Efémera eternidade

Carlos Morais José

 

Num recanto de uma praia em Sanya, na ilha de Hainão, percorrendo um caminho por acidente traçado na base da falésia, dei por algumas rochas gigantescas nas quais as ondas cavaram cavernas subtis, por milenarmente esgravatarem na superfície da pedra. E, por baixo dessas rochas, outro minério emergia, destacando-se da cor terrosa predominante. Eram seres vermelhos e negros, pedaços de basalto redondos, como órgãos estranhos ao corpo imóvel da falésia, visíveis pela desagregação das rochas sedimentares.

Do fundo da terra, emergiam belos como símbolos insondáveis na pele acastanhada da rocha, alisados pelas carícias das ondas, mas impossíveis de quebrar. Ali brilhavam como opacos diamantes, ali se imiscuíam, emprestando uma beleza forte e lúcida à paisagem parda. Alguns, certamente devido à presença de material ferroso, exibiam uma estranha cor avermelhada. Não havia muitos. Na verdade, apenas os encontrei numa pequena caverna, local onde se podia sonhar o início pagão de uma crença.

As pessoas que habitam em Sanya e os turistas dão mais valor às conchas de belos formatos e mesmo às pérolas vindas do colo amolecido das ostras. Mas são estas pedras vermelhas e negras, surgindo das grandes rochas das falésias, que guardei na memória e faço questão de relembrar.

Se é a presença inusitada que primeiro cativa o olhar, logo este se demora no contraste, na cor, nas formas escuras que espreitam do interior da terra. Depois vagueia pelo conjunto, aproxima-se e afasta-se, absorve e reconstrói, até os olhos esgotados se cerrarem e ser então a imaginação entronizada como madre daquele estranho espaço.

Quando finalmente se reabrem, de novo o olhar poisa naqueles seres basálticos, de novo experimento a resiliência de quem, por uma eternidade, espera para emergir e, finalmente, sentir o ar salino e o refrigério da chuva.

Já não sei se esta memória perdeu exactidão, se a contagiei com a minha mitologia ou se, pelo contrário, é o que recordo e construo como memória, não o que tive presente quando andei por uma praia de Sanya, que mais abrange o real e os seus imperceptíveis.

Será então quando recordo – e, de algum modo, organizo –, que memórias adormecidas, por assim dizer novas, também emergem, como aquelas pedras, e se incrustam no fluxo comum e o dotam de outros significados?

Dizem alguns sábios chineses que o exercício da memória recria as coisas em nós tal qual elas são e com as mesmas qualidades. Como se de tanto algo nos ser obsessivo, nessa mesma coisa nos transformássemos.

Talvez assim seja, talvez não, mas para quem não possui alma, poucos exercícios servirão para trazer ao palato este leve e efémero sabor de eternidade. 完

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