A tradução do Tao Te King a partir das fontes chinesas. Algumas notas

Nestas notas apresenta-se a metodologia seguida na elaboração de uma nova tradução portuguesa1 do Tao Te King, um texto filosófico relativamente curto, com pouco mais de 5000 caracteres, que, segundo a tradição, terá sido escrito por volta do século VI a.C. por um filósofo conhecido por Lao Tse. A tradução foi feita a partir dos textos clássicos chineses, que se procurou seguir o mais fielmente possível, sem adicionar nada para além do essencial e tentando respeitar ao máximo o seu estilo conciso e a ambiguidade presente em muitas das suas frases, por se entender que o texto é propositadamente enigmático, de modo a estimular o leitor a apreender intuitivamente o seu sentido.

A decisão de fazer esta nova tradução ficou exclusivamente a dever-se ao interesse que a obra despertou ao tradutor, há mais de três décadas, e ao desejo de elaborar uma tradução comentada, a ser partilhada com familiares e amigos mais próximos. Não havendo a intenção de a publicar, a sua elaboração foi prosseguindo lentamente, e sem pressa, ao longo de três anos, tendo sido prestada muita atenção a todos os pormenores. Se tivesse havido pressa, o resultado teria sido certamente bem menos satisfatório, «porque se leva sempre muito tempo a fazer uma coisa como deve ser»2, como nos diz Chuang Tse. Como o estilo de composição usado nos textos originais chineses do Tao Te King é extremamente conciso, à sua tradução aplica-se o que nos diz Nietzsche a propósito do trabalho filológico, no final do prefácio de Aurora: ela exige toda a delicadeza, cuidado e lentidão que um ourives põe no seu trabalho, e «não alcança nada se não o alcançar em lento».3

Foi por ter sido executado em lento, que o trabalho realizado pôde contemplar o estudo paciente e cuidadoso de cada um dos caracteres e de cada uma das frases do Tao Te King, essenciais para que o texto traduzido pudesse ir evoluindo, passo a passo e ao longo dos meses, aproximando-se o mais possível de uma restituição fiel tanto da dimensão imagética e poética do texto original como dos padrões estilísticos usados no encadeamento das frases de cada estrofe.


O estilo enigmático do
Tao Te King

A escrita chinesa clássica é muito concisa, sendo frequentes as frases sem verbos. Raramente há um pronome pessoal e só o contexto permite saber, e nem sempre com toda a certeza, se uma frase se refere ao passado, presente ou futuro, ou se o sujeito é singular ou plural. Além disso, um mesmo caracter4 pode ser usado como sujeito ou como verbo – na voz activa ou passiva – e ter vários significados diferentes, dependendo sempre do contexto. Os textos clássicos não são, por isso, de interpretação fácil, mesmo para um chinês, porque a informação presente no texto não é uma estrutura sólida com base na qual se possa facilmente construir uma interpretação definitiva.

Como no Tao Te King se usa um estilo de composição excepcionalmente conciso, de interpretação especialmente difícil, cada uma das várias escolas de pensamento que surgiram posteriormente na China o interpretou a seu modo, tendo sido escritos, ao longo dos séculos, muitos comentários ao Tao Te King expressando opiniões muito diferentes sobre o sentido preciso dos seus ensinamentos. Não é por isso de admirar que as traduções existentes no mundo ocidental, grandemente influenciadas por esses comentários, correspondam a interpretações muitas vezes divergentes e até antagónicas, e que se tenha criado a ideia de que o Tao Te King não é mais do que uma antologia de aforismos, sendo impossível encontrar uma interpretação coerente para a globalidade da obra.

No entanto, o facto de ser possível interpretar o Tao Te King de modos muito diferentes não significa necessariamente que seja impossível apreender uma linha de pensamento atravessando todo o texto. Pelo contrário, esta característica sugere que se pode encontrar mais do que uma, e que sejaprecisamente por isso que o Tao Te King pôde ser adoptado como fonte de inspiração por escolas de pensamento muito diversas. Alguns dos primeiros missionários ocidentais que o leram chegaram, por exemplo, a sustentar que a sua doutrina consistia num «cristianismo primitivo», exposto de um modo peculiar ao Oriente.

Tudo indica que a natureza invulgarmente concisa e enigmática do Tao Te King é propositada, destinando-se a obrigar um leitor que queira apreender o sentido de cada um dos seus capítulos a ler e reler várias vezes o seu texto até se «fazer luz.» Podemos, assim, dizer que o Tao Te King encerra «um mistério cuja chave o leitor deve procurar.»5 O estilo paradoxal utilizado em muitos dos seus aforismos — que nos dizem, por exemplo, ser o fraco quem vence o forte e que o melhor modo de governar uma nação é não a governar — exige que se olhe o mundo por um ângulo fora do comum, para compreender o seu sentido. Por outro lado, a maioria dos capítulos do Tao Te King é composta por secções que, numa primeira leitura, parecem desconexas, exigindo ao leitor um esforço mental para «fazer a ponte» entre elas, de modo a construir e apreender o seu sentido. E, muitas vezes, este só emerge claramente quando se consideram, em conjunto, os vários capítulos que abordam um mesmo tema. Ou seja, o estilo utilizado no Tao Te King parece ser um convite para que o leitor tente pelos seus próprios meios apreender a visão do mundo e o modo de viver preconizados, tendo, para além do esforço, ainda o prazer de os ir adivinhando lentamente.

Parece ser esta, pois, a característica do Tao Te King que explica o porquê de um texto ambíguo e obscuro, à partida inacessível ao comum dos leitores, se ter tornado no livro oriental mais vezes traduzido no ocidente.


A relação entre o estilo do texto
e a filosofia que nele se expõe

O Tao, o tema central do Tao Te King, é o que há de mais profundo e misterioso na realidade: o que faz com que tudo seja como é. O Tao Te King diz‑nos ser impossível descrevê‑lo e até impróprio designá‑lo por um nome, dado ser um Todo único e indiferenciado que tudo inclui, e as palavras e os nomes servirem para diferenciar e definir coisas. O Tao não é algo inteligível, mas apenas o que é «intuído» quando desistimos de o tentar entender. Se as palavras são usadas com extrema parcimónia no Tao Te King, é porque elas se tornam facilmente supérfluas e enganadoras, em particular quando se tenta falar do indescritível. Chuang Tse (369-286 a.C.), o outro grande filósofo taoista da Antiguidade, dizia que as palavras são como armadilhas para caçar animais, as quais se colocam de parte uma vez eles tenham sido apanhados.

«As palavras existem por causa do seu significado; mas, uma vez este entendido, podemos esquecê-las»6. As palavras são como um dedo apontando para alguma coisa. É preciso desviar o olhar do dedo para ver o que realmente há para ver. Se no Tao Te King se usa uma linguagem tantas vezes ambígua, contraditória ou paradoxal é porque desse modo se apela mais à intuição do que ao intelecto, obrigando assim a transcender o significado imediato das suas palavras.

O carácter ambíguo e obscuro do texto original não corresponde, por isso, simplesmente a uma escolha, mais ou menos arbitrária, de um estilo literário, pois é indissociável do facto de a sabedoria nele exposta não poder ser transcrita de modo claro, mas apenas sugerida através de metáforas. Como se lê no capítulo 43, o que há de essencial é «ensinado sem usar palavras» (不言之教). É por isso que, de um modo paradoxal, e com um toque de provocação e de humor, se lê no capítulo 56: 知者不言言者不知 («Quem sabe não fala. Quem fala não sabe»).

Como tenta fazer-nos apreender o que é misterioso e indescritível, o Tao Te King tem necessariamente de ser uma obra «incompleta» que só a intuição do leitor pode concluir. Mas, como se refere no capítulo 45, «A grande obra parece incompleta, mas a sua utilidade nunca se esgota.» Como afirmou A. C. Graham, a visão do mundo e o modo recomendado de nele viver são apresentados no Tao Te King com base num «sistema organizado de metáforas lúcidas que iluminam cada situação com uma estrutura correspondente» 7 , fazendo com que um leitor que saiba transcender o significado imediato das palavras acabe por perceber que, paradoxalmente, a clareza com que eles são expostos em alguns dos capítulos da obra «quase exclui a possibilidade de que não sejam entendidos.»8

A clareza que emerge dessas metáforas tem algo a ver com o estado de clareza ou de iluminação (), que os filósofos taoistas pretendem atingir, e que corresponde a um estado mental em que o intelecto deixa de «obscurecer» a mente com as suas interpretações, permitindo assim que se possa intuir, no mundo, a manifestação do que nele há de mais profundo e misterioso. De certo modo, esse estado mental corresponde a conseguirmos olhar a realidade como se fosse uma metáfora que, a partir do que é do domínio dos sentidos, nos revelasse o transcendente.


A motivação para a elaboração
desta nova tradução do Tao Te King

A motivação para a elaboração desta nova tradução do Tao Te King surgiu, em primeiro lugar, da constatação de que as traduções disponíveis em português eram todas feitas com base noutras traduções, tornando evidente que seria importante a existência de uma tradução feita directamente das fontes chinesas. Em segundo lugar, a consulta dos textos originais do Tao Te King, em chinês clássico, tornou claro que, de modo geral, as traduções disponíveis nem seguiam fielmente o texto original, acrescentando paráfrases e elaborações poéticas várias, nem respeitavam inteiramente o carácter ambíguo de muitas das suas frases, que parece desafiar o leitor a interpretá-las por si e à sua maneira. Muitos tradutores parecem preferir eliminar essa ambiguidade, procurando assegurar que o leitor entenda a «interpretação correcta» de cada frase, que corresponde geralmente à leitura defendida por um dos muitos comentadores chineses da antiguidade, os quais não raro divergiram ou apresentaram interpretações antagónicas.

Surgiu, assim, a intenção de fazer uma nova tradução do Tao Te King para português europeu em que se procurasse seguir o mais fielmente possível o texto original, respeitando ao máximo a ambiguidade de tantas das suas frases. Não se tentou, por isso, interpretar ou «explicar» o sentido — ou sentidos possíveis — de cada frase, mas apenas ficar pelo que neles se descreve, sem o «ultrapassar», mantendo o poder enigmático do original.

Decidiu-se ainda incorporar comentários a cada capítulo do Tao Te King de modo a alertar o leitor para a dificuldade de tradução de certas frases do texto original e o informar sobre as várias opções tomadas por outros tradutores da obra. Os comentários fornecem, igualmente, sugestões de interpretação possível de passagens cujo sentido é mais ambíguo ou obscuro, procurando- se, assim, estimular a imaginação do leitor, para que este possa por si próprio intuir o sentido de cada capítulo com maior facilidade.

Finalmente, a consulta do texto original do Tao Te King permitiu verificar que as traduções existentes raramente tentaram reproduzir o encadeamento de imagens sugerido pelos caracteres que compõem cada uma das suas frases, que permite ao leitor reconstituir os pensamentos que deram origem à sua escolha. O desafio de tentar obter um texto traduzido que fosse o mais fiel possível a esta dimensão poética do texto original constituiu igualmente um factor importante de motivação.

O objectivo não foi, portanto, propor uma leitura particular do Tao Te King, mas sim tentar assegurar que, de cada frase e de cada capítulo do texto traduzido, se possam retirar todas as interpretações possíveis de extrair do texto original. Optou-se, por isso, pelo uso de uma linguagem simples e ao mesmo tempo poética, ou seja, suficientemente «ambígua», de modo a que cada frase possa, tal como no texto de partida, ser interpretada diferentemente por leitores com graus de formação distintos, sejam eles crentes ou não, ou até, em momentos diferentes da vida de um mesmo leitor. Esta opção parece facilitar o emergir de leituras mais coerentes do Tao Te King, em contraste com as que se podem retirar de outras traduções, em que se tentou eliminar a ambiguidade do texto original.

A ordenação habitual dos oitenta e um capítulos do Tao Te King, um tanto arbitrária e confusa, parece ter contribuído para a criação do lugar-comum segundo o qual é impossível detectar uma linha de pensamento coerente atravessando toda a obra. Procurou-se, por isso, encontrar uma ordenação alternativa dos capítulos de forma a aproximar entre si os textos que parecem referir-se ao mesmo tema, e assim obter um texto estruturado logicamente de modo facilitar a sua melhor apreensão.


O estudo dos caracteres

Um dos motivos porque a interpretação de textos chineses antigos se torna problemática, mesmo para um chinês, encontra-se na dificuldade de determinar com rigor o significado de cada caracter. Na linguagem chinesa, a cada caracter corresponde normalmente algo de extremamente concreto e preciso. Basta notar, por exemplo, que há caracteres específicos para designar um cavalo possante, um cavalo vivo e corajoso, um cavalo cansado, um cavalo sem sela, um cavalo castanho-escuro, um cavalo preto, um cavalo negro com cabeça branca e um cavalo negro de crina branca.9 No entanto, embora a cada caracter possa corresponder algo de muito concreto, ele pode também evocar uma multiplicidade de sentidos mais abstractos que, a um português, às vezes surgem como muito díspares.

O caracter (míng, em mandarim), por exemplo, parece denotar a presença simultânea do Sol () e da Lua () no céu, ao amanhecer. Mas, para além de aurora ou madrugada, pode também significar: claridade, brilho, iluminação, claro, brilhante, clarificar, iluminar, luz, lucidez e lúcido; mas também compreensível, óbvio, ilustrar, explicar, afirmar, mostrar, ver, percepcionar, entender, percepção, discernimento, visão, acuidade visual, visionário, inteligente, esperto, sagaz. Pode ainda designar um acordo ou um contrato, ou simplesmente referir-se ao acordar ou ao próximo dia. É mais uma imagem que nos mostra qualquer coisa do que a descrição ou representação de um determinado objecto ou acção. Só a frase em que o caracter está inserido nos permite deduzir, e nem sempre de um modo definitivo, qual dos seus vários significados se pretende evocar.

A análise dos elementos gráficos de cada caracter, especialmente os das suas versões mais antigas, torna muitas vezes mais fácil perceber o conjunto de imagens e significados que ele pode evocar do que a consulta de um dicionário. Por isso, uma parte muito significativa do esforço envolvido na presente tradução foi dedicada à elaboração de um glossário com informação precisa sobre cada um dos caracteres do texto original. Após a edição em livro desta tradução, o glossário completo, referente a todos os capítulos do Tao Te King, foi disponibilizado na Internet.10 A partir da informação nele contida, o leitor pode não só perceber melhor as razões pelas quais diferentes tradutores tomaram opções tão diferentes na interpretação de algumas das frases mais ambíguas, como, se o desejar, procurar um outro modo de interpretar e traduzir o Tao Te King, respeitando o texto original.


A importância de preservar
o estilo enigmático do texto

Na escrita clássica chinesa o pensamento não é geralmente transcrito de modo a que possa ser imediatamente assimilado. Usa-se um procedimento de transmissão, que podemos considerar poético, que consiste em representá-lo através de um encadeamento de imagens cujo poder evocador o permite reconstituir. Cabe ao leitor tentar reconstituí-lo, podendo acontecer que dessa reconstrução resulte um pensamento não inteiramente coincidente com o concebido originalmente pelo autor.11

Muitas frases da escrita chinesa clássica são criadas pelos seus autores para evocarem esse tipo de encadeamento de imagens, cujo sentido preciso só emerge, muitas vezes, da percepção da existência de analogias ou contrastes entre várias frases contíguas. Para isso contribui o facto de os caracteres que evocam esse encadeamento de imagens nem sempre formarem uma frase sintacticamente perfeita, por terem sido frequentemente escritos de acordo com a sequência com que essas imagens surgem na experiência comum. Podemos, por isso, dizer que as frases da escrita chinesa clássica não são feitas de ideias mas sim de imagens, evocadas pelos seus caracteres.12 É esta característica da escrita chinesa clássica, mais sugestiva do que definidora, que convida o pensamento a permanecer no domínio das sensações e faz com que muitas frases do Tao Te King adquiram uma dimensão poética.

Nesta nova tradução, procurou-se preservar esta característica da escrita chinesa clássica, tentando ficar sempre pelo que cada frase descreve, sem o ultrapassar. Como exemplo do modo como o leitor reconstitui o pensamento representado por um conjunto de frases contíguas do texto original, consideremos as duas primeiras frases do capítulo 1:

O Tao em que se pode caminhar não é o Tao eterno.
O nome que se pode dizer não é o nome eterno.

道可道非常道名可名非常名

Embora a leitura isolada da primeira frase afirme, literalmente, que «um caminho em que se pode caminhar não é o caminho eterno», esta frase é frequentemente traduzida por «O Tao que se pode nomear não é o Tao eterno.» No entanto, esse modo de a traduzir corresponde já a uma interpretação ou «explicação» do seu sentido. De facto, as três ocorrências nessa frase do caracter — que significa Tao, via, caminho, caminhar —, fazem com que, numa primeira leitura, ela apenas evoque caminhos em que se pode caminhar e que não são o «verdadeiro caminho.» O que há de enigmático nesta frase leva o leitor imediatamente a compreender que não se está a falar de um caminho ou caminhar usual, mas sim do «Caminho» ou do «Caminhar», ou seja, do Tao.

A segunda frase evoca os nomes que se podem dar às coisas e diz-nos que nenhum deles é «eterno» ou «permanente». E é só depois de constatar o paralelismo óbvio entre as duas frases que o leitor associa esse nome eterno com o Tao, e entende que se fala do Tao como um caminho indescritível onde não se pode caminhar. E, como o caracter Tao, enquanto verbo, está associado também a tudo o que na mente flui no fluir do tempo — como dizer, falar, pensar ou supor —, o leitor pode então aperceber-se de que se pode também interpretar a primeira frase como dizendo que «O Tao que se pode nomear não é o Tao eterno», ou seja, que o verdadeiro caminho a seguir não pode ser descrito ou ensinado por palavras.

Ao traduzir a primeira frase por «O Tao que se pode nomear não é o Tao eterno», está-se por isso já a interpretar ou a «explicar» o sentido da frase original, de modo a que possa ser imediatamente assimilado, traindo o estilo propositadamente enigmático do texto, que se destina precisamente a sugerir, mais do que afirmar. Qualquer enunciação demasiado clara é, assim, inadequada. Para respeitar o mais fielmente possível o texto original, devemos saber parar na simples descrição, deixando ao leitor a tarefa de reconstituir o seu sentido por si só, e à sua maneira, a partir das imagens evocadas pelo conjunto das duas frases.


A dimensão imagética
e poética do texto original

O estudo cuidadoso dos caracteres que compõem cada frase permitiu respeitar a dimensão imagética e poética do texto original. Considere-se, por exemplo, a tradução das primeiras frases do capítulo 14:

Olha-se e não se vê. Diz-se que é raso.
Escuta-se e não se ouve.
Diz-se que é raro.
Agarra-se e não se prende.
Diz-se que é fino.

Na tradução portuguesa mais divulgada13, estas primeiras frases são traduzidas por «Olhando-o, não se vê, chama-se-lhe o invisível,/ Escutando-o, não se ouve, chama-se-lhe o inaudível./ Tocando-o, não se sente, chama-se- lhe o impalpável.» No entanto, os caracteres que foram traduzidos por invisível, inaudível e impalpável evocam imagens extremamente interessantes e poéticas.

O caracter que foi traduzido por invisível () é composto pelos caracteres para pessoa () e para arco ( 弓), o que se deve ao facto de ele ter sido originariamente usado para designar os membros das antigas tribos bárbaras que viviam a leste da China. Como os seus ataques eram destrutivos e arrasadores, este caracter passou também a ser usado com os significados de eliminar e arrasar. Mais tarde foram associados os significados de liso, obscurecido ou invisível. O conhecimento destes factos tornou possível optar- se por raso, em vez de invisível, o que transmite ao leitor português a imagem poética evocada pela grafia e pela etimologia do caracter escolhido pelo autor. Passa-se o mesmo com o caracter que foi traduzido por inaudível (), cuja grafia parece evocar um tecido ( ) raro, com fibras entrelaçadas, e que, embora possa significar ténue ou inaudível, é também usado com o significado de estranho, raro, espaçado, breve, ou de fazer uma pausa, cessar, ir gradualmente parando ou tornar-se silencioso. Quanto ao caracter traduzido por impalpável (), cuja grafia parece evocar uma pessoa () numa estrada () batendo () numa planta (), para remover as suas fibras finas, o seu significado literal é pequeno, fino, diminuto, subtil, obscuro, oculto.

De facto, um tradutor que estude cuidadosamente o texto original e os aspectos semiológicos e etimológicos da sua linguagem, rapidamente se apercebe de que ele é muito mais interessante e poético do que a grande maioria dos textos das traduções existentes.


Os padrões rítmicos
no texto original

O facto de se fazer a tradução a partir do estudo mais cuidadoso do texto original, permite não só um maior respeito pela sua dimensão poética como também pelo padrão estilístico, sempre altamente rítmico, usado no encadeamento das frases de cada estrofe. Para tornar mais claros esses padrões estilísticos, optou-se por apresentar o texto original chinês seccionado em linhas e, ao lado de cada linha de texto em português, os caracteres chineses que lhe correspondem. Essa opção permite também ao leitor perceber claramente quais foram os caracteres que deram origem a cada frase em português.

Na Figura 1, apresenta-se à direita o texto original das primeiras duas estrofes do capítulo 22, em colunas, e à esquerda o texto seccionado, que torna mais óbvios os padrões repetitivos no texto. Note-se que, como no chinês clássico não existem sinais de pontuação, é o padrão repetitivo, que se detecta nos primeiros dezoito caracteres, que facilita a percepção de que o texto é composto por seis frases, cada uma com três caracteres. Embora, em termos da literatura chinesa, o Tao Te King não seja considerado uma obra poética, esse padrão repetitivo, que se destina essencialmente a facilitar a leitura e a memorização da obra, sugere imediatamente a um ocidental, por si só, uma forma poética.

Esta apresentação torna também mais claro o facto de, nesta nova tradução, ter havido o cuidado de respeitar a estrutura das frases do original. Note-se, por exemplo, que na referida tradução portuguesa as primeiras seis frases deste capítulo foram traduzidas por «Quem se dobra permanecerá inteiro,/ Quem se inclina será reerguido,/ Quem está vazio será repleto,/ Quem estiver gasto será renovado,/ Quem pouco sabe terá conhecimento seguro,/ Quem muito sabe ficará na dúvida». Na presente tradução procurou-se replicar em português a estrutura de cada uma das frases do texto original, composta por apenas três caracteres (<dobrar> <então> <intacto>, <torcer> <então> <direito>, etc.), e onde o caracter do meio é sempre o mesmo:


Se dobra, ficará intacto.
Se torce, ficará direito
Se é oco, ficará cheio
Se foi gasto, será renovado.
Se é pouco, será obtido.
Se é demasiado, será suspeito.

 

Para além do facto de ter havido uma escolha mais criteriosa das palavras usadas, muito importante para contribuir para a sua legibilidade poética, não se acrescentou «quem» ou «aquele que», respeitando o facto de nessas seis frases não estar implícita ainda nenhuma atitude comportamental humana. Só na secção seguinte se diz ser essa a razão pela qual quem é sábio não se exibe, não é arrogante, nem se acha sempre certo. E, como já foi referido, isso é claramente propositado, destinando-se a exigir do leitor o esforço de estabelecer a relação semântica entre a secção inicial, que neste caso parece apenas descrever o que acontece a um objecto flexível ou oco, e a que se lhe segue, onde se fala do comportamento de uma pessoa sábia.

O respeito pelo padrão estilístico original exigiu um estudo especialmente cuidado em várias passagens mais problemáticas. Um exemplo disso é a tradução das oito frases do capítulo 71:

 

Saber não sabendo é o melhor.
Ignorar o saber é uma doença.
Mas só adoecendo da doença
se deixa de estar doente.
Quem é sábio não está doente
por ter adoecido da doença.
Só esse adoecer da doença fez
com que não esteja doente.

知不知上
不知知病
夫唯病病
是以不病

聖人不病
以其病病
夫唯病病
是以不病

Note-se que o estilo do texto original, que usa repetidamente o caracter , cuja grafia representa um doente () deitado numa cama () e que pode significar doença, defeito, falha ou adoecer, é totalmente respeitado no texto traduzido.

Na tradução portuguesa acima citada, em que se optou por traduzir esse caracter por erro, as quatro últimas frases foram traduzidas por «O santo não comete nenhum erro/ Porque toma consciência deles,/ Eis porque evita todos os erros.» Como não é fácil encontrar uma tradução do texto que soe bem e faça sentido em português, em vez de procurar seguir o mais literalmente possível o texto original, o tradutor substituiu-o por duas frases — claramente influenciadas pelo pensamento confuciano — que afirmam que quem é sábio não comete nenhum erro, por tomar consciência deles. Contudo, o texto original recomenda o esquecimento consciente do que se aprendeu. A dificuldade de interpretação do capítulo prende-se com o facto de nele se usar um estilo paradoxal, típico da filosofia taoista, para apresentar o conceito de saber sem saber, ou seja, um saber essencialmente inconsciente. Quando um passo do texto é de mais difícil interpretação, verifica-se que muitos tradutores optam por traduzir, em vez dele, o comentário de algum antigo erudito chinês que o procurou explicar. No entanto, é preferível ficar-se apenas pelo que nele se descreve, sem o ultrapassar, evitando conclusões precipitadas, porque as interpretações erradas são precisamente as mais fáceis de encontrar.

Um exemplo disso mesmo é a frase 千里之行始於足下, que ocorre no capítulo 64 e que é geralmente traduzida por «Uma viagem de mil léguas começa por um só passo.» De facto, os dois últimos caracteres, que foram traduzidos por «um só passo», significam e debaixo. Por isso, em conjunto, referem-se ao que está debaixo do pé ou à parte de baixo do pé. Ou seja, o que se diz é que «Uma viagem de mil léguas começa debaixo dos nossos pés» ou, alternativamente, que «Uma viagem de mil léguas começa na planta dos pés». Traduzida assim, a frase não transmite a ideia de que cada viagem começa no primeiro passo mas sim de que cada acção começa «antes de começar», ou seja, de que devemos dedicar muita atenção aos momentos que antecedem o primeiro passo, e que cada acção deve surgir tranquila e naturalmente a partir da inacção que a antecede. Como se vê, o modo como esta frase é usualmente traduzida, e que eventualmente soará melhor a um leitor ocidental, elimina a possibilidade desta interpretação do texto original. E, se se considerar que a sua tradução literal resulta mais estranha ou enigmática, esta nova opção estará por certo mais próxima da intenção do seu autor, contribuindo para que o leitor, empenhado na sua compreensão, seja forçado a olhar o mundo por um ângulo fora do comum.

É muito importante preservar numa tradução do Tao Te King o estilo misterioso e paradoxal usado originalmente, que corresponde a uma espécie de falar sem falar que convida o leitor a transcender o significado imediato das palavras utilizadas. Há uma grande variedade de traduções, muitas delas feitas com base noutras traduções, que apresentam erros originados na falta de conhecimento sinológico. Mas, geralmente, o seu principal defeito é o de não preservarem traços evocadores do estilo do texto de partida, que é claramente indissociável do objectivo do seu ou seus autores.

 

 

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Bibliografia

LAO TSE, Tao Te King — Livro do Caminho e do Bom Caminhar, tradução e comentários de António Miguel de Campos, Relógio D’Água Editores, 2010.

GRAHAM, Angus C. Witter Bynner’s version of Lau Tzu, in A Companion to Angus C. Graham’s Chuang Tzu, Harold D Roth ed., University of Hawai’i Press, Honolulu, 2003.

BILLETER, Jean-François, Leçons sur Tchouang-Tseu, Éditions Allia, Paris, 2002.

LAO TSE, Tao Te King, tradução, introdução e notas de António Melo, 5ª edição, Editorial Estampa, Ltd., 1996.

GRANET, Marcel, “Quelques particularités de la langue et de la pensée chinoises”, in Essais sociologiques sur la Chine, Presses universitaires de France, 2ª edição, Paris, 1990.

Notas

1 Lao Tse, Tao Te King — Livro do Caminho e do Bom Caminhar, tradução e comentários de António Miguel de Campos, Relógio D’Água Editores, 2010.

2 «美成在久», 莊子 (Chuang Tse), IV,3.

3 «Nichts erreicht, wenn sie es nicht lento erreicht», Friedrich Nietzsche, Prelúdio de “Morgenröte”, in Werke in Drei Banden, Munich, Hanser, 1973, vol. 1, p. 1016.

4 Embora a maioria dos linguistas insistam que se deve escrever e pronunciar o singular de caracteres como carácter, prefiro usar a forma caracter pois é assim que o pronuncio, não gostando da grafia caractere, usada no português do Brasil.

5 Cf. «Un poème est un mystère dont le lecteur doit chercher la clef», Stéphane Mallarmé, in Enquête sur l’évolution littéraire, Jules Huret ed., Bibliothèque-Charpentier, 1891, pp. 55-65.

6 «言者所以在意得意而忘言», 莊子 (Chuang Tse), XXVI, 11.

7 A. C. Graham, “Witter Bynner’s version of Lau Tzu”, in A Companion to Angus C. Graham’s Chuang Tzu, Harold D Roth ed., University of Hawai’i Press, Honolulu, 2003, p. 135.

8 Ibid., p. 134-135.

9 Respectivamente, os caracteres 駔, 騠, 駘, 驏, 驖, 驔, 駹 e .

10 O glossário completo está disponível em http://pt.scribd.com/doc/46396700/Glossario-Tao-Te-King.

11 Marcel Granet, “Quelques particularités de la langue et de la pensée chinoises”, in Essais sociologiques sur la Chine, Presses universitaires de France, 2ª edição, Paris, Abril 1990, pp.45-46.

12 Cf. «Ce n’est pas avec des idées qu’on fait des vers, c’est avec des mots», Stéphane Mallarmé, in Psychologie de l’art, Henri Delacroix ed., Presses Universitaires de France, 1927.

13 Lao Tse, Tao Te King, tradução, introdução e notas de António Melo, 5ª edição, 1996, Editorial Estampa, Ltd.

14 Versão encontrada em 1993, num túmulo datado do período de meados do século IV ao início do século III a.C. em Guodian, China.

15 Foto apresentada no artigo de Andrea Shen intitulado “Ancient script rewrites history: ‘This is like the discovery of the Dead Sea Scrolls’”, Harvard University Gazette, Fevereiro, 2001.