Sobre a singularidade do cânone budista chinês

Em muitos sentidos, pode-se entender a tradução como o meio pelo qual todas as coisas vêm ao mundo e por ele circulam, se manifestam, transpõem-se desta para aquela realidade, partem de um emissor e chegam ao entendimento de um receptor que, por sua vez, as reformula, recria, transcria e lhes dá seguimento. Tradução, transmissão, elaboração e comunicação, de certo modo, são elementos de um mesmo complexo, de dinâmicas de encontro e partilha, ajustes e informes.

O budismo histórico, antigo, vindo originariamente de territórios identificados hoje como a Índia, pode ser dividido em três grandes períodos, a saber, 1) Buddhadharma (o ensinamento do Buda, 佛教, fojiao); 2) O Buddhadharma Mahayana e; 3) O Buddhadharma Mahayana Esotérico. Todos esses ensinamentos budistas, nascidos na Índia e dispersos pelo mundo, encontram-se em um dos três grupos. O que lhes permite tal dispersão, circulação, alcance, são justamente as línguas que os carregam: inicialmente, pela oralidade, mas logo, pela escrita.

O grande mestre Yinshun (1906-2005), um dos luminares do budismo contemporâneo, assim define os conjuntos de textos que mantêm, há milênios, a palavra do Buda viva:

“A linhagem de língua páli — que denominamos ‘tradição do sul’, atualmente popular no Sri Lanka, na Birmânia e na Tailândia — é um ramo do budismo, o Tamrasatiya, correspondente à era do Buddhadharma. A linhagem de língua tibetana — e que foi transmitida para o Tibet — pertence, grosso modo, ao Buddhadharma Mahayana Esotérico. A linhagem de ensinamentos transmitida e largamente adotada na China pertence, de modo geral, ao Buddhadharma Mahayana.

O cânone budista em língua chinesa, preservado na China, não se compara, claro está, com os textos originais registrados em sânscrito ou páli (sendo, estas, línguas indianas); também não se aproxima tanto dos originais quanto as traduções tibetanas (o alfabeto tibetano se desenvolveu a partir do sânscrito). Entretanto, para o estudo global e histórico do budismo originado na Índia, e para compreender seu desenvolvimento e evolução, as traduções chinesas possuem valor inestimável, que não pode ser ignorado — valor que os textos em páli, tibetano e sânscrito não conseguem igualar!”

(Yinshun, 2009, p. 92, tradução minha).

De acordo com o mestre, embora representativo de um budismo da segunda era — o Mahayana —, o cânone chinês inclui traduções elaboradas durante um longuíssimo período, mais de mil anos, podendo, assim, incluir em si fontes de diversas origens, épocas e tradições. Fazendo-se, desse modo, um cânone representativo de elementos presentes em todas as três eras acima mencionadas. Convém seguir o grande mestre Yinshun e discriminar as fontes originais mais significativas que se encontram englobadas pelo cânone chinês:

1) Do Buddhadharma inicial, da primeira era, o cânone chinês preserva o Tripitaka — composto por três conjuntos fundamentais de textos: os Sutra, o Vinaya e o Abhidharma — e inclui traduções de textos pertencentes a inúmeras escolas do período sectário do budismo clássico. Por incluir essas diferentes versões de um período histórico de dissensões, o cânone chinês oferece pistas do movimento que desaguaria, posteriormente, no surgimento do fenômeno Mahayana, já distanciado das estruturas clássicas do Buddhadharma da primeira era. Quanto a este, Yinshun ressalta que as traduções tibetanas não tendem a englobá-lo; e o cânone páli, por sua vez, embora completo, restringe-se apenas a um conjunto de tradições textuais, sem lançar luz sobre os desdobramentos históricos que se seguiram à era do Buddhadharma inicial;

2) Do Mahayana, os textos chineses dão conta de uma imensidão de influências, referências, fontes e períodos históricos. A bem dizer, o budismo chinês pode ser total ou quase totalmente identificado ao Mahayana, pelo que se compreende tal abrangência textual. Já os outros cânones indicados pelo mestre Yinshun, o páli e o tibetano, o primeiro não apresenta nada de origem Mahayana, e o segundo está repleto de textos dessa tradição, ainda que muitos sejam retraduções a partir do próprio chinês, e não das fontes originais. Não obstante, o cânone tibetano inclui alguns textos de períodos posteriores do Mahayana que o cânone chinês não possui, como O Ornamento da Clara Realização. O cânone chinês, a despeito da variedade Mahayana encontrada no cânone tibetano, possui uma singularidade relevante para os estudos históricos, genéticos e comparativos das tradições budistas: diferentemente de seu vizinho tibetano, que continuamente se revisou a fim de adequar os textos prévios a versões posteriores e vistas como mais adequadas, o cânone chinês manteve as diferentes traduções de todos os textos, facilitando um entendimento do processo histórico e das mudanças sofridas pelos ensinamentos ao longo do tempo. Trata-se de um ferramental inestimável para o estudo do desenvolvimento do pensamento budista, desde suas fontes históricas — na Índia ou na Ásia Central — até o Leste Asiático.

3) Quanto aos textos do Buddhadharma Mahayana Esotérico, fortemente presente no Tibet e em sua área de influência, o cânone chinês possui traduções fundamentais para a mediação com outras localidades de base linguística aproximada, como a Coreia e o Japão. Assim, muitos dos textos budistas esotéricos que chegaram ao Japão o fizeram por intermédio da escrita chinesa, tida por língua franca no leste asiático ao longo do período de expansão do budismo.

Com esse apanhado geral, o venerável mestre Yinshun objetivava, já nos anos 1950, alertar os pesquisadores monásticos e leigos para a riqueza do cânone budista chinês, não apenas em matéria doutrinária, mas também com relação à sua capacidade de dinamizar os estudos mundiais sobre o período mais antigo do budismo, graças à natureza muito singular que as traduções chinesas possuem e que a destacam.

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Bibliografia

Durazzo, L. (2015). Venerável Yinshun e o Budismo para o reino humano: instruções de um mestre chinês do século XX. Cultura Oriental, v. 2, n. 1, p. 39-44. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/co/article/view/25628

Yinshun, Ven. (2009). A Sixty-Year Spiritual Voyage on the Ocean of Dharma. Translated by Yu-Jung L. Avis, Po-Hui Chang, Maxwell E. Siegel. Towaco: Noble Path.

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