Conceitos do Pensamento chinês
(Li) padrão, princípio, propriedade, inerência
O conceito de Li é um dos mais difíceis de explicitar e tornar plenamente inteligível ao leitor ocidental. Traduzido por padrão, princípio organizador, propriedade, regra, razão, etc., Li refere a organização interna do mundo e dos seres, invisível, imanente e em constante mutação.
Li é a rede de veias que dá vida, nutre e organiza. Li é propriedade do Dao, é inerente à Via, é a sua definição e orientação. Mas o Li não é estático, está em constante mutação. Inerente ao Dao, confere-lhe uma ordem dinâmica.
Li é, ainda de acordo com Anne Cheng, a forma de encarar a filosofia chinesa pelo seu próprio coração. Tratar o conceito de Li é dotar de validade o discurso filosófico chinês. Mais do que verdade, Li é sentido. “É na Via que os seres se ordenam e ganham sentido, o sentido do próprio Li. (…) Todo o esforço do pensamento chinês passa por encontrar as chaves da inteligibilidade do mundo, de modo a permitir uma acção humana ‘eficaz’, ou seja em harmonia com os processos da natureza”.
A harmonia com o princípio normativo, com a Via, com o Céu e a Terra, reflecte-se na pessoa de bem. O pensamento da pessoa de bem está em conformidade com a Via e a ligação é feita através de comunhão com o Li, a rede inerente ao dao. Assim, o padrão (理Li) da Via é a inerência que dota de sentido o pensamento e a acção em conformidade com a natureza.
“O padrão pode ser concebido como uma rede de veias; divergem umas das outras e revelam-se, cada uma delas, quando entendidas; por outro lado, podemos continuar indefinidamente a encontrar distinções entre elas cada vez mais finas, mais subtis, que nos levam a perceber como, em cada indivíduo ou em parte dele, se comporta, em si, o Li, o elemento que distingue cada um”. O Li é a propriedade da unicidade.
A.C. Graham vê no Li “o arranjo regular das partes num todo estruturado; das coisas num cosmo ordenado; do pensamento no discurso, como se se tratasse de um sistema de veias”.
Etimologicamente remete para o conceito dado pelo Shuowen jiezi 说文解字, um dicionário elaborado na dinastia Han por Shu Xen (許慎), que designa a origem das veias naturais de jade: “Por mais duro que seja o jade, basta encontrar o trabalho do Li, os seus estratos, as suas camadas, para uma peça ser feita sem dificuldade.”
O Li mantém uma relação estreita com outros conceitos, não menos fundamentais do pensamento chinês, podendo mesmo, em algumas circunstâncias, confundir-se com eles. No entanto, o Li acaba por lhes ser inerente, cada um deles incorpora um Li: é o padrão que os edifica, a sua razão e sentido de ser.
Por outro lado, e não menos importante, é a sua aplicação prática. Mais do que dirigido à compreensão de uma verdade absoluta, o pensamento chinês, e mais concretamente o Li, pretende viabilizar uma prática, pois nunca está separado de uma aplicação integrada no real, balizada por uma ética, enraizada numa moral.
Cheng Yi defende as ideias explanadas na “Prática do Meio” segundo as quais, sendo o decreto do Céu a natureza, é tarefa do homem alcançar o seu destino moral de acordo com a Via. O sábio desenvolve o conceito de Li como princípio normativo, que engloba a totalidade, governando tanto o mundo natural como a sociedade humana, não tendo início nem fim. Todas as coisas vêm à existência através deste padrão (理Li) dito Celeste,sendo a sua tarefa definir a função de cada ser na ordem natural, como forma de assegurar a harmonia moral.
Este padrão mantém-se por si só em todos os tempos e em todos os lugares, no mundo natural e no código ético da vida social. E como podem as pessoas aprender este padrão celeste? Cheng Hao responde que é através da manutenção do coração num estado de integridade e de veneração, enquanto que o seu irmão Cheng Yi defendia que seria através da investigação das coisas, através de um processo em que o padrão seria restaurado e os desejos humanos expulsos. Também aqui, os irmãos Cheng adoptam a teoria dos três níveis da natureza humana de Han Yu. Cheng Yi conclui que (1) o exame cuidado do padrão, (2) o preenchimento da natureza humana e (3) a realização da vocação, todos os três devem ser efectuados em conjunto.
No que se refere à sua teoria filosófica, Zhu Xi inclui elementos das teorias do Padrão Supremo, de Zhou Dunyi e de Cheng Yi. Zhu defendia que o Padrão Supremo era constituído pelo padrão (理Li) e pelo sopro (qi 气), sendo o primeiro antecedente do último. Assim, o Padrão Supremo é a origem e ao mesmo tempo a síntese de todos os outros princípios do mundo; é um princípio transcendente e perfeito, enquanto que os outros são princípios concretos que regulam objectos concretos do mundo, confundindo-se com o conceito de Céu.
À semelhança do que ocorre com todos os outros seres, também os homens são manifestações do padrão. Como a natureza humana vem directamente do Padrão Celeste, é perfeita. Contudo, com o relacionamento com outros seres, também a “natureza humana pelo temperamento”, como Zhu Xi define, pode transformar-se em má ou boa. A inspiração menciana é aqui clara.
De salientar é ainda a característica dinâmica do padrão (理Li). O sentido e a sua procura não são estáticos ou teóricos. É através dele que os processos naturais, regidos pelo Céu, se relacionam em perpétua mutação. Assim, as linhas estruturantes do Li são também as linhas de transformação de todos os fenómenos naturais. O sentido do princípio regulador não pode ser concretizado sem que exista movimento e mudança, sem que exista mutação (yi 易).
Para explicar o Li e a sua relação com o dao, Anne Cheng relembra Zhu Xi em que “a palavra dao engloba a totalidade. O Li representa as inúmeras veias no interior da palavra dao”. Se pensarmos numa árvore, esta é o dao, e as linhas que a compõem, formam e moldam, são as linhas que percorrem o seu interior.”
Zi Dashu cita Zi Zhan e diz: “Li é o cânone do céu, a norma da terra e o princípio pelo qual o homem rege a sua acção”.
Zi sugere ainda que todas as regras do Li, que governam as relações e os comportamentos humanos, são introduzidas de modo a encaixar, simbolizar, seguir e concordar com os fenómenos e processos naturais. Tudo para equilibrar e edificar as emoções e acções do homem, e consequentemente harmonizá-las com a natureza do Céu e da Terra.
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Por outro lado, o Li 理encontra a sua expressão funcional na prática dos ritos. É aqui que encontramos a aliança com a palavra homófona li 禮, que significa rito/ritual – e que apresentaremos em letra minúscula para distinguir de Li – numa relação intrínseca com a cultura (wén文).
Para Xunzi, as linhas estruturantes representadas pelo Li, que integram a pessoa exemplar na natureza, vêm das linhas de força da sua cultura (wén 文), onde os ritos (li 禮) são a sua expressão por excelência. Nesta perspectiva podemos dizer que o rito (li 禮) é também intrínseco ao próprio universo e às suas nervuras, o padrão (理 Li). Este, revela-se, num sentido quase fotográfico, através do li. A imanência manifesta-se no rito. O rito é a prática da pessoa exemplar, um reflexo da sua natureza e o modo de proceder de acordo com o padrão (理Li).
De acordo com Léon Vendermeersh, o Li, no pensamento antigo chinês, corresponde à ideia de um ordenamento ritual, uma ordem objectiva, visualizável, palpável que obedece a uma concepção teleológica. Há portanto uma conivência entre o Li e o li.
Deste modo, o rito (li 禮) representa o costume, as ordens de procedimento, o arranjo das coisas e das relações entre os homens. No rito está a acção/relação. Nylan escreve : “O termo rito denota uma panóplia de comportamentos apropriados e de mútuo agrado, feitos sobre as percepções emocionais. Estes comportamentos, expressos através do vestir, do semblante, da postura corporal e da comunicação verbal são criados para fortalecer a ligação entre os vivos e os mortos”.
Nylan admite ainda que existe um Li quotidiano, que abrange o comportamento circunspecto, determinados actos considerados e uma cortesia requintada. No entanto, ao contrário da conotação ocidental, o Li de Confúcio não é uma acção religiosa, mas sim uma regra implícita ao relacionamento humano e inerente à pessoa exemplar, que regula e explana as relações existentes entre as pessoas.
Confúcio disse: “O respeito está próximo do li, para ficar longe da vergonha e da desgraça. A pessoa exemplar tem um grande conhecimento literário, mas modera-o com o li; como pode ele desviar-se da Via? (…) Se existir respeito sem o li, será cansaço; se existir prudência sem o li, será timidez; se existir coragem sem o li, será imprudência, se existir simplicidade sem o li será rudeza.”
