Os passos sem volta

Carlos Morais José

 

Em cada civilização, sobretudo em certos momentos, exerce-se uma força centrípeta que a faz voltar para si mesma e ignorar o que se passa noutros lugares. Nenhuma é diferente das outras. Existe um eurocentrismo, como existe um sinocentrismo. Tal facto surge quase como “natural”, na medida em que cada civilização desenvolve os seus próprios modelos de construção e leitura do mundo. Logo, quando se pretende estudar e entender o Outro, é geralmente através desses modelos (e de que outro modo se poderia produzir matéria inteligível?) que esse estudo e entendimento são exercidos. A própria linguagem se revela um obstáculo porque a exportação de ideias e conceitos raramente dá conta de realidades para os quais essas ideias e esses conceitos não foram elaborados. O resultado é a criação de uma imagem inevitavelmente distorcida que, na maior parte dos casos, revela mais dos desejos e angústias do observador do que da realidade do observado.

Há quem tenha optado por pensar a sua própria civilização através de conceitos importados de uma outra, mas tal démarche espalda-se no facto de possuir um conhecimento profundo da sua própria cultura o que permite através dela deslizar com elegância, velejando em ideias e conceitos alienígenos, encontrando portos inesperados e ilhas férteis, mas também tempestades difíceis de contornar.

Num momento em que a multipolaridade do futuro surpreende quem apostava num mundo igual e em que assistimos à ressurgência de grandes civilizações, parece-nos importante investir no conhecimento mútuo, mas não de modo superficial como é apanágio do mundo digital que hoje nos rodeia. Para conhecer uma cultura com a vastidão e profundidade da chinesa ou da indiana, por exemplo, tal implica logo à partida varrer os preconceitos com que muitas vezes simplificamos o Outro no afã de o conhecer e, sobretudo, de o controlar.

Em relação à cultura chinesa, que aqui nos ocupa, é comum no Ocidente julgá-la dividida entre confucionistas e taoistas, como se o pensamento chinês se tivesse limitado, ao longo de três milénios, a percorrer unicamente estas duas vias. Seria como encarar toda a filosofia ocidental como dividida entre discípulos de Parménides e de Heraclito, o que num golpe de rins mental não deixaria de ser possível. Mas que riqueza extrairíamos dessa pretensa oposição? Unicamente o conforto de ter arranjado uma explicação, um discurso tão simplista, que mais não faz que roçar uma superfície produzindo efeitos erróneos e sucessivas ondas de mal-entendidos. E este é só um exemplo.

A apreensão de uma outra cultura é um exercício lentamente macerado por vivências e leituras, por experiências longas e paixões súbitas. É, na realidade, um caminho interminável, recheado de euforia e frustração, impotência e beleza, que cada um saberá se tem coragem e gosto em percorrer. Aqui temos o prazer de proporcionar aos nossos leitores alguns caminhos e abrir algumas portas. Tenham, pois, a ousadia de caminhar connosco pela cultura e civilização do País do Meio. Ainda que, como acontece sempre que nos apaixonamos, estes possam muito bem ser passos sem volta.•

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