A mesma certeza, a mesma maldição

Carlos Morais José

 

Dotadas ou não de escrita, todas as civilizações, dos mais imponentes os impérios e deslumbrantes cidades às mais excluídas aldeias e ignotas tribos, conheceram e criaram poesia. Universalmente, algo de encantatório se desprende, algo comovente secreta, algo misterioso se impõe, a partir de uma sucessão especial de palavras, amiúde transportadas por uma melodia, que arrebata o ser humano e nele se inscreve, independentemente da sua cultura específica, da geografia onde se espraia ou do grupo social a que pertence. A poesia é um fenómeno universal e representa, em cada cultura, o cume mais alto da expressão estética. Nessas palavras, sempre dotadas de uma explícita ou oculta rima, se fundem a música, as imagens e uma miríade de sentidos. Elas prevêem e evocam, açoitam a realidade e prescrevem vários mundos.

O poeta, na medida em que murmura numa linhagem antiquíssima que nos transportará à primeira língua, sente acima de tudo a impossibilidade de não corresponder na sua existência aos valores a que — amiúde ilusoriamente e cometendo crassos erros, quando não crimes — a sua prática poética o obriga. A compulsão poética funda um olhar sobre o mundo, mas não se trata de algo passivo. Pelo contrário, consiste numa recriação do real e do imaginário, dotada de uma eficácia sem igual. Na poesia e pela poesia, criam-se, recriam-se e destroem-se existências.

Qu Yuan (343-278 a.E.C.), que neste número da Via do Meio brevemente apresentamos, recusou viver num reino onde se dissolveria a sua dignidade, num tempo em que os valores se esboroavam, dando lugar à ganância, à violência, à ignorância e à corrupção. A sua integridade e sensibilidade não eram compatíveis com o que contemplava à sua volta. Qu Yuan escolheu mergulhar num rio e nele para sempre desaparecer. Mas o povo quis conservar a sua memória e 2400 anos depois ainda se atira anualmente arroz aos rios para que os peixes não precisem de se alimentar do poeta.

Qu Yuan terá sido o primeiro poeta chinês a escapar ao anonimato, pois antes dele as poesias conhecidas, nomeadamente as que haviam sido seleccionadas e reunidas por Confúcio no Livro das Odes, não eram referenciadas a um autor específico. E, de facto, os seus Enigmas, uma longa série de perguntas em forma de verso sobre os mistérios do universo, mostram com ácida limpidez a chama impiedosa e lúcida que na sua mente ardia e lhe proporcionava uma visão específica do real.

Também a poetisa Qiu Jin, dois mil e trezentos anos depois, sentiu forte a compulsão fazer a sua existência corresponder à poesia e esta aos ideais que a habitavam. E, nesse sentido, além de ter escrito uma importante e inovadora obra poética, foi pioneira do feminismo na China, lutou pelo povo e pela revolução, acabando por se tornar num dos seus mártires. Qiu Jin foi executada em 1907, pelo exército imperial. Como tantas vezes acontece, a trágica morte resultou num efeito amplificador para as suas palavras.

Frequentar os espaços poéticos, ascender às suas montanhas, contemplar os seus abismos, mergulhar nos mais escuros mares do espírito, subjugados por essa incessante melodia, acarreta um alto preço que os poetas se dispõem a pagar.

É algo herdado dos xamanes, talvez os primeiros poetas, que usavam os seus corpos e os martirizavam (com insónias, jejuns ou alteradores de consciência) para neles acolherem os espíritos e assim traficarem com o invisível. Uma tradição que, ao longo das diversas Histórias, por toda a parte, os poetas têm respeitado e cumprido.

Cumprem-se também, dizem-nos, 500 anos do nascimento de Camões, outro poeta de relações conturbadas com o real, homem de fim glorioso e trágico, temperado pela fama e pela fome. A poesia é a expressão sintética de uma sensibilidade, de uma cultura, de uma época, de um povo. Pois é. Na Europa ou na China – a mesma certeza, a mesma maldição.

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