Carlos Morais José
Os povos contam histórias e dessas histórias fazem parte narrativas construídas para explicar o começo do mundo, que dizem mais sobre eles próprios do que sobre os acontecimentos reais de uma eventual cosmogonia. Neste âmbito, o Ocidente proporcionou-nos, de uma forma geral, a mitologia greco-romana, a versão judaico-cristã e, finalmente, a ciência. Esta, apesar de baseada num método rigoroso, na matemática, e de se reger por evidências, conseguindo com isso coerência e eficácia dentro de um modelo, não deixa de, nos seus axiomas, nas perspectivas com que gatafunha na realidade, de hierarquizar prioridades, de espelhar a sua época. A sua história é testemunha deste facto.
Quanto a cosmogonias, os chineses não são excepção. Contudo, segundo o artigo de André Bueno que publicamos nesta edição da Via do Meio, trata-se de uma narrativa, de um mito cosmogónico, que surgiu tardiamente se compararmos com outras civilizações. O mito de Pangu é relatado pela primeira vez no século III, enquanto na Grécia, por exemplo, os mitos cosmogónicos datam dos séculos VIII-VII a.E.C.. Por quê? Afinal, pelo menos desde há três mil anos que a civilização chinesa nos proporciona numerosas obras, que abrangem diversas áreas e vastos temas. Da política à agricultura, da tecnologia à adivinhação, passando pela guerra, a economia e a história, os chineses produziram, no milénio que antecedeu a nossa era, tratados, guias, memórias, poesia, etc., mas não demonstraram muito interesse na origem do universo e pareciam estar mais preocupados com o seu funcionamento, pois é disso que tratam os inúmeros textos então produzidos.
São conhecidas as frases de Confúcio que demonstram o seu silêncio sobre o cosmos, o reconhecimento da sua impossibilidade de conhecer os seus mistérios e, sobretudo, de agir sobre ele. O Mestre estava unicamente interessado nas relações entre humanos que, sonhava ele, podiam ser controladas, e não em teorias improváveis sobre algo que poderia nem sequer ter acontecido: a tese mais espalhada entre os letrados terá sido que o universo sempre existiu e sempre existirá, sem começo nem fim, não se colocando por isso a questão das suas origens. É o que ainda se ouve da boca de um letrado chinês, no século XVI, durante uma discussão com Matteo Ricci. Contudo, nem só de letrados é composta uma população e algures pelos fins da dinastia Han, surge pela primeira vez o mito de Pangu e do seu ovo.
Uma coisa nos parece certa: as explicações mitológicas são, mais do que histórias que se crêem verdadeiras, verdadeiras estruturas justificativas de uma determinada ordem não do mundo mas no mundo, de uma vivência concreta de que o mito é, afinal, ideologia. Com certeza que não entendemos esgotar-se nesta função a riqueza das narrativas mitológicas, pois estas vão, por vezes, muito além de uma mera justificação de uma ordem social e política. Contudo, se considerarmos que os mitos incluem diversos planos de leitura, rapidamente compreenderemos que somente alguns “sábios” ou “iluminados” dispõem das chaves que, eventualmente, poderão abrir algumas das fechaduras mais complexas da mitologia.
Enquanto descrição e representação do mundo, a mitologia também desempenha a função de nos explicar, de nos precaver, de nos resguardar e, sobretudo, de assumir o controlo. Quando se descreve o feitio irascível ou tranquilo de um deus do rio, está-se a descrever o próprio rio e as suas manias, sendo a narrativa eivada de diversas camadas de sabedoria que cada sujeito aprende, interpreta, memoriza, para agir em conformidade consoante as suas capacidades.
Certos aspectos da mitologia são leituras – quantas vezes poéticas, doutras, grotescas – do incompreensível real: são descrições do mundo, das coisas, dos sentimentos e das emoções, raios de luz no obscuro, no desconhecido; interpretações em forma de narrativa, de modo a terem o condão de exemplo, aviso, motivação. Mas são, também, sintomas, reflexos, explicações, do nosso conturbado interior, das lutas que nos impomos, das prisões que nos construímos e onde habitamos sem plano de fuga, dos desejos que nos roem, assaltam e mudam o nosso mundo, com desmedida importância, como se ele tivesse algum peso cósmico. Seremos poeira, seremos nada. Por isso, o mito somos nós. 完