Uma pequena lição

Carlos Morais José

 

O tempo é de aprender. Nunca na sua História a humanidade teve uma tão grande possibilidade de se conhecer a si mesma em toda a sua dramática diversidade. Hoje, independentemente de onde nos encontrarmos, temos cada vez mais acesso à alteridade, que constitui a maior riqueza desta nossa espécie. Os humanos souberam criar, ao longo da História e da Geografia, civilizações e culturas extremamente diversificadas, cada uma delas capaz de responder às necessidades que, por um lado, o meio lhes exigia para sobreviver; e, por outro, que as condições políticas, económicas e sociais determinavam. A qualidade dessas respostas não se esgota no seu tempo, nem no seu lugar. Muitas delas atravessam as épocas e os mares para ganharem outro corpo, outra eficácia, noutro tempo e noutro lugar.

É por isso que não devemos esquecer, nem devemos deixar de procurar, de conhecer mais e diferente. O novo mundo, que todos os dias vemos emergir, não será uno e monótono, como tanto se chegou a temer. Também não será totalmente dominado por uma única cultura, uma só civilização e seus valores. Pelo contrário, assistimos ao renascimento de civilizações que, no passado, desempenharam papéis fulcrais para o desenvolvimento da humanidade. Agora reocupam o lugar que, por dois séculos, lhes escapou. Será um mundo constituído por pólos diferentes e não unipolar. Falamos da Índia e da Pérsia, por exemplo. Falamos de África. Falamos da China. São civilizações que muito têm para nos ensinar, para nos explicar, para nos confundir e encantar.

Na China, por exemplo, civilização sobre a qual a Via do Meio exclusivamente se debruça, além de terem ocorrido de forma pioneira espantosos avanços tecnológico-científicos, como vimos no artigo de Cláudia Ribeiro na Via do Meio #2, elaborou mitologias cuja vivência atravessa os tempos e desempenham um papel concreto nos quotidianos do povo chinês. Por outro lado, podemos apreciar as minudências da vida dos pintores chineses e a sua proximidade a esse Dao, que cada um define de acordo com a sua era e a sua demanda, nas “Inquirições Sínicas”, de Paulo Maia e Carmo.

Um dos aspectos da pintura dos letrados chineses vale a pena ser sublinhado, talvez sublimado e interiorizado. Trata-se de algo permanente ao longo das eras, apesar de muito terem mudado os materiais e modo de usar o pincel. Refiro-me ao lugar e valor das figuras humanas nas pinturas. Num primeiro olhar, logo verificamos que os seres humanos raramente ocupam um lugar de destaque na composição. Pelo contrário, é até por vezes difícil distingui-los na Natureza que povoa a obra. Surgem quase indistintos, entre árvores, em pequenos pavilhões, no topo de uma montanha, mas sempre a sua dimensão é diminuta em relação ao meio circundante. Parece que os pintores pretendem, quase sempre, não apenas retratar o humano inserido na Natureza, como parte dela e não como algo anómalo em posição diferenciada e central, mas também retratar a sua verdadeira dimensão, quando comparado ao mundo.

Não se trata, como poderia surgir em mente apressada, de uma desvalorização do humano mas, pelo contrário, do seu entendimento como inserido no grande devir universal a que os chineses chamam Dao e cuja manifestação visível é a Natureza, incluindo os seres humanos, sendo que estes não não concebidos com exterioridade e é mesmo pela sua inserção ou até talvez, nalguns casos mais extremos, pela dissolução nas coisas, que se encontra o caminho pretendido.

É uma pequena lição da qual cada um extrairá o ensinamento que mais lhe convém. •

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