O que é o Dao

Eis a Via, o Dao, o inefável, o que não se pode expressar, nem nomear, nem conhecer, mas que talvez se possa atingir, com o qual com certeza nos devemos sintonizar. O Dao entronizado como anterior ao Céu e à Terra; o Dao que tudo perpassa e misteriosamente ordena. Essa oculta Via tem sido, para as mentes ocidentais, um dos principais pontos de referência e fascínio da cultura da China e do pensamento chinês.

De facto, no Ocidente, o conceito de dao é imediatamente (e quase em exclusividade) relacionado com as doutrinas ditas daoistas (ou da Via), Láucio (Laozi, Velho Mestre) e o seu famoso “Livro da Via e da Virtude”, onde se espelha o dao tal como o parágrafo anterior o descreve. Contudo, o termo não foi criado por Láucio, que o herdou da tradição, e foi desde sempre utilizado por todos os pensadores chineses, incluindo confucionistas e budistas, existindo diferenças de concepção, apesar de, em todos os casos, estarmos perante um significado geral comum.

 

Cada ser tem o seu dao

Dao pode significar, literalmente, via, caminho, estrada; mas, derivadamente, denota o modo ou o processo através do qual algo é realizado ou ocorre.

Ora esta segunda acepção é a chave que abre a palavra a um conteúdo reflexivo e filosófico propriamente dito. A palavra dao é, assim, utilizada com este sentido mas aplicada a realidades ou entidades de ordem diferente. Existe o que Confúcio chama a Grande Via (Da Dao), que poderemos considerar a Via do Céu (ou princípio criativo); a Via atribuída a uma actividade, como a Via do Governante ou do Guerreiro; a Via do Homem de acordo com a sua natureza e mesmo o dao que esse homem realmente segue, de acordo com o seu livre arbítrio e a sua subjectividade.

 

É Láucio quem dá ao conceito de Via uma maior abrangência ontológica

Para o Velho Mestre, a Via é anterior ao Céu, à Terra, ao Homem e a todas as coisas. Ela é a sua origem. No pensamento de Láucio, a Via não é uma ideia, mas uma entidade objectiva, ainda que não possa ser expressa ou nomeada. Inefável, a Via é uma espécie de destino que se vai cumprindo, regulado pelo incognoscível. Láucio reconhece a impotência do pensamento (e da linguagem) para conhecer ou explicar a Via: “Algo informado, completo em si mesmo/ Anterior ao Céu e à Terra/ Tranquilo, vasto, solitário e imutável(…) Não sei o seu nome, chamar-lhe-ei dao” (Dao De Jing, 25), sabendo que o que pode nomear não é o dao (op.cit., 1). Finalmente, da teoria do mestre daoista poderia ressaltar que a Via é a regra universal oculta, que tudo governa e distribui. No entanto, Láucio considera-a como ser e não-ser, isto é como aparência e mistério, o visível e o invisível. A Via está na origem de tudo: “Da Via nasce o Um/ Do Um nasce o Dois/ Do Dois o Três/ E do Três os Dez Mil Seres/ Estes carregam o yin nas costas e o yang nos braços/ obtendo a harmonia pelo qi.” (op.cit., 42) Ou ainda: “A Via é grande/ o Céu é grande/ a Terra é grande/ e o Homem é grande/ Eis porque o Homem é um dos quatro grandes do universo/ o Homem segue a (Via da) Terra/ a Terra segue o Céu, o Céu segue a Via/ Esta segue o seu próprio caminho” (op.cit., 25).

Sendo a linguagem incapaz de dar conta da Via, tal não significa que ela não possa ser atingida. Ora atingir a Via, sem ser através da linguagem, gerou a miríade de práticas daoistas que se foram desenvolvendo ao longo da História. Para atingir esse estádio, o sábio poderá passar por diversas fases, cujo culminar será realizado no final de um processo de retorno em que vida e morte se confundem num fluxo primordial. Trata-se, no limite, de um processo metonímico e não metafórico, ou seja, o sábio terá de se assemelhar à própria Via. Estas concepções viriam a ter repercussões importantes no budismo, nomeadamente na sua vertente chan (zen, em japonês), que se desenvolveu na China a partir do século II.

 

O deslocamento moral operado por confúcio e seus discípulos

Recuemos ao século VI a.E.C., quando com Confúcio e depois com os seus seguidores se operou um deslocamento no pensamento chinês que, de algum modo, faz lembrar parte do que foi perpetrado por Sócrates no pensamento grego, isto é, um deslocamento no sentido do ser humano e da ética. A Via passa, de forma geral, a ser a Via do Homem e consiste na recuperação da sua natureza original (moral), que lhe foi proporcionada pelo Céu e é palmilhada através do cultivo de si. Segundo Xunzi, Confúcio terá distinguido a Grande Via (大 道 da dao) da Via do Homem, reflectindo sobre o seu carácter ontológico: “A Grande Via é o que altera, transmuta e, consequentemente, aperfeiçoa os dez mil seres” (Xunzi).

Contudo, a ontologia da Via não preocupa particularmente Confúcio, na medida em que o sábio recupera a tradição anterior a Láucio, segundo a qual o homem não tem meios para conhecer ou interferir na Via do Céu, como vem referido no Comentário de Zuo: “A Via do Céu é longínqua, a Via do Homem é próxima. À primeira não se pode aceder. Como a conheceríamos? Como conhecerá Zao a Via do Céu?”

Seja como for, não podemos separar no confucionismo o Homem do Universo ou considerar que a explanação de uma ética não pressupõe uma ontologia. Confúcio, ao proclamar, segundo Mêncio e Zhu Xi, uma homologia entre o Céu e a natureza moral de cada indivíduo denota uma concepção do mundo em que cada homem é “filho do Céu”, isto é, herda o seu princípio criativo, que se manifesta na inteligência, capacidade de compreensão, no livre arbítrio e, sobretudo, na capacidade de regular a sua vida de forma a recuperar a sua natureza ética original. Sendo a natureza essencialmente “boa”, porque o seu curso é harmonioso e sem oposição, como constatamos pela experiência, logo a Via do Homem deverá seguir a Via da Benevolência (Ren).

Já na dinastia Song, em pleno e efervescente neo-confucionismo, os irmãos Cheng  definem Via, utilizando o conceito de Li (padrão). “Os actos do Céu não têm som nem cheiro: a sua substância é chamada mutações (yi) e o seu padrão (li) chamada Via” (Cheng Hao). Por seu lado, Cheng Yi afirma: “A alternância do yin e do yang é chamada a Via, mas a Via não é yin nem yang. Pelo contrário, é aquilo pelo qual o yin e o yang alternam. (…) Sem yin e yang não há Via, mas aquilo pelo qual o yin e o yang são é a Via. O yin e o yang, quando realizados, são qi. Qi é o que se forma em baixo; a Via é o que se forma no alto” (Cheng Yi). Ou seja, como depois explica Zhu Xi, a alternância do yin e o yang produz qi, mas a regra através do qual o fazem chama-se Via. Estaríamos aqui perante o chamado (imperfeitamente) “idealismo neo-confucionista” pois Zhu Xi distinguiria, assim, entre o “fenómeno/aparência” (em baixo) e o “princípio/ideia” (em cima). Este princípio permanece oculto, não pode ser visto, ouvido ou cheirado, portanto não é apreensível pelos sentidos. Resta saber se, ao definir a Via como padrão (li), nomeadamente a partir de Cheng Yi e da sua Escola do Padrão (Li Xue), os neo-confucionistas a entendem como transcendente ou meramente como transcendental, isto é, se admitem a existência de um mundo separado, ao modo de Platão, ou se a Via se existe, ainda que de modo subtil, neste mesmo universo. Existe ainda a Via Menor (xiao dao) por oposição à Via da Virtude (de dao), isto é, a via concreta dos homens que se deixam dominar pelos desejos egoístas e pelas paixões. Ao longo da História, o conceito de dao manteve sempre o mesmo valor semântico de via, embora as suas concepções específicas tenham conhecido, de acordo com as épocas, previsíveis mutações.

 

Quanto à questão “genealógica”, Láucio encontrará numerosos opositores

O próprio Zhuangzi, apesar de seguir, numa primeira fase, a ideia de Laozi, segundo a qual na origem de tudo era a Via, acaba por dizer que “a Via pertence ao Céu”, o que significa que “a Via é subordinada ao Céu”. Também o “Grande Apêndice ao Livro das Mutações”, escrito pouco depois do Dao De Jing, discorda de Láucio, afirmando que a Via é “a alternância do yin e do yang”, o que significa que não é anterior ao Céu e à Terra, nem dá origem ao Um, como defendia o Velho Mestre.

 

Para o primeiro dicionário chinês

“Explicação de Palavras e Caracteres”, compilado no século II, “Dao é o caminho através do qual se anda; esse caminho quando obtido chama-se dao”. Portanto, o dao será o modo como se processam as mudanças no universo e nas coisas. O processo criativo do universo, do Céu, da Terra e dos dez mil seres é o dao.

 

 

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Imagem: Zhou Jin, Ouvindo a chuva

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