Carlos Morais José
Alguns animais imaginários existem em diferentes mitologias, apesar de separadas no então vasto espaço deste planeta e se partir do princípio que não terão existido contactos entre elas ao tempo que esses mesmos mitos foram criados: princípio esse que, hoje, é por alguns contestado e não é um dado seguro.
É o caso do dragão. O fumegante animal perpassa quase todas as mitologias, nomeadamente as que tiveram a sua origem na imensa massa de terra que vai de Xangai a Lisboa. Uma das explicações mais lógicas e aceitáveis é: tendo descoberto ossadas de dinossauros, esses seres humanos, sob a capa de diversas culturas, terão concebido essa forma-dragão que, apesar de ter diferentes características consoante o espaço geográfico-cultural, não deixa de apresentar óbvias semelhanças, quer estejamos a falar de um dragão celta, nascido em remotas e brumosas ilhas do Atlântico, quer consideremos o dragão chinês, emergente de rios entre os quatro mares que limitavam o mundo.
Sussurrava-me em tempos idos de Macau, como se me transmitisse um segredo, mestre Luís Sá Cunha que todos esses fantásticos animais que as mitologias descrevem, nomeadamente o “Livro das Montanhas e dos Mares (Shanhai Jing)”, onde criaturas estranhas por toda a China de então pululam, talvez houvessem tido uma existência real em tempos cuja memória perdemos e que este planeta talvez tivesse outras histórias para contar. A ideia, temerária e marginal, não deixou nunca de me habitar e provocar a racionalidade que me estrutura, o cepticismo que me consome, a descrença que tudo desconstrói.
Entre esses animais que as mitologias partilham, além do dragão, destaca-se o unicórnio que em chinês porta o nome de qilin (leia-se chilin). Contudo, existe uma diferença radical entre o unicórnio ocidental, que vemos por exemplo numa magnífica pintura de Rafael, e o seu congénere sínico: no primeiro, sai-lhe da testa um corno, rijo como uma presa de elefante, provavelmente imaginado de marfim; no segundo, o que da testa se destaca não é realmente um corno, mas uma protuberância de carne, impositiva mas suave, incapaz de penetrar, furar ou trespassar outra besta ou ser humano.
Nas narrativas chinesas, o aparecimento do qilin anuncia a vinda de um grande homem, doutras vezes a sua morte. Foi o caso de Confúcio, cuja mãe foi visitada por um qilin, durante a gravidez, que a seus pés terá depositado uma tablete onde estava anunciada a vinda de um homem excepcional. Seria fácil comparar esta aparição do qilin com a do anjo que visitou Maria, grávida de Jesus, para lhe anunciar a sua divina gravidez. Deixamos, no entanto, aos nossos leitores mais curiosos essa demanda.
O que imediatamente nos chamou a atenção é facto de Confúcio ser descrito pelos seus contemporâneos como tendo uma figura impressionante, com cerca de seis pés de altura, uma pose que o distinguia dos demais e… uma protuberância na testa, que aliás é visível nalguns dos desenhos que pretendem restituir a imagem do Mestre. Ora seria esta protuberância algo de real na testa de Confúcio ou pretenderiam os seus biógrafos dotá-lo com algo que o distinguisse dos outros humanos, um sinal inequívoco do destino (ming), segundo o qual estaríamos perante um ser excepcional. Lembremos que Charles Le Brun, ao pintar Luís XIV, colocou um dos seus pés numa posição impossível como sinal de distinção perante nós, o resto da humanidade.
Quereriam os biógrafos, afinal, emprestar algo da natureza do qilin ao grande Mestre? Ou haveria realmente uma protuberância de carne na testa de Confúcio como havia na testa do qilin? Insinuar-se-ia assim que, remotamente e por circunstâncias inexplicáveis, Confúcio tivesse em si alguma das divinas qualidades do qilin? Terá esse “anjo” visitador imprimido naquela mulher grávida de um filho concebido em tarde de tempestade algo da sua fantástica natureza? Será isto que a narrativa mitológica nos quer dizer?
Ou não contentes da nossa ascendência animal, de que todos os homens, para sua vergonha, sempre secretamente suspeitaram, igualmente nos querem descendentes de uma miríade de animais fantásticos cujas características provavelmente encontramos disseminadas na humanidade em termos de aspirações recalcadas.
Nesse bestiário fantástico, há seres que voam, mudam de forma e de pele, tanto habitam a água como dominam os ares, possuem atributos que encontramos nos nossos próprios sonhos e pesadelos. De novo surge a pergunta: terão essas criaturas existido ou serão seres humanos a haver? 完