A Grande Muralha da China e a construção de uma metáfora viva

A grande muralha da China é um dos expoentes máximos da arquitectura e da engenharia militares. Com uma longuíssima extensão1, acompanhando vales e montanhas, e construída ao longo dos séculos, a grande muralha tinha como objectivo supremo defender e resguardar o império de invasões externas, permitindo igualmente uma fixação das linhas de fronteira e acomodar nelas o perímetro dos diversos reinos.

A sua grandeza, imponência e magnitude foram objecto de fascínio e de peregrinação, sendo conhecida e mitificada em todo o mundo. Sobre ela se escreveram livros2, se fizeram filmes3 ou se produziram artefactos raros, especiais e valiosos4. Dos viajantes e aventureiros portugueses cito o inevitável Fernão Mendes Pinto5, de quem se suspeita que tenha trabalhado, como cativo, na construção da grande Muralha da China, e esta descrição amena do Conde de Arnoso6, “do parapeito, meio desmoronado, arrancamos com custo um pesado tijolo. Carregamos com ele até Pa-Ta-Ling e conservá-lo-emos sempre como a mais preciosa relíquia de toda a nossa peregrinação pelo mundo. Ao findar do almoço, de pé e descobertos sobre a Grande muralha, – era o dia dos anos de Sua Majestade – bebemos respeitosamente à saúde de El-Rei de Portugal. Com o coração confrangido pela saudade da pátria, tão querida e tão distante, Deus sabe a comoção que nesse momento nos oprimia!…”.

Mas é exactamente como metáfora viva, no sentido dado por Paul Ricoeur, que desejamos olhar para a grande muralha da China, reconciliando o pensamento com a imagem que se impõe ao sujeito e o trânsito do visível com o invisível. Foram seleccionados vinte e quatro contextos histórico-culturais desde 1863 até 1992, cada uma das situações com um sistema simbólico a valer por si próprio e com a conhecida predicação impertinente. Nestes exemplos há um claro afastamento das ideias mais comuns do orientalismo e da sinologia. A muralha é sempre utilizada com o sentido físico de barreira, de obstáculo, maxime de cordão sanitário ou de mecanismo de segurança e protecção. Poucas vezes o sentido de humor está presente, para induzir outras interpretações consideradas equívocas. Nos trechos antologiados emerge um sentido desmaterializado na sua exterioridade e enunciando uma mensagem simples com uma narratividade que recupera a memória das nossas experiências.

 


A Grande Muralha da China
Uma pequena antologia

 

Na Grande Muralha
Esta coroa imperial a coroar as montanhas
Enobrecem-na séculos de aprumo militar.
Que arrogâncias de torres em distâncias tamanhas!
São visíveis da Lua, se as patrulha o luar.

António Manuel Couto Viana
Até ao Longínquo China Navegou…
Instituto Cultural de Macau, 1991

1. “Julgou-a tão segura que recolheu a Braga com tanta confiança, como se entre ele e os franceses estivesse a muralha da China ! Pobre homem !”

Arnaldo Gama, O Sargento-mór de Vilar (episódios da invasão dos franceses em 1809), Porto, Typographia do Commercio, 1863, pp. 65-66.

2. “Ah! E em que outra parte ocidental da Europa se vê tão exemplar espectáculo, excepto nesta portuguesa província do Minho? Será acaso porque estas comarcas ainda não ouviram silvar a locomotora, ou por ignorarem os progressos do século corruptores, que a barreira desses montes, qual outra muralha da China, ainda impede o propagar-se ? Se assim é, oxalá nunca lhes chegue tão falsa civilização !”.

Liuis Vermell i Busquets, Descripção do Sanctuario e Romaria de Nossa Senhora do Porto d’Ave em 1869, Braga, Typographia Luzitana, 1871, p. 23.

3. “Venceu as resistências, transpôs a muralha da China. Mas quando ia com a navalha para cortar o cinto, o Coruja retesou a corda, e a mão do general deu na cara do Chumba, que estava curvado sobre o esquife”.

Bento Moreno, Vingança do Morto, in Revista O Cenáculo [dirigida por Cândido de Figueiredo], Vol. I, Lisboa, 1875, p. 110.

4. “Não serviria para nada a muralha da China porque mais fortes do que ela eram os Pirenéus e o exército francês atravessou-os triunfante ; mais fortes que todas as muralhas e que todas as cordilheiras é o direito, e Filipe II invadiu Portugal para se assenhorear de um trono que não lhe pertencia”.

Raphael Bordallo Pinheiro, O António Maria, Ano IV, 27 de Julho de 1882, p. 238.

5. “Contra esta muralha da China, contra este baluarte de avareza, iam quebrar-se todas as lamentações que o conde sobrescriptava para o tio marquês quando a sorte lhe havia sido adversa ao jogo”.

Alberto Pimentel, Atravez do Passado, Guillard Aillaud & Cª., Lisboa, 1888, p.141.

6. “Não me atrevi a arrancar João Penha das garras do cliente. Mas à volta do Bom Jesus, tornando a encontrar-nos no mesmo americano, interpus-me ao demandista e a ele, e conversamos de vária literatura, – muralha da China contra a qual esbarraram, infrutiferamente, duas investidas do brácaro Chicaneau, que parecia recortado dos Plaideurs de Racine”.

Alberto Pimentel, João Penha, Livraria Escolar de Cruz & Cª., Braga, 1893, p. 17.

7. “A consciência do dever é, porém, uma espécie de muralha da China”.

Alberto Pimentel, Manhãs de Cascaes, Livraria Ferin, Lisboa, 1893, p. 105.

8. “A fronteira de Portugal levantava-se agora entre o passado e o presente, impenetrável como a muralha da China”.

Alberto Pimentel, A Guerrilha de Frei Simão, Livraria de António Maria Pereira, Lisboa, 1895, p. 234.

9. “As esguias flexas dos choupos, que afastam num céu de tragédia, gemem a grande ária do infortúnio sob o açoite do vento e o Tejo, engrossando das vertentes das serras que se desnudam, resfolga, desde a linha férrea, que é a muralha da China das cheias ribatejanas, té à barra de montanhas, além, que faz antípodas os nossos vizinhos de Coruche!”.

João Arruda, Atravez de Santarem (Notas d’um Chronista). Prefaciado por Alberto Pimentel. Santarem, Imprensa Moderna, 1898, p. 11.

10. “Sob o ponto de vista do génio da população, a estrada de circunvalação é uma muralha da China”.

Alberto Pimentel, Vida de Lisboa, Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1900, p. 19.

11. “Entre D. António e D. José, como entre toda a gente, antes ou depois do dia 20 de Maio e de Novembro, ergue-se como uma barreira para todos os sonhos, como uma muralha da China que impede todas as invasões da fantasia a figura terrível, sinistra, colossal do senhorio”.

Alberto Pimentel, Vida de Lisboa, Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1900, p. 128.

12. “O Comodoro, colocado entre as grandiosidades da sua visão cosmopolita e as estreitezas caturras do indigenismo pátrio, sob a pressão da carregada atmosfera social de então, derramava-se em imprecações, golpes, vitupérios incorcíveis. Mas esse pessimismo absoluto traduzia uma remontada forma de patriotismo, de nacionalismo elevado, procurando constituir uma colectividade alta com destruição das Muralhas da China do conservantismo”.

Virgílio Várzea, George Marcial (romance da sociedade e da política do fim do império), Editores Tavares Cardoso & Irmão, Lisboa, 1901, p. VI.

13. “E todavia dir-se-ia que a muralha da China interpõe a um e a outro a sua opacidade impenetrável, tendo apenas no alto, a velar, o olho sagaz do fenício, cravado em rápida alternativa no chinês e no mongol”.

Basílio Teles, Estudos Históricos e Económicos, Livraria Chardron de Lello & Irmão, Porto, 1901, p. 163.

14. “A turba de espectadores crescia sempre, sob a chuva, apertando o corredor da desfilada, numa muralha da China de chapéus de chuva”.

Fialho de Almeida, Pasquinadas : jornal d’um vagabundo, Livraria Chardron, Porto, 1904, p. 91.

15. “Na Grande Muralha da China, escalada afinal pelos Tártaros, figura-se o isolamento absoluto, cioso, pertinaz do Estado, de tudo o que é estrangeiro, e o estacionamento consequente da civilização chinesa”.

Vários [Marques Braga, Afonso Lopes Vieira, Magalhães Lima, Agostinho Fortes, Mayer Garção, Boto Machado, Álvaro Afonso Barbosa, Frederico Parreira, Urbano Rodrigues, Heliodoro Salgado], Quinquagenario : 1858 a 1908. Cincoenta Annos de Actividade Mental de Theophilo Braga julgada pela Crítica Contemporânea de Três Gerações Litterárias, Antiga Casa Bertrand, Lisboa, 1908, p. 220.

16. “O estudo de Esteves Pereira no Occidente (revista ilustrada), sobre os manuscritos iluminados portugueses, ou existentes em colecções portuguesas, é muito deficiente. Basta recordar que lhe falta toda e qualquer referência à arte dos nossos vizinhos que são riquíssimos ainda e originais na sua técnica. Sempre a mesma muralha da China, na fronteira de Portugal, para estes senhores, nacionalistas inconscientes! O Visconde de Santarém não procedeu deste modo, no mesmo assunto, há sessenta anos. Para que servem então esses exemplos ilustres?”.

António Teixeira Júdice e António Arroio, Notas Sobre Portugal, Exposição Nacional do Rio de Janeiro em 1908. Secção Portuguesa, Vol. II, Imprensa Nacional, Lisboa, 1908, p. 189.

17. “Eu não venho pedir impossíveis, porque,  francamente, o coração de Lola não é uma muralha da China. Nunca vi coração tão desordenado”.

Coelho Neto, Theatro, Livraria Chardron, Porto, 1911, p. 94.

18. “A corte, em regra geral, era fechada, na sua muralha da China, à convivência de sábios e homens de letras, sendo aliás inexplicável o facto, porque D. Luiz, D. Carlos e D. Manuel eram três homens de esclarecidíssima inteligência e de variadas aptidões artísticas”.

Sérgio de Castro, Camilo Castelo Branco: tipos e episódios de sua galeria, ed. Parceria António Maria Pereira, vol. III, Lisboa, 1914, p. 46.

19. “E nem a polícia apertada de Pina Manique nos defenderia do contágio insalubre que se exalava de França, embora dispusesse da muralha da China para nos resguardar”.

António Sardinha, O Valor da Raça. Introdução a uma campanha nacional, Almeida, Miranda & Sousa editores, Lisboa, 1915, p. 129.

20. “Depois, começando a agitar por detrás dessa como que muralha da China toda a sua refeita actividade, desoprimida da concorrência estrangeira, entregou-se ao trabalho com ardor, criou indústrias, ergueu fábricas, utilizou o oiro da Califórnia e a prata da Nevada, o ferro, a hulha e o petróleo da Pensilvânia, o algodão da Georgia e da Luisiana, tirou a sua subsistência das produtivas herdades do Oeste, dos rebanhos do Ohio, do Texas e do Iwoa, em tudo se libertou denodadamente e enfim do muito pesado tributo que pagava à Europa”.

Alfredo de Mesquita, A América do Norte, ed. Parceria A.M.Pereira, 1917, p. 57.

21. “Ora de todo o Portugal, nenhuma província é mais muda na história do que o Algarve sempre separado da vida do país por essa insuperável muralha da China que é o Alentejo”.

Fidelino de Figueiredo, Estudos de Literatura, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1918, p. 17.

22. “Assinai e sereis ricos. Cada caderneta custa-vos um vintém, dez reis, cinco reis, grátis ; com elas tendes um bilhete ; com um bilhete adquiris o direito de possuir uma estátua toda de prata, um diamante do grão-mogol, a muralha da China, o obus de Pequim ou o sino grande de Moscovo ; porque assinar para um romance dá direito às maiores coisas deste mundo, incluindo as massadas, os galicismos e as pragas dos distribuidores, que são as maiores que se conhecem neste mundo”.

J.M. Latino Coelho, Typos Nacionaes, Editores Santos & Vieira – Empresa Literária Fluminense, Lisboa, 1919, p. 84.

23. “Essa é que importa esclarecer. Torna-se para isso necessário cindir, no mesmo lio de interesses e afinidades os que trabalham com uma pena na mão, tentando com ela, à guisa de ariete, destruir as muralhas da China do Erro e elevar novas pirâmides do Pensamento. A pena é mais útil na vida contemporânea do que foi a espada no ciclo medieval”.

Afonso Gayo, O Condenado, [Peça em 5 Actos], Rodrigues & Cª. Livreiros Editores, Lisboa, 1921, p. VIII.

24. “Marx via a burguesia demolindo a muralha da China para impor o seu modo de produção. Ora ninguém bombardeou a muralha da China, ninguém impôs o modo de produção mercantil: foi o mercado que automaticamente alargou as suas malhas para o exterior”.

António José Saraiva, Estudos Sobre a Arte d’ Os Lusíadas, Gradiva, 1992, p. 142. 

 

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Notas

  • 1 21.196 quilómetros de extensão, com oito metros de altura e quatro metros de largura. É um monumento classificado pela UNESCO como Património Mundial.
  • 2 Por exemplo, Franz Kafka publicou A Grande Muralha da China, em 1931.
  • 3 O mais recente, A Grande Muralha, de 2016, com a direcção de Zhang Yimou, e com Matt Damon, Jing Tian , Peter Pascal, entre outros.
  • 4  Foi criada uma caneta especial, Montblanc High Artistry, como “homenagem à Grande Muralha da China”, uma peça de ourivesaria com um valor de cerca de dois milhões de dólares americanos.
  • 5 A Peregrinação é uma obra de 1614 e no Cap. CVIII relata-nos como eram os prisioneiros colocados na construção da grande muralha,  “Da prisão do Xinanguibaleu onde estão sempre os degradados para o serviço do muro da Tartária” [edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, transcrição de Adolfo Casais Monteiro, pp. 312-315, 1988].
  • 6 Publicou o artigo “Excursão à Grande Muralha da China”, na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queiroz, Vol. I, Nº 2, 1 de Agosto de 1889, pp. 212-232. Este texto integrou o volume Jornadas pelo Mundo, Companhia Portuguesa Editora, Porto, 1916.

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