Carlos Morais José
Moldadas por mãos de gigantes, produto do confronto brutal de forças titânicas, pelo choque de imensas massas de terra nas eras de um planeta ainda vazio de humanos, testemunhas silentes da passagem do tempo, erguem-se imponentes as montanhas.
Perante elas, nas suas faldas e sombras, sente o animal humano um peculiar desafio de ser. Nelas se conjuga a nossa irredutível solidão, no silêncio de seus vastos espaços e infinitas paisagens, (re)descobrimos os nossos próprios abismos, os que nos habitam e de onde se elevam as vozes que nos sussurram eternidade.
Não se levam livros para as montanhas, pois aí encontramos a escrita primeva do mundo, gravada em penedos e florestas, escuros vales e desmedidas falésias: indizível, intraduzível, somente apreensível por uma intuição exaltada, pela beleza e pelo perigo. São textos antigos, a um tempo complexos e simples, que exigem uma leitura abandonada, desfeita de preconceitos, inevitavelmente humilde face a tamanha grandeza. Uma montanha é, como dizia Michelet, uma iniciação.
Não se ouve outra música nas montanhas, além do silvo do vento, do resmungo de cataratas, do tricotar da chuva e do riso eventual dos regatos. Essa inconstante sinfonia tem o condão de nos abrir a mente ao mundo, à medida que o sentimos em nós e parte de nós, e compreendemos não existir outra falha, além dessa imaginada distância que a civilização prometeu criar entre nós e a Natureza. Uma montanha é um espaço de transição entre a Terra e a infinitude dos espaços siderais.
Nelas estamos mais perto do céu, mais longe dessa vida que se resume a existir. Por elas vaguearam os profetas do Antigo Testamento, nelas moraram os deuses indianos e gregos, os “velhos homens” africanos e os sábios chineses. E foi nelas que, contemplando os precipícios, os mais ousados sempre encontraram algum tipo de iluminação. As montanhas são os “Eixos do Mundo”, lugares de apaziguadora calma e de temíveis tempestades, faces impassíveis do repouso e da tormenta.
Há medida que nos aproximamos dos seus cumes vai rareando a vida, são escassas as árvores, são escassos os animais. Finalmente, damos pelas paisagens do início de tudo, pelas extensões de pedras gretadas pela força indiferente dos elementos, como em certos rostos humanos surgem as rugas, índices da passagem do tempo e das emoções.
Nas montanhas, a pele do mundo surge exposta, frágil, sujeita a sucessivas metamorfoses. E reparamos em como nela se inscrevem as estações, os ciclos sempre repetidos de forma diversa, e também restos, resquícios, de presenças humanas e divinas.
Pois nesse sentido, são as montanhas locus sagrados, marcados pela diferença e pela grandeza, pela ausência e pela presença esporádica da humanidade, espaços por cultivar, onde é possível beber directamente das nuvens e das fontes, e destas adquirir uma sagrada forma de embriaguez.
Ali compreendemos como o visível e o oculto alquimicamente em nós se misturam, ali é o espaço onde os deuses invejam os homens cuja ambição é ser deuses: lugares mais além, exteriores à existência parda, símbolos de uma inatingível grandeza; contudo, dotados do poder de em nós criar as mais desvairadas ilusões. 完