As cores são decisivas nas relações que estabelecemos connosco e com o mundo. Quando desejamos apoiar um país, como tem sucedido recentemente com a Ucrânia no Ocidente, envergamos as cores da sua bandeira, neste caso o azul e o amarelo. O modo como nos apresentamos emite mensagens, comunica sentimentos. As cores estão associadas a rituais e cerimónias fundamentais dos pontos de vista político, social, sociolinguístico, religioso e até médico.
Na medicina tradicional chinesa, o corpo nunca é dissociado da mente ou, caso se prefira, a fisiologia está intimamente associada à psicologia: o que faz bem ao corpo, melhora o desempenho psíquico e vice-versa.
Veja-se então o que apresenta o Clássico da Medicina Interna (黄帝内经 Huángdì nèijing) sobre as cores. Este Clássico é atribuído ao Imperador Amarelo, que terá vivido no terceiro milénio antes de Cristo ou, como especificam Cecília Jorge e Beltrão Coelho em Medicina Chinesa, Em Busca do Equilíbrio Perdido (1988: 36), em 2697-2595 a. C. Este Clássico é redigido na forma dialogada entre o Imperador e seu ministro Qí Pó (岐伯).
Pela extensão e vastidão dos conhecimentos é muito provável que o Clássico tenha sido compilado já durante a dinastia Zhou (周Zhou, 1122-255 a.C ) ou, como alvitram Cecília Jorge e Beltrão Coelho, durante o Período dos Reinos Combatentes (战国Zhànguó, 475-221 a.C). Encontra-se dividido em duas partes: Perguntas Simples (素问 Sù wèn) e Núcleo Espiritual (灵枢 Líng shu). Na primeira, são abordados os princípios fundamentais da filosofia médica chinesa, tais como o Yin (阴 Yīn) e o Yang (阳 Yáng), o Dao da Saúde (健康道Jiànkāng dào), o corpo humano, profilaxia e formas de tratamento; já na segunda se desenvolvem as noções adiantadas para os meridianos, a acupunctura, a ervanária, os exercícios respiratórios, a moxibustão com ênfase na acupunctura.
Aqui interessa estudar a relação entre as cores e a saúde física, psíquica e a natureza no País do Meio. Posto isto, estas surgem associadas, antes de mais, aos cinco elementos que derivam do Yin escuro e lunar e do Yang claro e solar. São eles: a Madeira verde, que domina na Primavera, o Fogo vermelho em conexão com o Verão; o branco ligado ao Metal e ao Outono; a Água dominante no Inverno e associada ao preto e a Terra, ao amarelo, ao final do Verão e ao centro.
Quanto às cores do rosto e dos seus componentes, especialmente da língua, são fundamentais para detectar o estado de saúde das pessoas. Sem esquecer as variedades étnicas, o ideal será ter uma coloração de rosto com “ faces rosadas, brilhantes e orvalhadas ” (Jorge, Coelho, 1988: 72)
As cinco cores básicas devem harmonizar-se na face com um leve predomínio de vermelho, na forma “rosada”. No primeiro livro do Clássico da Medicina Interna, que recebeu como título na tradução de Fernanda Pinto Rodrigues (1975) O Livro de Acupunctura do Imperador Amarelo (Nei Ching): “O vermelho é a cor do Sul, impregna o coração, mantém os ouvidos abertos e retém substâncias essenciais no coração. A sua doença está localizada nas cinco vísceras, o seu gosto é amargo, o seu elemento o fogo, os seus animais os carneiros e o seu cereal o painço paniculado glutinoso. Adapta-se às quatro estações e corresponde ao planeta Marte. Compreende-se pois que as suas doenças estejam localizadas no pulso. O seu som é chi; o seu número é sete e cheira a queimado” ( Rodrigues, 1975: 29).
Se o vermelho é a cor do coração e se este comanda a mente dos chineses, recorde-se que o coração (心 xin) não é apenas um órgão físico, sendo igualmente a sede das operações mentais das gentes do País do Meio, que nunca dissociam o corpo da mente, o vermelho ocupará um lugar de destaque não apenas a nível pessoal, mas ainda cultural, a ponto de se tornar a cor omnipresente em todas as celebrações políticas, sociais, religiosas e até linguísticas.
O vermelho é então na China a cor da felicidade, da sorte, da vida, dos rituais, do poder e do amor. Apenas alguns exemplos a comprovar o que fica dito. O vermelho foi a cor do poder nos tempos imperiais. E embora cada dinastia pudesse escolher a cor de reinado, a maioria optou pelo vermelho, interditando o seu uso à população em geral. Já nos tempos republicanos, o vermelho é cor omnipresente na política da República Popular da China, desde os tempos fundacionais, com a bandeira nacional a vermelho a marcar a ideologia no mapa do mundo chinês, passando pelo período revolucionário maoísta até ao presente reformista. Nas celebrações matrimoniais tradicionais, as noivas casam sempre na cor do sangue e da vida, com os noivos a acompanhar no mesmo tom, que se expande em todo o tipo de adereços e elementos figurativos, incluindo, rolos, recortes e ditos auspiciosos. Estes surgem quase sempre em fundo cinábrico, sendo um dos caracteres mais recorrentes nos casamentos, o da “Dupla Felicidade” (囍 shuāngxǐ). E se nos recortes os caracteres sobressaem escarlates, já as imagens votivas costumam aparecer num fundo vermelhão alternando os caracteres cinábricos com os a tinta da china, para que possam destacar-se nos fundos encarnados.
Esta ubiquidade do vermelho reflecte-se naturalmente na linguagem. Assim, Yan Chunling diz-nos em Chinese Red (2006): “A adoração do vermelho não se reflecte apenas nos objectos, mas também na cultura nacional. Se alguém é descrito como tendo face vermelha ou um ’coração vermelho’”, é um modelo para os outros porque é leal como um coração vermelho”. (2006: 8)
Ter um “coração vermelho” (红心hóngxīn) ou uma “face vermelha” (红脸 hóngliǎn) significa possuir bom carácter tanto na ópera chinesa como na vida, ser corajoso, leal e justo. Na ópera, o papel da máscara face vermelha é contraposto ao da branca (白脸 báiliǎn), tendo este último uma forte conotação negativa. Já um “coração vermelho” é bravo e fiel aos amigos, ao clã e ao país. Havendo uma expressão em gíria que traduz este estado de espírito “coragem vermelha e lealdade” (赤胆忠诚chì dǎn zhōngchéng) O vermelho simboliza ainda o poder e a ascensão política, logo a quem é beneficiado pelas autoridades chama-se “pessoa vermelha” (红人 hóngrén). Assim, o dito “ele está tão vermelho que se tornou púrpura” (红得发紫 hóng de fā zǐ), significa que se está influente e próximo de poder, implicando consequências práticas bem-vindas de promoção e ascensão social (Yan, 2006: 26).
Esta cor encontra-se tão intimamente associada à nobreza na tradição chinesa, que as suas casas eram denominadas “mansões vermelhas” (红楼 hónglóu), pelo facto de surgirem pintadas de vermelhão na paisagem, sendo bom exemplo disso, a Cidade Proibida, a mansão imperial, uma cidade opulenta e reservada, com os seus muros pintados de vermelho. As senhoras que habitavam em casas senhoriais eram para os letrados “mangas vermelhas” (红袖 hóngxiù) É altura de lembrar que na China antiga apenas os palácios e os templos podiam ser pintados a cor de cinábrio.
É então natural que as festividades mais importantes entre os chineses sejam verdadeiros banhos de encarnado, por exemplo, o Ano Novo Chinês ou Festividade da Primavera com as casas decoradas a vermelho, as ruas cobertas de Lanternas encarnadas, na festividade das lanternas que encerra este tempo festivo, os templos repletos de vestígios de panchões da mesma tonalidade e as casas e edifícios públicos pejados de votos auspiciosos em fundo escarlate ou recortes totalmente encarnados, criando uma “atmosfera vermelha” (Yan, 2006: 42) com o objectivo de espantar os males e trazer e felicidade a todos os chineses, incluindo as crianças. Estas envergavam, e ainda usam, chapéus, trajes e todo o tipo de adereços onde predomina este tom, incluindo sapatos com cabeças de tigre, que as hão-de proteger, a vermelhão e dourado.
O sinólogo macaense Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), numa das suas obras sobre a cultura chinesa, intitulada Festividades Chinesas (1953), considera que é provável a Festa das Lanternas estar ligada ao culto do Imperador Wudi (武帝, 140-86 a.C) da dinastia Han à divindade da Primeira Causa (太乙神 Tàiyǐshén) e que a colocação de lanternas vermelhas acesas e ramos de abeto nas portas teriam como objectivo atrair a prosperidade com as luzes e a longevidade com os ramos. (Gomes, 1953: 183) Refere, ainda, que o Imperador da dinastia Tang Ruizong (唐睿宗 Táng Ruìzōng, 662-710) terá mandado decorar uma frondosa árvore de mais de 36 metros de altura com 50.000 lanternas. Esta possuía um aspecto “tão feérico que ficou sendo conhecida na história com o nome de árvore igniscente” (Gomes, 1953: 184).
Não tem passado despercebido igualmente por entre os letrados portugueses a abundância do vermelho nas principais festividades chinesas, como se pode ver pelo seguinte excerto da poeticamente ligada a Macau, Fernanda Dias, no poema intitulado “Ano Novo”:
Vermelha de panchões
negra de fumo denso,
a noite ardia pelo tempo adentro (…)
No turbilhão da cor
e no fragor do fogo e dos tambores dementes
crescia-me na alma uma flor de vidro.
(Kelen, Han 2010: 173)
Na gíria encontra-se idêntico predomínio da cor de sangue. Assim para mencionar negócios prósperos se diz que estão em “fogo vermelho” (红火 hónghuo) , sendo uma vedeta muito popular no mundo do espectáculo “estrela vermelha” (红星 hóngxīng) e uma vida feliz é uma “vida a vermelho fogoso” (火红人生) .
Este mundo de chinês vermelho, vivo, alegre, sexualizado e colorido, ganha um sentido depreciativo quando observado e filtrado pela filosofia da linguagem budista. Tanta cor e animação são associadas à poeira mundana que nos cria laços, destrói e invade os sentidos em “poeira vermelha” (红尘 hóngchén ). Esta é causadora de grande sofrimento, pelo que o filósofo ou o religioso budista fará por não ser contaminado, por se libertar dela assim que possível, entoando os seus sutras enquanto bate com uma batuta em pequenos blocos de madeira ocos pintados de vermelho para a afastar de si.
A terminar é preciso não esquecer que o Budismo entrou na China via Índia ou Ásia Central, não sendo uma filosofia autóctone. Ainda assim, não escapa à magia do elemento vermelho, já que no Budismo Popular é pelo fogo que as almas se purificam e os mundanos comunicam com os seres espirituais. Portanto, até nesta filosofia a cor de fogo, que não pode ser dissociada do vermelho, tem um papel curativo essencial. Libertamo-nos deste mundo pelo fogo, comunicamos com o sagrado pelo fogo e curamos os males do espírito e do corpo com ele para todos os chineses, qualquer que seja a filosofia, recorde-se que a um nível tão básico como o da culinária, ramo incluído na Medicina Tradicional Chinesa, uma das indicações matriciais é a de que os alimentos devem ser cozinhados, sempre que possível, antes de ingeridos para garantir a saúde individual e pública. No mundo chinês é com o vermelho sangue que nascemos, crescemos em vitalidade e energia, casamos e festejamos, nos curamos, purificamos e nos transportamos a outras dimensões.
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Bibliografia
Gomes Gonzaga, Luís. 1953. Festividades Chinesas. Macau: Notícias de Macau.
Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa, Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macau e Círculo dos Leitores.
Kelen, Kit, Lili Han (ed.). 2010. Poetas Portugueses de Macau. Portuguese Poets of Macau. Macau: ASM.
Li Shujuan, YanLigang . Ed. (李淑娟, 颜力鋼). 1998. Chinese-English Dictionary of Modern Slang of China. 《漢英中國新俚語》. 香港:海峰出版社.
Rodrigues Pinto, Fernanda (Trad.). 1955. O Livro de Acupunctura do Imperador Amarelo (Nei Ching). Lisboa: Editorial Minerva.
Yan Chunling. Chinese Red. 2006. Beijing: Foreign Languages Press.