杜甫

Natural de província de Henan, Du Fu (712-770) é com Li Bai, de quem foi amigo, o representante da mais depurada e genial poesia chinesa de sempre. Teve uma passagem célere pela corte mas, nos últimos trinta anos da sua vida, viveu quase na miséria, pobre e doente. De tudo isso e das guerras cruéis que na época assolaram o Império, deu testemunho na sua poesia. Du Fu trabalhava incessantemente os seus poemas, procurando rebuscadas e complicadíssimas rimas tonais e internas, à mistura com a utilização de um vocabulário soberbo e original. Deixou-nos 1.400 poemas. Morreu aos 58 anos, na mais absoluta pobreza, na companhia da mulher e dos filhos na barca onde descia o rio Xiang, na província de Hunan. Aqui apresentamos vários poemas traduzidos para língua portuguesa, por ilustres poetas e tradutores.

 

Para Li Bai

 

Tu escreves como o pássaro canta.

Teu gorjeio? Versos.

Se não cantasses, as madrugadas seriam menos rubras

E os crepúsculos menos azuis.

Quando a embriaguês te inspira

Os Imortais inclinam-se das nuvens para te escutar,

O tempo suspende seu voo,

O amante esquece a sua amada

Tu és o sol e nós, os outros poetas,

Somos apenas estrelas.

Acolhe, ó meu amigo,

O balbucio do meu respeito.

 

tradução Cecília Meireles

 

O imperador

 

Olha. O Filho do Céu, em trono de ouro,

E adornado com ricas pedrarias,

Os mandarins escuta: – um sol parece

De estrelas rodeado.

Os mandarins discutem gravemente

Coisas muito mais graves. E ele? Foge-lhe

O pensamento inquieto e distraído

Pela janela aberta.

Além, no pavilhão de porcelana,

Entre donas gentis está sentada

A imperatriz, qual flor radiante e pura

Entre viçosas folhas.

Pensa no amado esposo, arde por vê-lo,

Prolonga-se-lhe a ausência, agita o leque…

Do imperador ao rosto um sopro chega

De rescendente brisa.

“Vem dela este perfume”, diz, e abrindo

Caminho ao pavilhão da amada esposa,

Deixa na sala olhando-se em silêncio

Os mandarins pasmados.

 

tradução Machado de Assis

 

Reflexos

 

Vou rio abaixo vogando

No meu batel e ao luar;

Nas claras águas fitando,

Fitando o olhar.

Das águas vejo no fundo,

Como por um branco véu,

Intenso, calmo, profundo,

O azul do céu.

Nuvem que no céu flutua,

Flutua n’água também;

Se a lua cobre, à outra lua

Cobri-la vem.

Da amante que me extasia,

Assim, na ardente paixão,

As raras graças copia

Meu coração.

 

tradução Machado de Assis

 

A calma

 

Embala o Nan-Tsin uma lua d’Outono

Que, argêntea, reflecte a cristalina água.

Remo mais devagar: que me toma essa mágoa,

Vou vogando ao luar, em meu triste abandono…

 

tradução António Mattos Sobral Cid

 

Ode aos Oito Imortais do Vinho

 

He Zhizhang, a cavalo, oscila como um barco,

os olhos brilham, se cair num poço continuará

a dormir.

Ru Yang, um nobre a caminho da corte,

após três potes de aguardente, se chocar

com uma carroça de vinho,

a baba vai escorrer-lhe da boca.

Ambiciona ser príncipe nas nascentes do vinho.

Li Shizhi, o antigo primeiro-ministro,

Num só dia esbanja dez mil moedas em vinho,

emborca como uma baleia,

é capaz de beber néctares de cem rios,

taça nos lábios, prefere o vinho claro ao vinho turvo,

transformando-se, diz ele, num homem melhor.

Cui Zhongzhi, despreocupado, tão jovem, tão bonito,

ergue a taça, o branco dos olhos no azul do céu,

puro, iluminado com uma árvore de jade ao vento.

Su Jin jurou sdiante de Buda não mais comer carne, nem peixe.

Mas bêbado como um cacho, esquece todos os princípios.

Li Bai, um jarro de vinho e nascem cem poemas,

Adormece numa taberna da capital,

O imperador manda-o chamar, recusa comparecer

e diz:

“Que sua Majestade saiba,

este seu súbito é o imortal do vinho!”

Zhang Su, depois de três canecos,

tira o chapéu, mostra a careca a príncipes

e condes,

caligrafa caracteres cursivos como um santo,

o pincel corre no papel como fumo nas nuvens.

Jiao Sui, com cinco jarros de vinho,

Liberta o coração, fala como um deus,

A suprema eloquência, o pasmo em todos os

convivas.

 

tradução António Graça de Abreu

 

Lamento pela minha cabana destruída 

pelo vento do Outono

 

No oitavo mês, em pleno Outono, o vento ruge, colérico,

E leva num turbilhão as três camadas de palha da minha cabana.

O colmo voa, atravessa o rio, espalha-se pela ribanceira,

O que voa alto fica suspenso nos ramos da grande floresta,

O que voa baixo vai girando a cair nas ravinas.

As crianças da aldeia do sul riem-se da fraqueza da minha velhice,

Têm a audácia de me roubar às claras,

Abertamente arrancam o colmo e fogem por entre os bambus.

Grito até ficar com a boca seca, não adianta nada,

Volto para casa, suspiro apoiado ao meu bastão.

O vento cessa bruscamente mas as nuvens continuam negras,

O céu de outono é silencioso e escurece com o vir da tarde.

Os lençóis e cobertas são velhos, frios como ferro,

As crianças, sensíveis, rasgaram-nos com pontapés,

todos os leitos do aposento são húmidos, não há um lugar seco.

Sinto cãibras nas pernas, não as posso estender,

Aflijo-me, lamento-me, durmo muito pouco,

A noite é longa e húmida como a poderei passar?

Quem pudesse construir um vasto edifício com milhares de peças,

Imenso, que protegesse todos os que têm frio no mundo,

Deixando-os de rosto feliz!

O vento e a chuva não o poderiam destruir,

seria sólido como uma rocha.

Ai de mim, quando chegará o momento

de ver, de repente, essa casa aparecer diante dos meus olhos?

Minha cabana desmoronou-se.

Aqui vou morrer do frio que entra. E tudo estará bem.

 

tradução Cecília Meireles

 

Música celestial

 

Quando soam as flautas em Chincheng,

É perturbada a luz do dia claro.

Vai com as nuvens, com a brisa suave,

O som que se difunde pelos ares,

Não podem ser ouvidos os seus ecos,

Que ascendem às mansões celestiais.

É música dos Céus, pertence aos deuses

Não pode ser escutada por mortais.

 

tradução Francisco de Carvalho e Rego

 

Uma flauta toca

 

Murmura a brisa Noite como esta

me traz o som as hordas bárbaras

da flauta clara no Norte entraram.

lá na montanha E a melodia

enluarada. me acompanhava

Onde haverá na longa via

flauta tocada em que fugia

no coração até ao Sul.

que me retorne Quando o salgueiro

ao lar? os remos pende

Da brisa o som na noite fria

enche-me as salas nus.

tal como o luar No triste inverno

cobre as montanhas como esperar

e os vales. pelo milagre

de lhe nascerem folhas?

 

tradução Jorge de Sena

 

Da guerra

 

Apeio-me do cavalo num antigo campo de batalha.

Cobrem-no inteiramente as ervas selvagens,

O vento geme, as nuvens deslizam,

em torno de mim tombam as folhas ressequidas.

As formigas correm céleres sobre as ossadas.

As plantas trepadeiras enlaçam os crânios vazios.

Caminho longo tempo e suspiro a cada passo

perante o horizonte desolado.

Que sejam malditas as guerras e os combates,

terror dos jovens e dos velhos.

Aqui jazem no mesmo pó

tanto os generais como os soldados.

Diz-se: tiraremos a desforra

havemos de vencê-los amanã.

Mas nos campos desertos vagueiam, sós,

velhos cobertos de farrapos e a morrer de fome.

 

tradução António Ramos Rosa

 

Lua Cheia

 

Solitária a lua cheia suspensa

sobre uma casa na margem do rio

Debaixo da ponte corre a água nocturna

Está vivo o oiro derramado no rio

O meu cobertor brilha mais que seda preciosa

As montanhas silenciosas sem ninguém

O círculo sem mácula – a lua

gira entre as constelações

Floresce uma árvore

A mesma glória banha dez mil léguas

 

tradução Jorge Sousa Braga

 

Nas margens do rio

 

Todos os dias regresso a bêbado

Mesmo que para isso tenha que empenhar

alguma peça de roupa

ou pedir dinheiro emprestado

Poucos homens lograram atingir a minha idade

Olho as borboletas amarelas

sorvendo o néctar mais íntimo das flores

e as libelinhas a rasarem a superfície das águas

E grito ao vento da primavera à luz

e ao tempo: é tão curta a vida

Para quê desperdiçá-la com querelas fúteis

 

tradução Jorge Sousa Braga

 

Olhando a primavera

 

O país em ruínas

Rios e colinas permanecem

Cidades na Primavera

Árvores e folhas renascem.

 

Tempos assim

Tiram lágrimas das flores.

Separado do seu par

Treme o coração da ave.

Os fogos da guerra

Já juntaram três luas.

As novas da casa

Valem agora uma fortuna.

Uma cabeça grisalha,

A cada infortúnio dilacerada.

E o cabelo que rareia,

Já nem o alfinete o segura.

 

tradução Gil de Carvalho

 

 

 

Pensamentos nocturnos

 

Ervas rasteiras,

Brisa suave

Sozinho na noite

Sob o mastro alto.

 

As estrelas suispensas

Sob a vasta planície

A lua ondula

Corre o grande rio.

Vem das obras, a fama?

O letrado retira-se velho

E doente, sempre errante

Quem sou eu senão uma

Uma gaivota entre céu e terra?

 

tradução Gil de Carvalho

 

A beldade abandonada

 

Filha de família ilustre e poderosa

que o tempo reduziu a erva e pó,

vive hoje esquecida num vale solitário

e não havia mulher mais bonita do que ela!

Mortos os irmãos nas rebeliões do império,

cargos, honrarias não lhes salvaram a vida,

ninguém encontrou os seus corpos.

O mundo não se ocupa de quem passa,

a fortuna é chama de uma vela ao vento.

Seu marido, o coração em viagem,

procurou nova mulher, bela como jade.

As flores sabem quando desce a noite,

quando os patos-mandarins nadam lado a lado.

Ele só vê o sorriso da jovem concubina,

não ouve o pranto da antiga esposa.

Puras as águas dos regatos na montanha,

lamacentas, sujas ao chegar à planície.

Ela mandou a criada vender algumas pérolas,

comprou comida e colmo para cobrir o telhado.

Agora colhe flores, não para enfeitar os cabelos,

nos dedos, já se soltam os anéis.

Esquecendo o ar gélido nas mangas de seda,

encosta-se aos bambus e olha o pôr-do-sol.

 

tradução António Graça de Abreu

 

 

Ébrio, uma canção

 

Muitos ascenderam ao topo da hierarquia,

tu, meu amigo, continuas a padecer ao frio.

Nas grandes mansões, empanturrados com iguarias,

tu, meu amigo, mal consegues uma malga de arroz.

A tua filosofia, um coração cristalino, pouca ambição,

o teu talento, superior ao dos letrados do passado.

Respeitado pela tua virtude, condenado, sem glória,

a deixar o teu nome para além dos séculos.

És um rústico que não é desta terra,

de cabelos finos, motivo de mofa e zombaria.

Queres arroz, vais ao celeiro imperial,

obténs ainda cinco colheres por dia,

mas se queres abrir o coração,

vem ter comigo, meu amigo.

Quando ganho umas tantas moedas,

cuido de ti, vamos gastá-las em vinho.

Que nos interessa a pompa, o luxo, as cortesias,

somos gente simples, descuidada e livre!…

Meu mestre, enchemos, bebemos as taças até ao fim,

em silêncio na noite da Primavera.

Lá fora, a chuva fina como flores

caindo dos telhados, apagando as lanternas.

Entoamos cânticos, animados, iluminados

por espíritos a montante, a jusante do rio.

Para quê pensar tanto no destino?

Sim, a fome, e por túmulo, uma vala qualquer.

Outrora, um grande poeta lavava canecas de vinho,

um ilustre letrado lançou-se de uma torre.

Quem somos nós, no fim de tudo?

Melhor retirarmo-nos cedo, voltar a lavrar a terra,

cuidar dos telhados de colmo, dos caminhos, do musgo.

Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?

Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó.

Para quê tanta tristeza, tanto queixume?

Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho.

 

tradução António Graça de Abreu

 

 

O recrutador de Shihao

 

Cheguei esta noite à aldeia de Shihao,

veio também um oficial para alistar soldados.

Um homem, já idoso, saltou um muro e fugiu

mas a esposa teve de falar com o militar

que gritava, colérico, enquanto a mulher chorava.

“Tenho três filhos soldados na guarnição de Yue,

acabei de receber carta de um deles e a notícia

da morte dos outros dois no campo de batalha.

Os mortos estão para sempre mortos,

sentimos vergonha por continuar vivos.

Agora, resta apenas o meu neto,

um bebé mamando numa pobre mãe coberta de farrapos.

Eu, velha, sem forças, posso partir convosco,

se necessário esta noite mesmo,

poderei servir em Heyang, cozinharei para as tropas.”

Perderam-se as palavras na escuridão da noite,

ouviram-se, de quando em quando, soluços confusos.

Ao amanhecer, ao retomar a jornada,

apenas o velho se despediu de mim.

 

tradução António Graça de Abreu

 

Subindo às alturas

 

O vento cortante, o céu alto,

o triste guinchar dos macacos,

Na pequena ilha límpida de areia branca

Os pássaros voam, voltam em círculos.

O assobio ilimitado das folhas que caem

O Grande Rio infindável

que se aproxima, rolando.

Sou o viajante da distância infinita

do triste Outono.

Cem anos, muito doente, só,

subo ao terraço.

Na adversidade, no ódio amargo,

abundam os cabelos brancos,

Infeliz, no pavilhão novo,

com um copo de vinho turvo.

 

tradução Alexandre Li Ching

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