Quando os filósofos chineses,
mas também os outros, sonham,
O mundo pula e avança/
Como bola colorida/
Entre as mãos de uma criança
(Gedeão, 1955).
Foi assim na Antiguidade Chinesa com os filósofos das linhas taoista, Liezi (列子, ?450-375 a.C) e Huainanzi (淮南子, 179-122 a.C), que sonhavam com paraísos igualitários, por exemplo o paraíso de Huaxu (华胥), a mãe do primeiro imperador Fuxi (伏羲), o Dragão Azul, sendo descrito como um lugar sem lugar, utópico, absolutamente paradisíaco, onde, de acordo com a melhor tradição taoista, todos seguem a sua natureza espontânea, sem necessidade de se conterem ou recalcarem, porque os sentimentos positivos ou negativos se dissolvem num vazio, que não significa indiferença, mas antes o florescimento do movimento correcto, aquele que permite as viagens espirituais na maior das felicidades para cada um de acordo com o seu estilo próprio. No paraíso de Liezi:
O clima é suave e não há epidemias. As pessoas são gentis e complacentes por natureza, não discutem, não lutam, têm corações doces e ossos fracos, nunca são orgulhosas nem invejosas. Velhos e novos vivem como iguais e não há governantes nem governados. Os homens e as mulheres misturam-se livremente, sem intermediários nem presentes de noivado. Habitam perto da água e não precisam de semear ou cultivar a terra, nem de tecer ou de se vestir, porque o clima é muito ameno. Vivem cem anos sem doenças nem mortes prematuras (…) Por tradição são amantes da música. (Graham, 1990: 102/103)
Na verdade, todo este bem-estar só é acessível a quem tenha cultivado o Tao (道 Dào), ao sábio, à pessoa verdadeira, que soube escutar e assumir a sua própria natureza, que bem se desenvolve, segundo a melhor tradição taoista, em estreita comunhão com a Mãe Natureza. Pelo que seria ingénuo imaginar que esta proposta de paraíso é acessível a qualquer um, sobretudo se esse um for apenas mais um indiferente ao seu eu espontâneo e a terceiros. Os taoistas apenas com os outros são benevolentes e praticam o liberal “deixa andar”, tão bem resumido, no século XVIII, no célebre aforismo talvez do economista Turgot, laissez faire, laissez passer, já que advogam regras éticas de conduta muito específicas, desde o alegado fundador do Taoísmo, Laozi (老子). Este postula uma atitude existencial para se estar bem na vida, que será alargada pelos seus seguidores ao mundo dos sonhos. Recorde-se que para Laozi há que cultivar três tesouros, como nos indica o capítulo 77 do Livro da Via e da Virtude (《道德经》), são eles: a compaixão, que viabiliza a coragem; a frugalidade, que permite a generosidade, e a humildade, virtude atribuível ao melhor dos governantes.
No capítulo 39 desta mesma obra percebemos o valor filosófico da unidade, aquela que permitirá a concretização de uma dimensão espiritual e onírica:
Desde os tempos remotos, existe a unidade.
Pela unidade, o céu ficou claro,
Pela unidade, a terra ficou firme,
Pela unidade, o espírito ficou forte,
Pela unidade o vale ficou cheio,
Pela unidade os dez mil seres amadureceram,
Pela unidade senhores e príncipes transformaram-se em bons governantes.
(昔之得一者/天得一以清/地得一以宁/神得一以灵/谷得一以盈/万物得一以生/侯王得一以为天下正其致之)
(Graça de Abreu, 2013: 104/105)
Quando o filósofo defende que a unidade conduz todos os seres ao seu destino essencial, ou em termos mais ecológicos, ao seu amadurecimento, não se afasta do Clássico das Mutações (《易经》), concebido durante a antiguidade chinesa e sistematizado pela escola confucionista. Aqui a unidade é pensada em termos de “Unidade entre as gentes”( 同人 Tóng rén), na forma de fraternidade, sendo o hexagrama constituído por dois trigramas, na base o trigrama de Fogo (离/離 Lí) e no topo o Céu ou Criativo (乾 Qián). Estes, de acordo com o Juízo do texto, conduzem ao sucesso, incluindo nas viagens, desde que haja perseverança (《同人于野,亨,利涉大川,利君子貞》Zhang, 84: 67).
Quanto à imagem, vemos Céu e Fogo conjugados, imaginando facilmente milhares de estrelas a luzirem e a comunicarem num profundo entendimento, em companheirismo existencial que conduz ao êxito por partilha de afinidades, ou de um mesmo espírito, apesar das distâncias e da diversidade concreta de cada um por causa dos seus limites idiossincráticos. Estes, uma vez ultrapassados, deixam para trás as humilhações e outros condicionalismos, rumando à alegria e ao sentido de pertença a uma mesma dimensão, em que pelo menos os vizinhos, aqueles que se entendem, estarão unidos na tentativa de realização dos melhores ideais para a materialização do bem comunitário.
Muitos séculos volvidos, em diálogo com a Utopia de Thomas More (1478-1535), ou com os tipos posteriores de socialismo utópico europeu, desde o Conde de Saint-Simon (1760-1825), passando por Charles Fourier (1772-1837) ou por Robert Owen (1771-1858), já à entrada do século XX, vamos encontrar em Kang Youwei (康有為/为1858-1927) a mesma defesa de uma sociedade que muitos consideraram utópica, mas com o recurso ao elogio à unidade, típico da melhor tradição chinesa, aliado à apresentação de uma proposta filosófica que foi levada a sério nos derradeiros cem dias de reforma permitidos ao imperador Guangxu (光绪, r. 1889-1898), antes da imperatriz viúva Cixi (慈禧太后, 1835 -1908) ter terminado com tais laivos inovadores, enclausurando o sobrinho, em 1898, colocando-o em prisão domiciliária, suspeitando-se que o tenha mandado envenenar mais tarde em 1908, altura em que viria a falecer, enquanto Kang Youwei se via forçado a fugir para Hong Kong.
A verdade é que o filósofo Kang Youwei tentou modificar a imagem de Confúcio, transformando-o num filósofo reformista, e viria a ser, mais tarde, seduzido tanto pela filosofia taoista como pela budista, tendo-se empenhado, do ponto de vista muito prático e concreto, na transformação do seu mundo, nomeadamente pela organização de uma sociedade contra os pés atados. Portanto, procurou fazer o melhor ao seu alcance pelo mundo que o rodeava. Assim, reconhecendo, como premissa budista, que o sofrimento era universal, experimentou navegá-lo e ultrapassá-lo na barca da unidade, por isso escreveu O Livro de Um Só Mundo (《大同书》Dàtóng Shū) , entre 1901 e 1902, que viria ser publicado parcialmente 1913, mas na versão completa apenas em 1935, já volvidos oito anos após a sua morte. Para se atingir a grande unidade (大同 dàtóng), na qual toda a humanidade se sente igual, envolvida e rodeada pela grande benevolência, é necessário ultrapassar nove fronteiras: primeira, as divisões geográficas; segunda, as separações sociais; terceira, as fronteiras da raça; quarta, a separação entre os sexos; quinta, os limites nos relacionamentos familiares; sexta, as fronteiras profissionais; sétima, as desigualdades geradas pela organização institucional; oitava, a separação entre os seres naturais; nona, as fronteiras provocadas pelo sofrimento, por exemplo, ao seguir-se uma alimentação omnívora. Diz-nos Kang Youwei, num aparte: “(O remédio para o sofrimento, reside, deste modo, em abolir estas nove fronteiras. As partes seguintes do livro tratam em pormenor de cada uma destas fronteiras, da abolição delas e da sua substituição por Um só Mundo de Completa Paz-e-Igualdade)” (Baskin, 1972: 633).
Note-se que a remoção destas fronteiras depende, antes de mais, de uma atitude existencial específica, já que se trata menos de proceder ao levantamento de certas barreiras de natureza exterior e mais de natureza interior. Ou melhor, dependerá da atitude ética de cada um a vontade de trabalhar no sentido de criar um mundo diferente. Se as pessoas não reconhecerem a necessidade da eliminação dos limites psíquicos e físicos pela compaixão sentida por todos os seres vivos, estes nunca serão questionados, nem em última análise afastados.
A proposta filosófica de unidade, baseada na igualdade e na grande benevolência ou amor pela humanidade, não termina na primeira metade do século XX, já depois da implementação da República Chinesa com Sun Yat-sen (孫文) pela altura dos tempos mais arreigados do Movimento da Nova Cultura (新文化 Xīn Wénhuà,1915-1919) estende-se pela era do socialismo espiritual e ecológico dos nossos dias, aquele professado pelo presidente Xi Jinping (习近平), nomeadamente com o plano de criar uma só rede comercial e cultural que una grande parte dos países do nosso planeta. Refiro-me, como é óbvio ao príncipio estratégico “Uma Faixa, Uma Rota” (一带一路 Yī dài Yī lù) (Alves, 2022:67), onde a par da tentativa de reavivar uma antiga rota comercial, a Rota da Seda, se acalenta o sonho de prosperidade para a China, o famoso Sonho Chinês (中国梦 Zhōngguó Mèng) só plenamente concretizável quando toda a terra estiver unida em torno dos benéficos propósitos da paz e das boas trocas comerciais com o alargamento das vias que ligam a China à Europa via Ásia Central, ou a África e ao Sudeste Asiático, transformando senão toda a terra pelo menos grande parte dela numa comunidade fraterna, à semelhança da figuração avançada no hexagrama da Unidade Humana, Tong Ren, com todos os seres afins a brilharem em amor e compaixão, quais estrelas igualmente sorridentes, num céu exterior unido por seres eticamente refinados e repletos de unidade interior.
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Bibliografia
Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau.
Baskin, Wade. 1972. Classics in Chinese Philosophy. Totowa, New Jersey: Helix Books, Rowman&Allanheld.
Gedeão, António. 1955 “Pedra Filosofal”. Movimento Perpétuo. Biblioteca Nacional. 2006. Disponível em: https://purl.pt/12157/1/poesia/movimento-perpetuo/pedra-filosofal.html, acedido a 8 de novembro de 2022.
Graça de Abreu, António. 2013 (trad.). Laozi. O Livro da Via e da Virtude. Edição Bilingue. Lisboa: Vega.
Graham. A.C (Trad.) 1990. The Book of Lieh-tze. A Classic of Tao. New York: Columbia University Press
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.