício teórico que o iria tornar numa das figuras mais importantes da história da pintura chinesa, reconhecido como tal ainda antes do fim da dinastia Qing.

A sua teoria era, de certo modo, o contraponto das ideias de Dong Qichang. Enquanto este entendia que o pintor, conhecedor das obras do passado, tinha que as absorver de uma forma selectiva, Shitao insistia na necessidade de começar de novo, já que o culto do passado atingira o convencionalismo. E era urgente o pintor libertar-se desse convencionalismo.

Para isso propunha um método que não era um método: “Antes dos velhos mestres estabelecerem um método, eu pergunto-me que métodos é que eles teriam?” Certamente a sua posição marginal face às convenções sociais permitia-lhe ver aquilo que aos outros escapava. E as suas teorias podiam bem ser a voz que Bada Shanren, o mudo, não possuía. Como Bada Shanren, ele sabia ser ironicamente provocador ao falar sobre o convencionalismo, pois, dizia ele, a verdade é que “as barbas e as sobrancelhas dos antigos não crescem na minha cara”.

Os laços fortes da amizade uniram no fim da vida estes dois artistas subversivos. Viviam longe um do outro, mas que importa. Como dois altos troncos de bambu que crescem lado a lado, fiéis à sua natureza independente, eles vão crescendo sempre para o alto. Indiferentes à chuva e ao vento, ao nascimento e à queda das folhas, debaixo da terra as raízes tocam-se. Cada um fica a saber que, algures, um outro está a seguir na mesma direcção.

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