Escrever sobre personagens que viveram num período anterior aos registos escritos e cujas histórias chegaram até aos nossos dias pelas letras de canções ou oralmente transmitidas em forma de mitos e só muito mais tarde, milénios depois, foram registadas em livros, traz-nos o problema de interligar todas essas informações para criar uma inteligível e coerente imagem, que represente os seres aqui a tratar. Fu Xi (伏羲, em cantonense Fok Hei) e Nu Wa (女娲, Nôi-Vó), figuras lendárias da mitologia chinesa, contam com poucos trabalhos académicos e nos livros antigos aparecem apenas esparsas referências, como as feitas por Kong Zi (Confúcio), Sima Qian, o historiador da dinastia Han do Oeste, e Sima Zhen.
Segundo a lenda, Fu Xi, transportando o conhecimento das culturas existentes no Paleolítico para a Era do Neolítico, deu início à Civilização Chinesa, tornando-se o seu primeiro Soberano, também conhecido por Tian Huang Shi (天皇氏, Tin Wong Si), Imperador Celeste. Ele e Nu Wa, após um grande dilúvio, foram os únicos sobreviventes mas, como irmãos que eram, não podiam casar e ter filhos por receio de desagradar ao Céu. Então resolveram subir à montanha sagrada Kunlun (em Qinghai), fazendo cada um uma fogueira e como o fumo de ambas se uniu, interpretaram favorável esse sinal e casaram, ficando a ser considerados o casal divino, o Pai e a Mãe dos seres humanos.
O ser humano tomara consciência da sua existência há 65 mil anos e se nessa primitiva sociedade não havia distinções de classes, famílias e propriedade privada, entre o L e o XL milénio antes da nossa Era foi substituída por uma comunidade baseada na família, com a formação gradual de uma sociedade matriarcal há 30 mil anos. Por volta do VI milénio antes da nossa Era, o sistema de crenças mudou e a sociedade matriarcal começou a dar lugar à patriarcal, substituindo-se a Deusa da Fertilidade pelo Deus da Guerra, aparecendo as classes e o conceito de propriedade. Assim, a sociedade patriarcal iniciou-se há cinco mil anos, quando na China as tribos se começaram a unir entre si.
Como ponto de partida, deveremos questionar se Fu Xi e Nu Wa tiveram existência real? Se sim, quando viveram e quem foram? Questões que para tais figuras nunca poderão ter respostas formais mas, pelo menos, sabemos que, como figuras lendárias, ocupam um lugar na História da China e foram o espírito e a substância de muitos arquétipos para a construção da Civilização Chinesa.
Ancestrais soberanos
Num túmulo da dinastia Han do Leste em Pixian (província de Sichuan) e do mesmo período, no mural do templo de Wuliang em Jiaxiang (província de Shandong), encontram-se representações de Fu Xi e Nu Wa, ambos com cabeça humana, mas corpos de dragão e entrelaçados pelas caudas, a representar a união entre os dois. Simbolizam o poder e, quando ligados com a tartaruga, perpetuam-se pela eternidade.
Fu Xi, considerado Imperador do Ser Humano, conjuntamente com Nu Wa formam o casal divino. Fu Xi, deificado como Taihao (太昊) ou o Imperador Verde, representa o Leste e contém a virtude da Madeira, simbolizando a Primavera. Nu Wa, encarregue da reprodução de todas as coisas vivas, é a deusa primitiva da fertilidade. Para alguns estudiosos, ambos não eram seres humanos, mas representantes de um período: Nu Wa, a sociedade matriarcal, e Fu Xi, a patriarcal.
Quando considerados como figuras históricas chegam-nos integradas no grupo San Huang Wu Di, isto é, os ancestrais dos chineses conhecidos pelos Três Soberanos e os Cinco Imperadores. Apesar de irmãos, eram de diferentes tribos e como os “únicos” sobreviventes de um grande Dilúvio, Fu Xi e Nu Wa são considerados os primeiros seres humanos e, para que se reproduzissem e fosse criada a Humanidade, tornaram-se patronos dos casamentos. Já quanto às datas da existência histórica de Fu Xi variam desde ter nascido entre 2953 e 2852 a.n.E. e ter falecido entre os anos de 2838 e 2738 a.n.E., mas há autores a referir ter o lendário chefe tribal reinado durante 115 anos, de 4477 a 4362 a.n.E..
Fuxi nascera em Tianshui, hoje província de Gansu. Numa jornada para Leste, como chefe, levou a sua tribo Yi até às Planícies Centrais, actual província de Henan, onde se instalou em Huaiyang, onde se encontra o seu mausoléu, como Kong Zi atestou. A sua meia-irmã Nu Wa nasceu três meses depois em Loncheng, a Norte de Tianshui, tendo ambos o apelido Feng (风, Vento) do pai. Acompanhou Fu Xi na procura de terras férteis e, em Henan, após promoverem casamentos, separaram-se. Nu Wa seguiu para Norte onde, na povoação de Wihua, se encontra o seu mausoléu.
Fuxi era um observador atento, tanto do Céu como do que se passava na Terra e ao olhar para o Céu observou os fenómenos celestes, vendo-os espelhados na Terra. Assim atingiu a ideia do todo, inserido nas mudanças sazonais e na geografia, descobrindo que dentro de si se passava o mesmo do que se passava no seu exterior. Ao viajar por muitos lugares conheceu outras formas de estar e fazer, assim como outros objectos. Apercebeu-se das diferentes qualidades e propriedades dos materiais e dos solos. Terá usado nós numa corda para fixar certos factos e criou um método de fazer redes de pesca inspirando-se nas teias de aranhas. No entanto, a maior das suas contribuições foi a criação dos oito trigramas a representar os oito estados da natureza usados depois no mais antigo livro existente, o Livro das Mutações (Yi Jing, 易经) cuja versão actual, o Zhou Yi é da dinastia Zhou e tem três mil anos.
Segundo refere Kong Zi nos Dez Asas (Xi Ci), que complementam o Livro das Mutações, deve-se ao sábio-rei Fuxi a imagem do dragão de onde retirou os oito trigramas (bagua), criando o desenho do Tai ji pelo pulsar yin-yang da vida. O dragão é yang e terá sido escolhido como totem por Fu Xi, conhecido por isso como o rei Dragão, para representar o seu povo da tribo Yi. Explicou aos seres humanos a essência de todos os aspectos universais contidos nos oito trigramas que inventou, e as inter-relações entre eles. Pelo conhecimento dos oito estados da Natureza e seu domínio poderiam, tal como os deuses, evitar muitos prejuízos causados pelas calamidades naturais e utilizar todas as coisas ao serviço da harmonia para com o que nos rodeia.
Considerado o primeiro dos Três Ancestrais Soberanos (San Huang, 三皇), que deram origem à Civilização Chinesa, transportou os conhecimentos de uma Era em que a Terra ainda se reflectia pelo Céu e talvez por essa razão, Fu Xi e a sua meia-irmã e consorte Nu Wa, considerados os primeiros seres humanos, são o Pai e Mãe, que significam o Céu e a Terra e representam-se no yang e yin de todas as coisas.
Confúcio (Kong Fu Zi, 孔夫子, 551-479 a.n.E.) ao compilar o Livro da História (书经, Shu Jing) começou com Yao (尧, Yao de Tang, que chegou ao trono em 2357 a.n.E. e governou por 70 anos), o quarto dos Cinco Ancestrais Imperadores (Wu Di, 五帝), sem fazer referência aos anteriores Três Ancestrais Soberanos (San Huang, 三皇). Mas na secção Xi Ci (系辞) dos Dez Asas (十翼) Confúcio referia o grande rei Fu Xi como o inventor dos oito trigramas (bagua, 八卦).
Interessante é o livro Memórias Históricas (史 记, Shi Ji), redigido por Sima Qian (司马迁, 145- 87 a.n.E.), começar os registos por Huang Di (黄帝, o Imperador Amarelo), o primeiro dos Cinco Ancestrais Imperadores da China, [considerado por vezes também o terceiro Ancestral Soberano, tal como escreveu o padre Álvaro Semedo, que os designa por Fôk Hei (Fu Si, 伏羲, em mandarim Fu Xi) e o data de 2852 a.C., Sân Nông (Xen-Nông, 神农, Shen-Nong) em 2737 a.C. e Uóng Tái (Uáng-Ti, 黄帝, Huang Di), em 2697 a.C.], admitindo haver registos sobre uma figura [Fu Xi] que viveu anteriormente ao Imperador Amarelo.
No entanto, nas Memórias Históricas existem comentários de Taishigong, feitos por Sima Qian, que de outro modo não os poderia deixar registados nos acontecimentos da História e assim, no Shi Ji-Tai Shi Gong zi xu《史记,太史公自序》está escrito: “eu escutei o que os anciãos dizem sobre Fu Xi; ser ele um homem puro, simples e honesto, que criou o conceito de Yi (易, mutação) e do Bagua.”
Se não existem dúvidas quanto a dois dos três Ancestrais Soberanos da Civilização Chinesa, Fu Xi e Yan Di (炎帝, Imperador da Terra e como Deus da Agricultura Shen Nong), já para o outro, o livro Shang Shu Da Zhuan (尚书大传) diz ser Sui Ren (燧人, 2737-2697 a.n.E., Imperador do Céu, que controlava o fogo) e no Bai Hu Tong (百 虎通) refere-se Zhu Rong (祝融), também Oficial do Fogo. Para o Bu Shi Ji San Huang ban ji (补史记 三皇本纪), escrito na dinastia Tang por Sima Zhen (司马贞, c.697-c.732), a complementar o livro Memórias Históricas de Sima Qian, é Nu Wa o outro dos três Ancestrais Soberanos.
Todos os livros escritos ao longo dos tempos não duvidam ser Fu Xi o primeiro dos três Huang. Já as datas da sua existência variam desde o ter nascido entre 2953 e 2852 a.n.E. e ter deixado a Terra entre os anos de 2838 e 2738 a.n.E..
A divindade de Fu Xi
Sobre a mãe e o pai de Fu Xi, o Di Wang Shi ji (帝王 世纪), escrito no século III por Huang Fu Mi (皇 甫谧) na dinastia Jin, diz: “A mãe Hua Xu colocou o pé numa grande pegada, em Lei Ze (雷泽), e daí nasceu Pao Xi (庖牺), em Cheng ji” (hoje Tianshui). Pao Xi foi outro dos nomes de Fu Xi, este ligado ao cozinhar dos alimentos. Também o Livro da Estrada (Lushi – 路史), escrito na dinastia Song por Luo Mi (1131-?), refere que Hua Xu Shi um dia, inadvertidamente, ao pisar uma grande pegada, ficou grávida em Hua Xu Zhi Yuan (华胥 之渊), local referido no livro Tai Ping Yu Lan (太 平御览) como sendo Lei Ze (雷泽), significando Lei (雷) Trovão e Ze (泽) charco. Lenda escutada a Tang Shaoyou e registada no seu livro Follow Me to the Fairyland of Langyuan (edição do autor de 2009), que conta ser esse lugar Langzhong, na actual província de Sichuan, onde a mãe de Fu Xi foi fecundada ao pisar uma pegada ali deixada pelo deus do Trovão, (Lei Gong, 雷公), que governava a região.
Como acontece normalmente ao falar dos locais onde as ancestrais histórias se desenrolaram, estes são denominados pelos nomes das tribos que os habitavam, o mesmo para os apelidos dos habitantes. Assim, a mãe de Fu Xi, Hua Xu Shi, da tribo Hua Xu cujo totem era uma ave pernalta, vivia num lugar chamado Hua Xu Zhi Yuan ou, mais especificamente, Lei Ze, onde hoje se situa Langzhong. Hua Xu aí terá engravidado, mas a criança foi nascer em Tianshui, actual província de Gansu.
O totem da tribo Feng (Vento, 风), a qual o pai de Fu Xi chefiava, era uma serpente que deu o tronco do Dragão e habitava na parte Sudeste de Gansu. Fu Xi, nascido de Hua Xu Shi, ficou com o apelido Feng por parte do pai, constatando-se assim a passagem da sociedade matriarcal para a patriarcal através do processo de união entre as duas tribos, a matriarcal Hua Xu a viver em terras de Sichuan e em Gansu a patriarcal Feng.
Outro conto da mitologia chinesa acerca dos progenitores deste lendário soberano refere ser o pai de Fu Xi o deus do Trovão e a mãe Hua Xu Shi (华胥氏), a única filha de um casal que habitava no Noroeste (Sichuan), no lugar de Lei Ze (雷泽), junto ao Rio do Trovão, próximo do lago com o mesmo nome, onde o deus vivia. A rapariga Hua Xu, um dia, farta dos maus humores do deus, que constantemente infligia inundações às povoações ribeirinhas, resolveu ir falar-lhe e perguntar qual a razão deste não ir habitar o Céu como os outros deuses. Perante tal desplante, mas rendido à beleza da rapariga, acordou retirar-se para o Céu [Tianshui, Gansu] se ela casasse com ele. Passado um ano teve um filho e como a ela lhe estava vedado o regresso à sua terra, resolveu que o filho deveria crescer em Hua Xu Zhi Yuan (华胥之渊). Um dia, aproveitando a ausência do deus do Trovão, colocou a criança dentro duma enorme cabaça e deixou que o rio a levasse. Aconteceu encontrar-se o pai de Hua Xu a pescar e ao ver a enorme cabaça, retirou-a do rio e levou-a para casa. Quando o casal a talhou, dela saiu uma criança vestindo uma camisola bordada com flores, que reconheceram ser da camisa da filha. Deram-lhe o nome de Fu Xi, que significa oriundo de uma cabaça.
Esta criança cresceu rapidamente, distinguindo-se das outras por ser muito alta, inteligente e corajosa, para além de poder subir ao Céu pela escada celeste por ser filho de um Deus. E seguindo esta história, pelo livro Mitos Antigos da China, (edição Livros de Fênix, 1989, Beijing):
“Segundo uma lenda dos tempos mais remotos a Terra e o Céu estavam ligados por uma gigantesca árvore chamada Jian Mu que, colocada no centro da Terra, era como uma ‘escada’ natural. Esta árvore, ao contrário de todas as outras, não produzia sombra sob os raios do Sol e ao longo do seu tronco caíam milhares de lianas bíparas em forma de cordas que constituíam a ‘escada celeste’ por onde os deuses desciam do Céu à Terra e vice-versa. No entanto, os seres humanos não tinham a habilidade de trepar ao Céu por esta ‘escada’. Fu Xi, sendo filho de um deus, podia subir e descer facilmente por ela.”
Esta a versão apresentada normalmente sobre a mitológica história do nascimento de Fu Xi, que nos dá a entender andar a tribo Feng em conquista por Sichuan e com o acordo feito para parar a guerra e retirar-se, levou Fu Xi a nascer em Tianshui, província de Gansu.
Meios-irmãos separados
A área onde em 1985 foi criado o distrito de Tianshui (天水), na actual província de Gansu, era no século IX a.n.E. chamada Quanqiu e o reino Qin aí teve a sua capital até 770 a.n.E., quando a dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.) foi substituída pela Zhou do Leste e o Rei Ping (770-720 a.n.E), o primeiro da nova dinastia, mudou a capital de Hao (próximo de Xian, Shaanxi) para Luoyi (hoje Luoyang, Henan), levando o reino Qin a mover-se para Leste passando a capital para Yongcheng (actual Fengxiang, em Shaanxi). Seria a população desse reino Qin a descendente da tribo Feng ( 风, Vento) que em Gansu se quedou aquando da migração para Leste de uma parte da tribo, conduzida dois mil anos antes por Fu Xi e Nu Wa e que formou o povo Yi após chegar à Planície Central em Henan.
Fu Xi fora concebido em Langzhong, na parte Nordeste de Sichuan, de onde era natural a mãe, Hua Xu Shi (华胥氏), que pertencia à tribo matriarcal Hua Xu, mas foi em Tianshui, entre o ano 2953 e 2852 a.n.E. que nasceu, tal como três meses depois a irmã Nu Wa, ambos com o apelido Feng ( 风) do pai e por isso se compreende ser a tribo já patriarcal e serem filhos de diferentes mães. Daí a visita a Tianshui (天水), que significa Céu e Água, nome dado em 118 a.n.E. no reinado de Wu Di da dinastia Han do Oeste, quando desde o século IX a.n.E. era chamada Quanqiu. Já Nu Wa viu a luz do dia em Feng Gu (风谷), localizada na montanha Feng Wei (风 尾山), hoje povoação de Loncheng na prefeitura de Qin’an, 40 km a Norte da cidade de Tianshui.
Cresceram juntos pois ambos eram filhos do deus do Trovão ( 雷公, Lei Gong, o deus Lei Ze, com cabeça humana e corpo de dragão, que começou por ser mortal, mas ao comer um dos pêssegos do pessegueiro celeste ganhou a imortalidade e tornou-se um humano com asas, tendo recebido uma maça e um martelo com que criava os trovões).
Segundo a tradição oral, perpetuada numa canção do grupo étnico Miao (洪水朝天, Hong Shui Chao Tian), há muitos anos o deus do Trovão e do Vento eram irmãos, tendo-se separado e enquanto Lei Gong (雷公), o deus do Trovão habitava no Céu, Jiang Yang (姜央), o deus do Vento vivia na Terra. Ao desentenderem-se entraram em guerra, dando origem a uma grande inundação que levou a água a chegar quase ao Céu.
A vingança de Lei Gong
A história que se segue provem da província de Guangxi, perpetuada oralmente e mais tarde registada no livro Min Jian Gu Shi Zi Liao ( 民间故事资料).
O deus do Trovão (Lei Gong), representado com um rosto de macaco, bico de pássaro e asas que seguram um machado e um maço, tinha como esposa a deusa dos Relâmpagos (Dianmu). Lei Gong constantemente aparecia nos céus e, com tempestades, intensas trovoadas e diluvianas chuvas, fustigava os agricultores, arruinando-lhes as culturas. Farto de ser vítima de tais calamidades, certo dia o agricultor Zhang Bao Bo (张宝卜), ao aperceber-se, pelo adensar das nuvens, que o deus do Trovão se aproximava, resolveu confrontá-lo. Preparou uma gaiola de ferro e pendurando-a num poste, na parte de fora da casa, desafiou o deus para um combate. Furioso perante o desplante daquele terreno ser, o deus irado atirou-se dos céus para acabar com o provocador. Mas o agricultor com a sua forquilha de ferro e cabo de madeira apanhou-o e num rápido movimento colocou-o dentro da gaiola, fechando-lhe a porta. Assim aprisionado, o deus perdeu o poder de fazer chover, voltando o Sol a raiar.
Precisando de sair para fazer umas compras, antes de partir, o agricultor avisou os dois filhos para se afastarem da gaiola, não se dirigirem ao deus, nem com ele falarem e muito menos lhe darem água. As duas crianças, o rapaz de nome Fu Xi e a rapariga chamada Nu Wa, fartas de estarem em casa devido às constantes intempéries, aproveitando o Sol que voltara a aparecer ao fim de longos dias de chuva, brincavam no pátio da casa.
O deus do Trovão, que precisava de comunicar com o deus das Águas para conseguir reaver a sua poderosa força, apercebendo-se poder tirar partido da inocência das crianças, começou a lamentar- se do imenso calor que fazia. Estas, lembrando-se dos avisos do pai tentaram ignorá-lo, mas a insistência do deus a clamar por compaixão, agora mirrado e com um aspecto inofensivo, mexeu com elas e, perante as constantes e tormentosas súplicas, começaram a vacilar e a ficar condoídas. Percebendo tal, o deus prometeu não lhes tocar se lhe dessem apenas umas gotas de água para apaziguar a sede. Pensando não haver grandes consequências, deram-lhe um pouco de beber. Mas, mal o deus tocou na água, logo a sua força e poder voltaram, libertando-se da jaula. As crianças assustadas iam para fugir quando o deus do Trovão lhes lembrou não lhes querer fazer mal e entregou-lhes um dos seus dentes dizendo para o plantarem na terra, pois este as iria salvar da grande calamidade que ele iria provocar, devido à ousadia humana de o terem encarcerado.
Mal o deus do Trovão partiu, após se encontrar com o deus da Água, deu início à vingança e tão grande foi que em poucos dias toda a Terra estava coberta de água. Seguindo o conselho do deus, os dois irmãos viram sair da terra uma grande cabaça que se dividiu mal a água chegou, embarcando cada um numa das metades.
O lavrador, com o cair das primeiras gotas, percebeu logo que Lei Gong se tinha libertado. Mas nada pôde fazer pois o deus do Trovão conjuntamente com o deus das Águas rodopiando provocaram tamanha tempestade que inundaram todas as terras e até as mais altas montanhas ficaram submersas. Ninguém se salvou excepto os dois irmãos, que navegando cada um na sua metade de cabaça foram levados pelas agitadas águas e durante dias andaram à deriva, tendo-se perdido um do outro devido às correntes provocadas por o deus do Vento, que os levaram por caminhos diferentes, separando-os. Estavam as águas a chegar ao Céu quando o Imperador de Jade ordenou aos deuses seus subordinados para pararem e voltarem a colocá-las nos seus normais leitos.
Mitológica história perpetuada via oral contada com variantes por diferentes grupos étnicos como os Miao, Yao e Zhuang, mas a solução para a insanável questão sobre o pai das duas crianças aparece explicada no actual livro Gu Shen Hua Xuan Shi (古神 话选释), escrito por Yuan Ke (袁珂). Nele se refere que Lei Gong e o lavrador poderiam ser irmãos e ter havido na tribo lutas internas.
Após o dilúvio e separada do meio-irmão, Nu Wa vagueava só pelo mundo recém-criado onde não havia vivalma e sentia-se muito só. Um dia, meditando sentada na margem do rio, esculpiu da lama as aves de capoeira, no segundo dia os cães, no terceiro os porcos, no quarto as cabras, no quinto os búfalos e no sexto dia os cavalos. Ao sétimo dia da primeira Lua, ao contemplar o seu reflexo na água, apanhou um punhado de lama e começou a modelá-la à sua imagem, mas em vez de uma cauda fez duas pernas, para que esta escultura se mantivesse de pé. Ao pousá-la, a figura adquiriu vida. Contente com a sua criação, continuou a modelar mais e mais criaturas. Resolveu assim povoar o mundo, mas percebeu ser tal tarefa imensa e nunca mais a terminaria. Então, decidida a usar os seus poderes sobrenaturais, pegou num ramo de vime e passando-o pela lama fê-lo girar no ar e os salpicos, ao tocar o chão, transformaram-se em novos seres humanos. Percebendo o efémero dessas criações resolveu dividi-las entre homens e mulheres com aparelho reprodutivo para perpetuar a espécie humana e assim apareceu a Humanidade. Por isso, o sétimo dia da primeira Lua é, no calendário chinês, o aniversário dos humanos.
O ter Nu Wa usado terra para criar os seres humanos aparece contado no capítulo 78 do Taiping Yulan (太平御览), livro enciclopédico da dinastia Song do Norte, coordenado por Li Fang entre 977 e 984, que refere reproduzir a história encontrada no livro Fengsu Tongyi (风俗通义), escrito por Ying Shao durante o reinado de Xian Di (189-220) da dinastia Han do Leste, mas aí perdida pois dos seus trinta capítulos só dez chegaram até nós.
