Amarelo

O amarelo ( huáng) é a cor da China, da terra amarela (黄土,huáng tǔ), o berço da civilização chinesa, onde corre o melhor dos rios, o Rio Amarelo (黄河 huáng Hé) e onde há muitos séculos governou, um imperador, o Imperador Amarelo (黄帝 Huáng Dí). Este último segundo o Clássico dos Três Caracteres (《三字經》), importante manual escolar desde os tempos medievais ( mais precisamente a dinastia Song ( Sòng) até finais do império), terá vivido entre 2704 e 2595 a.C, simbolizando o início da civilização amarela pelas importantes medidas que tomou, em termos da organização do país. Ele passaria à história como o Imperador do Centro (中央天帝黄帝 Zhōngyāng Tiāndì Huángdì), entre as suas acções destacam-se a escolha para casamento de Leizu (嫘祖Léizǔ), que inventou a sericultura, ensinando aos chineses como criar bichos-da-seda para obter mais tarde belíssimas vestes; a domesticação de animais; o processamento dos cereais; a invenção de armas de caça, como o arco e a flecha; o início da construção civil; a utilização de caixões para enterro e a construção de cemitérios; a criação de um almanaque; a exploração de minerais, entre tantas outras medidas.

O amarelo ficaria para sempre associado ao ouro, à terra, aos girassóis, mas também ao centro, por um lado, enquanto representante apenas da Terra ( Tǔ), que entre os Cinco Elementos da cosmologia chinesa ocupa o centro (五行 Wǔ Xíng); por outro, na qualidade de representante de o país do centro (中國 Zhóngguó) do mundo, governado por imperadores ( huáng), cuja nomenclatura realiza uma homofonia perfeita com amarelo ( huáng). Os imperadores são todos, numa leitura etimológica pessoal, pequenos astros-rei ( wáng + ), mas podem também ser, na interpretação do etimologista Shi Zhengyu (施正宇), pequenas lamparinas brilhantes (+ bái) , numa hermenêutica ou noutra eles são os filhos do céu (天子 tiānzǐ), que iluminam e orientam o caminho das pessoas, pela sua ligação ao divino firmamento, irradiando sabedoria que vão derramando pelas gentes.

A cor amarela é poderosa a vários níveis, já que representa o poder político e material, mas também o poder espiritual voltado para a terra, uma vez que os caracteres auspiciosos, numa expressão de força mágica suprema, costumam ser pintados a ouro/amarelo sobre um fundo vermelho: quanto não valerão a felicidade, prosperidade, longevidade, alegria e riqueza douradas?

Do ponto de vista natural, que nunca pode ser desligado do mental na China, o amarelo representa um dos oito trigramas do Clássico das Mutações. Ele é o raio/trovão ( Zhèn), o poder vibrante e criativo, associado à potência celestial do filho mais velho do Céu ( Qián) e da Terra ( Kūn). Ele é o choque electrizante, o despertar de algo novo. O estrondo ofuscante que nos obriga à atenção ao exterior e ao interior. Face a uma força que nos excede, é melhor voltarmo-nos para dentro, revendo as nossas possibilidades, como sugere a imagem associada a este hexagrama na leitura de Richard Wilhelm (1898: 189): “Trovão repetido: a imagem do choque./ Assim a tremer de medo/ o homem superior coloca a sua vida em ordem/E examina-se a si mesmo.” (“洊雷,震;君子以恐惧修省”) (, 1995:232). Uma força muito superior à do comum dos mortais, como seja a duma sublime tempestade nos céus, ou o exercício da governança nos tempos imperiais na terra, conduz à surpresa e ao receio de não se ser capaz de responder a tamanha manifestação de energia, no entanto uma atitude meditativa adequada pode levar ao êxito e à boa sorte, sobretudo quando se consegue satisfazer, escapar ou contornar a mesma.

O Amarelo, no que respeita à Medicina Tradicional Chinesa, encontra-se ligado ao elemento Terra, ao fim do Verão, à humidade, aos músculos, ao nariz ao baço e ao estômago, bem como ao sabor doce, mas também pela cor ao ácido, os limões e os ananases, por exemplo, são ácidos, já os abacaxis podem ser bem docinhos. Ora uma dieta equilibrada, fundamental para uma vida saudável, terá de contar com alimentos doces em dosagem não superior à dos restantes sabores, menos apelativos, como o amargo, o ácido, o picante e o salgado.

Na gíria, o amarelo tem uma carga menos positiva, talvez porque se siga a observação natural, e o que se nota em termos de ritmos da natureza é que a cor surge em ligação com o final do Verão, princípio do outono, logo associada ao processo de maturação e envelhecimento de flores e frutos. Assim, não apenas os crisântemos amarelos simbolizam a terceira idade, com encontramos a seguinte expressão “o assunto amarelou” (事情黄了 shìjíng huángle) com o sentido de oportunidade perdida ou, ainda, uma outra, a da “fonte amarela” (黄泉 huáng quán ) a figurar o mundo subterrâneo e das trevas.

Para terminar, volte-se ao princípio deste texto, à apresentação do amarelo a título de cor omnipresente e omnipotente da China, a representante da esfera mundana chinesa. Há um episódio relacionado com a figura principal dos Oito Imortais taoistas (八仙 Bā Xiān ), que nos coloca as papas de milho-amarelo a figurarem este mundo de sonho (nem sempre bom) para muitos taoistas. Este é recordado com um provérbio, em chinês “黃粱一夢” (huángliáng-yīmèng), traduzido na sinologia por “paraíso de loucos”, mas que numa tradução literal significa “comer papas de milho-miúdo ou amarelo e ter um sonho”. O imortal aqui referido é Lü Dongbin (呂洞賓Lǚ Dòngbīn). Nas Crenças Populares ocupa um lugar destacado entre as divindades, quase ao nível da Bodhisattva Guanyin (觀音 Guānyīn). Eles são ambos salvadores, verdadeiramente preocupados com o bem-estar das pessoas.

Lu Dongbin é considerado o fundador espiritual da Escola Taoista da Verdade Completa (Quánzhēn dào), ligada ao patriarca humano Wang Chong Yang (王重陽Wáng chóngyáng). Voltando ao imortal, a sua biografia é um modelo de ética taoista. O seu sobrenome é Lü (Lǚ) e o seu nome Yan ( Yán). Mais tarde alterou o nome para Dongbin (洞賓Dòngbīn) , quando foi viver numa gruta em Nan Shan (南山 Nán Shān), para praticar o Caminho ( Dào). Os imortais regozijaram-se nos céus ao tempo do seu nascimento, festejando-o com algazarra. A sua casa ficou repleta de uma fragrância exótica e agradável, que provava ser ele abençoado por um vento imortal.

Reza a lenda que modificou o sobrenome para Lü () para assim revelar as duas entradas principais da gruta da montanha relacionadas com as duas principais forças cósmicas. Também se atribuiu o nome de Puro Yang (純陽子Chún yángzi).

Aos dez anos já tinha uma compreensão profunda dos Clássicos Chineses. Aos quinze conhecia todos os segredos da espada e mais tarde foi o criador da espada imortal, significativamente baptizada de espada Yin e Yang (陰陽剑 Yīnyáng jiàn). Aos vinte participou nos exames imperiais, mas falhou a selecção. Nesse tempo de aflição encontrou outro imortal, Zhong Li Quan (鍾離權Zhōng Lí Quán), que lhe ensinou a esquecer o mundo humano e a concentrar-se nos assuntos divinos e na persecução da imortalidade. Este encontro é recordado no provérbio onde se relata o pesadelo provocado pela ingestão propositada de “milho amarelo”, que aqui fica em jeito de conclusão:

O patriarca Lü (呂祖) quando era um estudante confucionista pediu para se tornar oficial. Prestes a realizar as provas, o transporte não chegou a tempo, impossibilitando-o de atravessar o rio (…).

Ao viajar para Chang’an, encontrou por acaso Zhong Li Quan numa estalagem. O imortal, depois de ler o seu coração, cozinhou-lhe milho-miúdo (黃粱). Dongbin comeu, adormeceu e começou a sonhar. No seu sonho era um letrado distinto, tendo-se tornado uma estrela do mundo político. Assumiu então o cargo de primeiro-ministro do imperador reinante. Dez anos mais tarde, tinha glória, honra, riqueza e estatuto. Gostava sinceramente da sua vida; mas de repente esta deu uma grande volta e ele caiu em desgraça.

O imperador, que nessa altura pensava o pior dele, acusou-o de actos criminosos. As suas propriedades e fortuna foram confiscadas e ele foi enviado para o exílio nas montanhas do Sul perto da fronteira. Num instante dez anos de glória transformaram-se num pesadelo. Olhou para o seu passado com um suspiro pesaroso.

Enquanto suspirava, acordou e compreendeu que tinha estado a sonhar. Zhong Li Quan, fixando o olhar em Lü, também suspirou: «talvez o milho-miúdo não estivesse bem cozinhado, por isso sonhaste com Huaxu.”

Lü, ao escutá-lo, exclamou admirado: «Como podia saber com o que eu sonhava?» O imortal respondeu: «o teu sonho era sobre as ascensões e quedas no mundo, trazendo consigo muitas alegrias e tristezas. Passaram quarenta anos num abrir e fechar de olhos. Não te parece que já tiveste alegrias e tristezas que chegassem? As pessoas precisam de perceber que a vida não passa de um grande sonho!» Depois de escutar estas palavras, o patriarca Lü alcançou a iluminação, por isso se manteve afastado do mundo humano, a fim de aperfeiçoar o seu comportamento.

(呂祖早年為儒生,有心求取仕進,但卻時運不濟,屢試不中。(…)游長安,於酒肆中偶遇鍾離權。鍾離權有心讀他,遂為其執炊,烹煮黃粱,並使其入夢。在夢中,呂祖夢見自己高中進士,從此飛黃騰達,歷任諸管,最後擔任宰相達十年之久,榮華富貴,享用不盡。然就在得意之際,突然犯錯而遭皇上降罪,家產盡被充公,並遭流放到嶺南邊彊。數十年榮景,毀於一旦,回首從前,對照當下,不勝唏噓。正感嘆之際,突然夢醒,方知一切是夢。

醒後,只見鍾離權在旁吟道:〈黃粱猶末熟,一夢到華胥〉呂祖聽聞此言,驚訝文說:〈你知我夢?〉鍾離權答道:〈 你剛才之夢,升沉萬態,榮枯多端,四十年傍若一瞬,得不足喜,失何足憂?世人必須大覺,而後知人生亦大夢也!〉呂祖文言而有所感悟,遂下定決心出世修行。) (陳,柳,丁, 2006: 105/6) 

 

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Bibliografia

  • Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspectiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau.
  • Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa, Em busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macau, Círculo dos Leitores.
  • Shi Zhengyu (施正宇). 1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide To the Origins of Chinese Characters《汉字的故事》北京:新世界出版社.
  • Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.
  • Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of Changes. London: Arkana, Penguin Books.
  • 陳志修、柳碧華、丁子芸 (Chen Zhixiu, Liu Bihua, Ding Ziyun )(主篇)2006《臺北市寺廟神佛源流》臺北:臺北市政府民政局.
  • 張中鐸(Zhang Zhongduo) ().1995.《易经提要白話解》台南市:大孚.

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