A Vida e a Morte no Taoismo  e no Budismo Tibetano

  1. A vida e morte no Taoísmo

 

O que nos dizem os Clássicos do Taoismo sobre a vida? Nos fundadores do Taoismo – Laozi (老子) e Zhuangzi庄子 -, a vida é sempre pensada em relação à morte. Este quadro conceptual mantém-se nos taoistas posteriores, ligados à Alquimia, por exemplo em Zhang Boduan [张伯端 (983-1082)], que pertence à escola da Completa Realidade do Sul (南全真). Ele, segundo nos explica o sinólogo Thomas Cleary, aprendeu a alquimia taoista com Liu Cao, discípulo do ancestral Lü, fundador desta escola.

A escola da Completa Realidade do Sul pôde desenvolver as suas práticas de cultivo da vitalidade por recurso ao apoio do yoga sexual e, por isso, também se chama a escola da Cultivação Dual. Já a escola da Completa Realidade do Norte (北全真Běiquánzhēn), fundada por Wang Zhongyang [ 王重阳 (1112-1170)], que diz ter aprendido as verdades essenciais directamente do ancestral Lü e de Zhong Liquan (钟离權), recorre à transmissão de ensinamentos, baseada numa filosofia contemplativa tradicional. Diz-se que Wang Zhongyang teve entre os seus sete discípulos, a taoista Sun Bu´er [孙不二 (1119-1182)].

Também Zhang Sanfeng [张三丰(c. 1391-1459)], o organizador do Taijiquan (太极拳Tàijíquán), cuja data de nascimento é incerta, havendo quem o situe na dinastia Song ou Yuan, baseia a sua filosofia numa amálgama das escolas do Norte e do Sul da Completa Realidade, como se poderá verificar pelo comentário ao yoga psicológico da «Tabuleta dos Cem Caracteres do Ancestral Lü». Essa Tabuleta será, ainda, comentada por Liu Yiming (1737-1826) vários séculos mais tarde, mas mantendo a mesma linha de pensamento em relação aos três tesouros, que constituem a vida para os taoistas: a Vitalidade (精Jīng), o Sopro vital/Energia (气Qì) e o Espírito ou essência (神Shén).

Começa-se então por apresentar o pensamento do fundador do Taoismo no Clássico do Caminho e da Virtude (《道德经》), cujo título seria traduzido por Cláudia Ribeiro em 2004 por Clássico da Via e do Poder, nomeadamente sobre a vida, no capítulo X (Ribeiro, 2004,X):

 

Quando a tua alma celeste (ying营)

e a tua alma terrestre (po魄)

abraçam o Um,

consegues não as apartar?

 

Ao concentrar o Sopro (qi气)

e atingir a maleabilidade,

consegues ser Recém-nascido?

(…)

No abrir e fechar das portas celestes

consegues ter sempre o papel feminino?

 

A tua mente pode penetrar todos os cantos da terra

sem os conhecer?

 

A gerar e a nutrir,

a gerar sem possuir,

a efectuar sem reter,

a chefiar sem oprimir,

chama-se o poder do mistério.

 

(載營魄抱一,能無離乎?/專氣致柔,能嬰兒乎/滌除玄覽,能無疵? (… …)天門開闔,能為雌乎?明白四達,能無知乎? /生之畜之。生而不有,為而不恃,/長而不宰,是為 “玄德”。)1

O essencial para Laozi, e para a filosofia taoista de todos os tempos, é a conjugação e a harmonização das essências e das energias, por meio do sopro vital. As almas celeste Ying ( 营 Yíng) e terrestre Po (魄 Pò) devem manter-se em estreita ligação com a raiz, o Uno primordial. As energias masculina e feminina não estão separadas no Uno, nem tão-pouco são distintas da essência ou do espírito. A grande separação entre potência física (vitalidade), energias (masculina e feminina) e essências espirituais dá-se ao nível fenomenal. Por isso há que regressar ao Uno primordial onde espírito e energia estão interligados, ou seja, no qual a esfera celestial e a quadrada terra estão unidas. Aqui não há distinção entre alma celestial e telúrica. Para tal, deve-se seguir o caminho do qi (气 Qì), do sopro vital, refinando-o de maneira a que ele regrida ao ponto de se tornar equivalente ao de um bebé recém-nascido (婴儿Yīng’ér). Toda a actividade física e trabalho sobre o sopro vital são acompanhados por uma determinada postura mental. Esta define-se pelo esvaziamento dos conteúdos intelectuais para que ressalte a límpida «visão do Mistério», que nada tem a ver com o conhecimento mundano; e, ainda, pelo cultivar de uma ética própria, baseada na Não-ação (无为Wúwéi) e numa atitude tranquila, pacífica e apagada, como a de uma fêmea (雌), no que respeita à sociedade, mas extremamente activa e nutritiva em termos da pessoa e do seu interior (生之畜shēng zhī chù). Aquele que se cultiva pode, com o seu exemplo e Não-ação, chegar a ser politicamente modelar, pois chefia sem oprimir.

Cultiva-se a vida pelo equilíbrio das energias, possibilitado pela ação do qi, bem como pelo desenvolvimento de uma postura tranquila e flexível, e chama-se a morte por uma atitude dura e inflexível: Atente-se no que nos diz o Capítulo 76 (Ribeiro, 2004, 76):

 

Em vida, os homens são maleáveis e flexíveis.

Na morte, duros e rijos (qiang 强).

Em vida as plantas são maleáveis e macias.

Na morte, encarquilhadas e ressequidas.

 

Assim, a dureza e a rijeza (qiang强)

são companheiras da morte;

a maleabilidade e a flexibilidade

são companheiras da vida.

(…)

(人之生也柔弱,其死也堅強。/草木之生也柔脆,其死也枯槁。/故堅強之死之徒,柔弱者生之徒。)

 

Em Zhuangzi (《庄子》), dos sete capítulos que se acredita terem sido escritos pelo filósofo encontramos no capítulo 2, a defesa da intercomunicabilidade e uniformidade de todas as coisas, ou seja, o facto de os seres poderem comunicar aos mais variados níveis, prova que na vida há uma uniformidade de base, viabilizadora de todas as transformações a partir de uma raiz comum. O famoso sonho de Zhuang Zhou como descrito nesse capítulo é prova disso:

 

“Eu de nome Zhuang Zhou uma vez sonhei que era uma borboleta, esvoaçando alegremente aqui e ali. Fiquei tão contente que me esqueci ser Zhuang Zhou. Quando, de repente, acordei, fiquei espantadíssimo por ser, de facto, Zhuang Zhou. Será que Zhuang Zhou sonhou com a borboleta ou a borboleta sonhou ser Zhuang Zhou? Entre Zhuang Zhou e a borboleta devem existir algumas distinções, ao que se chama a «transformação das coisas”.

 

(昔者庄周梦为蝴蝶,栩栩然蝴蝶也,自喻适志与!不知周也。俄然觉,则)

蘧蘧然周也。不知周之梦为蝴蝶与,蝴蝶之梦为周与?周与蝴蝶,则必有分矣, 此之谓物化 1999,38)

 

A vida é transformação e a morte também. Não há motivo para tristezas, nada há recear. A morte faz parte da vida, como se pode ver a propósito de um episódio relatado no Capítulo 6 e passado entre 4 homens, Zisi (子祀) Ziyu (子與), Zili (子梨) e Zilai (子來) sobre as grandes questões da vida e da morte, e pela persistência que um deles, Ziyu, revelou em continuar a louvar a natureza e sua espontaneidade, apesar das deformações sofridas no seu próprio corpo, e pela naturalidade com que os amigos encararam a morte de um outro, Zilai, cantando no seu funeral.

Ainda no mesmo capítulo, três homens tornam-se amigos: Zisang Hu (子喪戶), Meng Zifan (孟子反) e Ziqin Zhang(子琴張), porque todos compreendiam que podiam transcender o mundo e vaguear pelo universo, até que um deles Zisang Hu morre. Confúcio, ao ter conhecimento da morte deste, envia o discípulo Zigong (子贡) para auxiliar nos ritos fúnebres e quando ele lhe relata, em tom de alta reprovação, que o funeral foi muito alegre, tendo sido entoadas canções de louvor à transformação de Zisang Hu, Confúcio responde-lhe:

 

“Eles não estão confinados ao mundo humano, enquanto eu estou. Parece que nós vivemos em dois mundos incompatíveis. Foi pouco sensato da minha parte ter-te enviado ao funeral. Eles estão em conjunto com o criador, vagueiam no sopro vital do céu e da terra. Eles olham a vida como uma excrescência ou tumor e a morte como a erupção de um edema. Como podem estes homens preocupar-se com a distinção entre a vida e a morte? Eles consideram o corpo humano composto de diversos elementos.

Esquecem os fígados e vesículas e negligenciam os ouvidos e os olhos. Consideram a vida e a morte como um ciclo recorrente, sem princípio nem fim. Livres, vagueiam para além da porcaria e poeira do mundo mortal, despreocupados, deambulam no reino da Não-ação. Por que razão eles se hão-de preocupar em seguir os códigos éticos mundanos só para mostrarem que o fazem às pessoas comuns?”

 

(孔子曰: “彼,游方之外者也; 而丘,游方之内者也。外内不相及,而丘使女往吊之,丘则陋矣。彼方且与造物者为人,而游乎天地之一气。彼以生为附赘县疣,以死为决尻溃痈,夫若然者,又恶知死生先后之所在!假于异物,托于同体; 忘其肝胆,遗其耳目; 反复终始,不知端倪,茫然彷徨乎坚垢之外,逍遙乎无为之业。彼又恶能愦愦然为世俗之礼,以观众人之耳目哉!” (Zhuangzi, 1999,104)

 

É na sequência dos ensinamentos dos fundadores do Taoismo sobre a vida e a morte, que se vai desenvolver a filosofia posterior do Taoismo alquímico, com instruções específicas para a obtenção de um estado transcendente. Vamos agora analisar as instruções de Wang Zhongyang (王重阳), o fundador da Escola da Completa Realidade do Norte para parar com as maquinações mentais, entrar em transe, fabricar a pérola mística, projectar o espírito e ascender ao céu em plena luz do dia. (Cleary,1991,121).

São 15 os ensinamentos:

1) Viver numa eremitério, de modo a obter um estado mental equilibrado e pacífico;

2) Viajar não como turista, mas interiormente, à procura da essência e da vida;

3) Estudar, não extensiva, mas intensivamente, para alcançar o sentido de cada obra;

4) Aprender a composição das ervas medicinais, de maneira a desenvolver a energia física; 5) Atender à construção, viver não em palácios altos e luxuosos, antes em casas simples e frugais, que auxiliam a encontrar o Caminho, pois o verdadeiro palácio é o corpo de cada um;

6) Encontrar companheiros do mesmo Caminho, para cultivar a harmonia em comunidade;

7) Sentar-se, mais do que física, mentalmente, transformando a mente numa montanha pacífica e silenciosa, a fim de poder produzir o elixir, que permite ao espírito vaguear por todo o universo;

8) Ultrapassar a mente, quer dizer, as suas percepções, cognições e sentimentos, mantendo-a pacífica, escura e silenciosa;

9) Refinar a natureza, de modo a obter o equilíbrio entre as energias, a flexibilidade e a rigidez;

10) Combinar as cinco energias, que se desenvolvem a partir das duas energias básicas, a masculina e a feminina, constitutivas dos cinco elementos que compõem toda a natureza, incluindo a humana. Quando as energias estão harmonizadas, o corpo mantém-se no mundo humano, mas o espírito já vagueia livremente nos céus;

11) Misturar a essência e a vida, porque a essência é o espírito e a vida a energia, elas devem ser bem trabalhadas e refinadas, a fim de alcançar o estado de unificação primordial, onde surgem indissociáveis;

12) Seguir o caminho dos sábios com determinação anos a fio, o tempo necessário para que o espírito se eleve à esfera transcendente;

13) Transcender os três reinos: o do desejo, o da forma e o sem forma: transcende-se o reino do desejo pelo esvaziamento dos pensamentos, o da forma pelo esquecimento dos objectos e o sem forma pela libertação da visão do vazio. A recompensa da transcendência dos três reinos é a companhia espiritual dos sábios imortais.

14) Atender ao método do desenvolvimento do corpo mental, sem qualquer forma, que garante grandiosos resultados espirituais.

15) Abandonar o mundo comum, o que não deve ser levado à letra, pois o corpo permanece, embora se consiga alcançar um estado de espírito unificado com o Tao (Cleary, 1991, 130-135), verdadeiramente preparador da imortalidade individual, terrena, espiritual e até celestial. Recorde-se que há vários níveis de imortalidade no Taoismo: pela meditação pode ser alcançada um imortalidade individual, quando o  espírito se liberta do corpo, vagueando e viajando para além dele. Segue-se uma imortalidade terrena na qual os imortais permanecem sem conseguirem alcançar as dimensões espiritual e celestial, para as quais podem evoluir quando os seus espíritos atingem um grau de perfeição maior.

 

Quando se passa da temática da imortalidade para a da reencarnação entra-se no domínio da filosofia religiosa budista, que se passa a apresentar.

 

  1. O Bardo tibetano do devir

 

Paulo Borges em Descobrir Buda define do seguinte modo o bardo tibetano: «bar-do [é] literalmente um estar «entre», um «intervalo», um espaço de indeterminação ou «no man´s land», cuja abertura sem referências não se converte em despertar por se continuar movido pela ignorância dualista, apego e aversão.» (Borges, 2010: 214/215). Em termos da filosofia tibetana, a vida e a morte não passam de intervalos. Existem, ainda, mais dois bardos, o bardo luminoso do dharmata e o bardo kármico do devir. O Livro Tibetano da Vida e da Morte de Sogyal Rinpoche é muito inspirado no Livro Tibetano dos Mortos2, composto por Padmsambhava, que, vindo do Norte da Índia, introduziu definitivamente o Budismo no Tibete no século VIII, sendo considerado o «Guru Rinpoche» ou o «Precioso Guru».

Recorde-se então como Sogyal Rinpoche caracteriza os quatro bardos. O primeiro é o bardo natural da vida que medeia o período entre o nascimento e a morte. O segundo é o bardo doloroso do passamento, que inclui o processo de morte até ao termo da respiração interna e ao despertar da natureza da mente na «luminosidade-base» ao tempo da morte. O terceiro é o bardo luminoso do dharmata, que abrange a experiência pós-morte da radiância da natureza da mente, que se revela em «luz clara», som e cor. (1992:134). Por fim, há o bardo ao qual se dedicará maior atenção, que é o bardo kármico do devir.

Nesta conceção budista tibetana o que se nota, antes de mais, é uma relação muito especial com a morte, sendo esta sucedida por um intervalo que dura 49 dias tal como sucede nas restantes tradições budistas.

A morte é um processo natural, devendo por isso ser partilhada com amigos, familiares e mestres espirituais. A morte não é mais do que o intervalo para se iniciar uma nova vida, seja num dos paraísos de Budas, seja ao nível de seis reinos samsáricos, seja enfim pela libertação total da mente e sua fusão com a energia primordial. Diz-nos Paulo Borges. (2010: 220/221):

 

“No momento de morrer pode ver-se assim que não há morte ou, noutra perspectiva, que a chamada «morte» não é senão o fim da ilusão de uma «vida», condicionada por se viver como real a ficção egológica e a consequente experiência de se nascer e morrer.”

 

Os seres vivem enquanto estiverem apegados à existência, passando de bardo em bardo, acumulando méritos e deméritos com as suas ações e postura existencial. Quem se preparou, morre bem, com visões tranquilas e paradisíacas, quem não se preparou falece em grande agitação e com alucinações demoníacas. O que somos e fazemos de nós depende das ações praticadas connosco próprios e com os outros, sendo a ideia guia fundamental para qualquer tibetano das vias budistas Mahayana e Vajrayana seguir o exemplo prático do Bodhisattva Avalokitesvara, o guardião do Tibete, de que todos os Dalai Lamas são encarnações. A compaixão é, na feliz expressão de Sogyal Rinpoche, a jóia que satisfaz os desejos (1992: 227), os nossos e os dos outros. A compaixão é definida na sua dupla vertente: passiva, enquanto expressão de simpatia e cuidado, e ativa como «determinação prática e sustida de fazer tudo o que for possível e necessário para aliviar o sofrimento dos outros.» (Ibidem) E, por isso, acrescenta Sogyal, o Buda da Compaixão3 é representado com mil olhos e braços, tal como na tradição chinesa, porque os olhos veem o sofrimento e os braços fazem tudo para auxiliar aqueles que realmente precisam.

Ora se o bardo do passamento é definido como um estado doloroso, porque aquém e além de todas as preparações físicas e espirituais, permanecendo um sentimento de tristeza e angústia difíceis de ultrapassar, há então que colocar em jogo a prática que melhor define a compaixão, denominada em tibetano tonglen. Diz-nos Sogyal: «De todas as práticas que conheço, a do tonglen, que em tibetano quer dizer «dar e receber» é uma das mais úteis e poderosas. A esta prática do «dar e receber» se vêm aliar exercícios respiratórios muito interessantes, que permitem executá-la não apenas através das ações meritosas praticadas em relação a terceiros, mas dentro de nós próprios, por meio da inspiração concentrada no sofrimento, pessoal ou alheio, e na expiração igualmente focalizada de votos de cura e de libertação do sofrimento. Para tal é necessário reconhecer que a compaixão implica um deslocamento de perspectivas: 1) apagamo-nos face aos outros, porque afinal somos todos iguais; 2) projetamo-nos para o lugar dos outros, de modo a experienciar o sofrimento alheio.

Há vários tipos de tonglen, todos eles baseados em exercícios respiratórios.

1) O tonglen ambiental, é aquele que purifica a mente e a «traz para casa». Quando se inspira, absorve-se toda a poluição que carregamos, quando se expira cria-se uma atmosfera mental calma, clara e alegre;

2) o autotonglen é igualmente produtivo e implica a divisão do eu num B negativo, frustrado ou magoado, e num A compassivo e caloroso. Na inspiração A abre o coração ao B negativo e na expiração A envia a B o conforto, a felicidade e a alegria de que necessita;

3) o tonglen numa situação de vida. Na inspiração aceita-se a responsabilidade pelos actos praticados, por piores que sejam, e na expiração emitem-se sentimentos de reconciliação, perdão e cura;

4) no que respeita aos bardos do passamento e do devir é de grande utilidade a prática do Tongen para os outros, quando estes estão imersos em sofrimento e dor. Na inspiração o praticante assume com compaixão a dor alheia e na expiração envia amor, cura e alegria para os que padecem.

A prática do tonglen, por via da respiração, é uma maneira psicofísica de auxiliar tanto os que estão perto como os que estão longe, apenas por um trabalho realizado sobre o corpo e a mente do praticante.

Há, ainda, outra prática mental muito importante para os bardos da morte e do devir, que se chama a transferência da consciência (phowa), essencial para a identificação da mente pessoal com a divina. As práticas tibetanas correntes no processo de transferência de consciência baseiam-se na invocação do sagrado, que pode ser um buda, Deus ou a Virgem Maria; depois na focalização na mente desta presença sagrada e na reza. Se a presença sagrada se sentir tocada, enviará uma resposta luminosa, que tem a possibilidade de purificar e curar aquele que a recebe. Em seguida o meditador suporá possuir um corpo de luz, que foi criado a partir da radiância recebida. Este corpo luminoso ergue-se depois aos céus, fundindo-se com a luz da presença sagrada.

Acresce, no entanto, que a prática de transferência de consciência, se fundamenta num tonglen mais radical entre a energia luminosa sagrada e a energia da mente humana. Esta é capaz de chegar por concentração a um espaço de energia verdadeira e primordial, que se caracteriza em termos luminosos.

E porque todos os seres são compostos de energia, que purificada se transforma em luz, podemos influenciar muito negativamente aqueles que se preparam para atravessar bardos dolorosos, como o do passamento, ou perigosos, como o do devir.

Segundo Sogyal Rinpoche há três práticas essenciais para o momento da morte:

1) Repousar na natureza da mente;

2) Transferir a consciência (phowa);

3) Orar e aspirar a bênçãos de seres iluminados. Quem realize estas práticas da Escola da Grande Perfeição (dzogchen), morre como um recém-nascido (Sogyal,1992, 273), porque pôde praticar o yoga, que lhe permitiu ejetar a consciência e fundi-la com a mente da sabedoria de Buda (Sogyal,1992, 275). Pela altura da morte, o buda mais invocado costuma ser Amithaba/Amitaba, o Buda da Luz ilimitada, que preside ao Paraíso do Oeste.

Há um aspecto interessante a reter. Quando este yoga espiritual da transferência da consciência é realizado com sucesso, deixa marcas físicas, pois a fontanela volta a abrir para que a consciência se projete: «Quando a consciência parte através da fontanela, no alto da cabeça, diz-se que renascemos numa terra pura, onde poderemos avançar gradualmente para a iluminação» (Sogyal, 1992, 276).

Os tibetanos consideram também que os últimos pensamentos daquele que está prestes a falecer vão condicionar o seu despertar no bardo do devir ou pós-morte. Por isso se pode dizer que a morte mais não é do que a continuação da vida, «da abertura de uma “fenda” ou “espaço” repleto de vastas possibilidades.» (Sogyal,1992, 286). A morte é o momento em que, segundo Padmasambhava em o Livro Tibetano dos Mortos: «o nosso corpo se separa e divide em matéria e mente» (Sogyal, 1992,287), importando, afinal, para o bardo que se segue àquilo que a mente é, ou a realidade em que nós fomos capazes de transformar o nosso poder mental.

O processo de morte consiste em duas fases de dissolução, uma relativa ao exterior, ao corpo e aos sentidos; e outra interna, implicando os estados de pensamento, até ao estado de rigpa, ou seja, da consciência desperta, traduzida em luminosidade-base ou luz-clara, que é «o grande ensejo para a libertação» (Sogyal,1992,306). Esta luz é, ainda, descrita como uma luminosidade-mãe, a verdadeira mente, que estabelece contacto com a luminosidade-filha, a nossa mente, a luminosidade em que fomos transformando o nosso caminho (Sogyal,1992,309). Quem seja capaz de fundir completamente a luminosidade-mãe com a luminosidade-filha, repousa no estado da natureza mente e atinge a iluminação, libertando-se da roda da existência ou, consoante o seu nível de desenvolvimento, renascendo num paraíso buda, e assim por diante, porque há quem não consiga fundir-se com a luminosidade-base. A estes, aguarda-os o bardo seguinte, o bardo luminoso do dharmata (Sogyal,1992,321). Este bardo é caracterizado em termos de luz e de energia, sendo «por intermédio desta dimensão de luz e de energia que a mente se abre a partir do seu estado mais puro, a luminosidade-base, em direção à sua manifestação – como forma – no bardo seguinte, o do devir.» ( Sogyal, 1992,322).

Este bardo tem 4 fases, que aqui apenas serão enumeradas: a da paisagem de luz (prática do togal); 2) a união com as divindades, em que surgem bolas ou feixes de luz (ticklé), onde se formam mandalas com divindades pacíficas e furiosas; 3) a sabedoria, também descrita em termos luminosos; 4) a fase final, a da presença espontânea, na qual a realidade cosmológica tibetana se apresenta da seguinte forma:

 

Em primeiro lugar, o estado de pureza primordial surge como um céu aberto e sem nuvens, depois aparecem as divindades pacíficas e furiosas, seguidas pelos puros reinos dos budas e, abaixo destes, pelos seis reinos da existência samsárica. (Sogyal,1992,325)

Quem reconhece que a luz, os brilhos e as cores experienciadas não passam de auto-radiância da mente desperta (rigpa) consegue a libertação; a falta deste reconhecimento leva à «continuação num incontrolável ciclo de renascimentos». (Sogyal,1992,327), porque no passamento, não se foi capaz de identificar nem a luminosidade-base, nem o bardo do dharmata «que passa por nós num relâmpago» (Sogyal,1992,335).

O bardo do devir é o tempo que medeia entre o despertar das nossas tendências habituais de apego às formas mentais e físicas e a entrada no útero da próxima vida. As possibilidades para o renascimento numa série de mundos são infinitas. Neste estado apenas temos corpo mental, definido em termos de corpo de luz.

 

No bardo do devir, o nosso corpo mental tem um certo número de características especiais. Possui todos os sentidos. É extremamente leve, lúcido e móvel, e diz-se que a sua consciência é sete vezes mais clara do que em vida.» (Sogyal, 1992,336).

 

Nos ensinamentos antigos Dzogchen, dizia-se que tinha as dimensões de uma criança de 8 a 10 anos (Sogyal,1992,337). Para o corpo mental não há barreiras físicas: pode ver sem ser visto e alimenta-se de odores e oferendas queimadas (Ibidem). O tempo do bardo do devir corresponde normalmente a 49 dias, com uma duração mínima de uma semana, sendo, de sete em sete dias, o corpo mental compelido a passar de novo pela experiência da morte (Sogyal,1992,338). Há, ainda, quem fique preso no bardo como espírito ou fantasma.

Dudjom Rinpoche afirma que nos 21 primeiros dias depois da morte se mantêm impressões muito fortes das existências prévias, de maneira que é a altura ideal para os vivos auxiliarem os mortos (Sogyal,1992,340). Fala-se também para este bardo numa «revisão de vida», semelhante ao julgamento post-mortem, onde a nossa boa consciência é um anjo branco, que nos defende, e a nossa má consciência um demónio sombrio, que nos ataca. Tudo se passa na nossa mente. As coisas boas transformam-se em seixos brancos e as más em escuros, para que depois o Senhor da Morte, Yama, as some, consulte o espelho do karma e profira a sentença que conduzirá ao renascimento.

 

No bardo do devir os reinos dos Budas não aparecem espontaneamente, tal como no do dharmata, mas, se nos recordamos deles, podemos transferir-nos directamente para lá, graças ao poder da mente, e avançar para a iluminação. (Sogyal,1992,342/3)

 

O que somos no bardo do devir vai depender do modo como vivemos, por isso quem desenvolveu a capacidade de rezar no bardo natural, vai usufruir do seu efeito no bardo do devir, porque segundo afirma Sogyal Rinpoche: «Nesta vida, a oração parece muitas vezes dar poucos resultados, mas os seus efeitos no bardo são extremamente poderosos.» (Sogyal,1992,343). As orações podem-nos conduzir a um reino de Buda, ou a uma família humana, que permita ao renascido continuar no bom caminho da transformação espiritual

Frequentemente surgem imagens associadas ao tipo de renascimento. Diz-se que quem vai renascer como deus, se vê num palácio; como semideus, no meio de armas circulares de fogo rodopiantes; se for um animal, numa das casas destes; já um tronco de árvore, uma floresta ou um pano tecido apontam para o renascimento como fantasma esfomeado; quem renasce no inferno parece estar a ser sugado para um poço, uma estrada ou terra sombria; e no reino humano, dá-se um fenómeno que pode ser descrito como uma espécie de complexo de Édipo pré-natal, onde se decidirá se seremos do sexo feminino ou masculino. Determinará o nosso sexo o tipo de atração sentida por um dos pais no momento em que copulavam.

Por fim, o mais importante na filosofia budista em geral e tibetana em particular, é evitar o renascimento, o que poderá ser conseguido através da recordação dos ensinamentos da natureza vazia da nossa mente, com a leitura do Livro Tibetano dos Mortos, por um guia espiritual nos bardos do passamento e do devir. É, também, útil para escapar ao renascimento, o nosso corpo luminoso pensar, através do vento kármico, um outro nome para o sopro vital (气), durante o bardo do devir, nos nossos pais potenciais como Buda, um mestre ou uma divindade yidam, com a qual nos identificámos em vida.

Os vivos podem auxiliar os mortos recorrendo, ainda, recorde-se, ao processo yógico de transferência da consciência (phowa), mas também por meio de orações e da récita de mantras, como o do Buda da Compaixão, Avalokitesvara, «Pela Jóia do Lótus» (om mani padme hum), e a o do Buda Amitaba, da Luz Ilimitada, «Por Amitaba Vermelho (om ami dewa hrih), ou seja, pelo Buda da Terra Pura do Oeste. Primeiro realizam-se as orações, depois procede-se à prática da transferência da consciência, aos vários tipos de tonglen e aos actos de caridade em nome do morto, do apoio a instituições humanitárias e espirituais, bem como à salvação da vida de animais prestes a serem abatidos, prática esta muito utilizada no Tibete e nos Himalaias.

As práticas budistas tibetanas citadas concretamente são: 1) A da leitura do Livro Tibetano dos Mortos nos 49 dias após o seu falecimento para inspiração e orientação do falecido; 2) a condução dos mortos (Né dren), 3) o ritual de purificação (chang chok), onde a consciência do morto é conduzida até um melhor nascimento. Quando o corpo não está presente, a consciência do falecido é convocada por uma imagem, que pode ser uma fotografia, denominada tsenjang. Esta fica a representar a identidade do morto. Pelo poder da meditação do guru ou do lama:

 

A consciência do morto, que vagueia errante no bardo, é chamada para o tsenjang, que representa a identidade do morto. A consciência é então purificada; as sementes kármicas dos seis reinos são purificadas; é dado um ensinamento como durante a vida; e o morto é apresentado à natureza da mente. Finalmente, efectua-se o phowa, e a consciência do morto é dirigida para um dos reinos de Buda. Depois, o tsenjang, que representa a identidade antiga do morto – agora posta de lado – é queimado e o seu karma purificado. (Sogyal, 1992, 355/356)

 

Vemos então como o auxílio dos vivos pode ser benéfico para os que se encontram no bardo do devir. Eles purificam os mortos, purgando-os das seis emoções negativas e dos reinos de existência que elas criam, cumprindo actos rituais que tiveram o seu início no processo de cremação do corpo do morto. Este é considerado o receptáculo de todo o karma negativo. E as práticas de auxílio dos vivos aos mortos continuam a suceder-se semanalmente, «se a família puder pagar em cada um dos 49 dias.» (Sogyal, 1992,358); quem as executa são monges ou lamas, estes últimos, se possível, ainda aparentados ao falecido.

Ao morto oferecem-se luzes e orações. Em cerimónias que se repetem periodicamente. Após um ano da morte do falecido, celebra-se o seu renascimento, ao que se seguem celebrações anuais nos aniversários, realizando igualmente nestas ocasiões donativos aos pobres. Não se esquecem os mortos, mesmo no interior de uma filosofia que em última análise integra a morte num longo processo natural de vida, constituído por vida-morte-devir.

Como explicar o facto de os tibetanos nunca esquecerem os seus mortos (Sogyal,1992,359), quando também acreditam que renasceram aqui e ali? Tal perspectiva só é compatível com a filosofia dos cinco agregados. Eles não renascem com as mesmas formas física e psíquica e, por isso, nascem outros, garantindo a continuidade kármica pelo elemento mais permanente, o sopro vital ou vento kármico, que constitui o corpo luminoso pós-morte, no qual energia e luz são um mesmo todo, cheio de possibilidades, porque deixou para trás a impura forma física.

Parece então funcionar  no mundo espiritual, que conduz a nossa vida e morte, a mesma lei natural  há muito descoberta por Lavoisier (1743-1794): Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.

 

Notas

 

1 Texto apresentado em Chinês Clássico.

2 Há duas traduções importantes do Livro Tibetano dos Mortos. A primeira realizada por Gyurme Dorje em 2006 em Nova Iorque na Penguin. A segunda realizada por Paulo Borges e Rui Lopo ainda em 2006 em Lisboa na Esquilo.

3 No Tibete, o Bodhisattava indiano da Compaixão Avalokitesvara transforma-se em Buda da Compaixão, ainda que mantendo a figuração de mil olhos e braços, tal como na tradição chinesa da representação da Bodhisattva Guanyin.

 

Bibliografia

 

Abreu, António Graça de. (Org. e Trad.) (2013). 《道德经》Tao Te Ching. Livro da Via e da Virtude. Ed. Bilingue. Lisboa: Vega.

Borges, Paulo. (2010). Descobrir Buda. Lisboa: Âncora.

Cleary, Thomas. (1991). Vitality Energy Spirit. A Taoist Sourcebook. Boston and London: Shambhala.

Laozi. (2004). 《道德经》 Dao De Jing. O Livro da Via e do Poder. Trad. de Cláudia Ribeiro. Mem Martins: Publicações Europa-América.

Laozi.《老子》.(1999). Trad para Inglês de Arthur Waley e para chinês moderno de Chen Guying. Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press.

Sogyal Rinpoche. (1992). O Livro Tibetano da Vida e da Morte. Trad. de Manuel Cordeiro. Lisboa: Difusão Cultural.

Zhuangzi 《庄子》. (1999). Trad para Inglês de Wang Rongpei e para chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press.