Tradução e notas
Rui Cascais
Quando as pupilas se falam
Fang Dong, da capital1, era um letrado de reputado talento mas a sua natureza turbulenta levava-o a negligenciar as conveniências. Qualquer rapariga que descobrisse no seu caminho se tornava vítima da sua atenção impúdica. Um dia – na véspera do festival da Pureza e Claridade – o acaso dos seus passos tinha-o conduzido para lá dos arrabaldes, quando viu passar uma pequena liteira de senhora de cortinas vermelhas e estores bordados e escoltada por fileiras de vário pessoal doméstico . A comitiva ia a passo travado. No grupo havia uma criada montada num cavalinho – a rapariga era de uma beleza soberba.
Ao aproximar-se mais para a lograr melhor, reparou que as cortinas da liteira estavam afastadas. Lá dentro, sentava-se uma jovem donzela de cerca de dezasseis anos, magnificamente vestida e de uma beleza resplandecente. Jamais, em toda a sua vida, vira uma criatura tão encantadora. Deslumbrado, alterado, fascinado e de olhar completamente fixo, seguiu-a durante vários li, tanto galopando à sua frente como trotando na sua peugada.
De súbito, escutou a jovem donzela chamar a criada e dizer-lhe, quando esta se aproximou da liteira : “ Faz-me o favor de baixares o estore! De onde surgiu este louco que não cessa de me espiar?”
A criada assim fez e, voltando-se para o jovem exclamou indignada: “ É a nova esposa do sétimo jovem senhor da Cidade dos Hibiscos2 e não uma qualquer menina que um qualquer bacharel se possa permitir afrontar!”
Dito isto, apanhou um punhado de terra e lançou-o sobre a cabeça do jovem. Cego, este não conseguia já abrir os olhos. Quando se sacudiu e os abriu, tanto a liteira como os cavalos lhe pareceram distantes, quase indistintos. Voltou, assim, para trás alarmado e perplexo.
Como sentia um incómodo persistente nos olhos, fez-se examinar: levantada a pálpebra descobriu-se uma pequena catarata na pupila. Decorrida a noite, o mal tinha piorado de tal forma que as lágrimas lhe caíam sem interrupção. A catarata aumentava. Em poucos dias atingiu a espessura de uma pequena moeda. Sobre a pupila direita, tinha a forma de uma espiral. Nenhum dos mil remédios experimentados produzia efeito. Consumido pelo remorso, quase esgotado, o jovem sonhava apenas com um meio de se arrepender.
Tendo ouvido que o Sutra da Claridade3 o poderia livrar do sofrimento, obteve um rolo e convidou alguém que lhe ensinasse a récita – um trabalho que lhe pareceu fastidioso de início mas que acabou por lhe proporcionar um sentimento de paz. Sem outra ocupação de manhã à noite, apenas recitava, manuseando o rosário, sentado em postura de meditação.
Ao cabo de um ano de prática assídua, e tendo atingido um estado de desapego avançado4, escutou, de repente, uma vozinha fina como a de uma mosca a sair do seu olho esquerdo: “Que escuro aqui dentro, um negro de laca! Morre-se de tédio.”
Do olho direito saiu resposta: “Porque não dás uma volta comigo para arejar as ideias?
Fang sentia, em breve, uma agitação de cada lado da sua passagem nasal, seguida da sensação de que algo o deixava saindo pelas narinas. Ao fim de uma ausência prolongada, as coisas estavam de regresso e subiam de novo do nariz à órbita ocular.
“Já há muito que não explorava o jardim, disse a voz, as orquídeas perladas estão todas secas e murchas…”
O jovem letrado adorava as orquídeas perfumadas e tinha-as plantado em abundância por todo o jardim. Tinha o hábito e as regar ele próprio todos os dias mas, desde que perdera a vista, já não o fazia. Pouco depois de ter surpreendido esta conversa, interrogou a sua esposa: “Porquê deixar estoliar e morrer de sede as orquídeas?”
Como se ela lhe perguntasse onde obtivera a informação, o jovem contou-lhe a razão. A mulher foi de imediato verificar e descobriu que, na verdade, as plantas estavam secas. Intrigada ao máximo, escondeu-se no quarto e viu dois pequenos gnomos, não maiores que uma ervilha, sair do nariz do marido e desaparecer pela porta, fora da sua vista. Um pouco depois regressavam de braço dado e voavam para o rosto do jovem como abelhas ou formigas aladas ganhando o ninho. Isto repetiu-se durante dois ou três dias. Depois, Fang, escutou o homúnculo da esquerda retomar a palavra:
— Este túnel sinuoso é muito incómodo para as nossas idas e vindas! Mais vale abrir uma porta.
— Isso não seria fácil, a minha parede é demasiado espessa, retorquiu o gnomo da direita.
— Vou tentar do meu lado, respondeu o da esquerda, e se conseguir vamos juntos.”
O letrado sentiu uma espécie de arranhar no fundo da órbita esquerda seguido de uma impressão de que algo se rasgava.
Abrindo o olho no instante seguinte, viu distintamente os objectos postos sobre a mesa baixa e deu a alegre notícia à mulher. Esta examinou-o: uma pequena fissura atravessava a membrana opaca através da qual brilhava a pupila como um grão de pólvora fendido.
Na manhã do dia seguinte a opacidade tinha desaparecido por inteiro. Uma observação atenta revelava, na verdade, uma pupila dupla, enquanto que a espiral opaca do olho direito permanecia na mesma. Fang compreendeu que os dois homúnculos habitavam a mesma órbita. Ainda que zarolho, o jovem via agora bastante melhor do que com os dois olhos.
Desde então passou a comportar-se com uma maior dignidade, sendo louvado em todo o cantão pela sua eminente virtude.
O Cronista do Estranho acrescenta:
Um letrado do país passeava-se com dois amigos quando viu passar ao longe uma jovem rapariga que conduzia um asno. “Ó beldade!”, começou ele a cantarolar. Voltando-se para os seus companheiros disse: “Vamos persegui-la!”. Rindo puseram-se no encalço e alcançaram-na num instante, tratava-se da esposa do seu filho! Despistado e vermelho de confusão, o letrado estava emudecido, incapaz de articular a mínima palavra. Fingindo ignorância, os amigos começaram a avaliar os méritos da rapariga nos termos mais crus. Completamente embaraçado, o genro acabou por balbuciar: “ É a esposa do meu filho mais velho!” Puseram-se todos a rir à socapa. Muitas vezes se põe o marialva em situações de que se arrepende: não há pior ridículo.
Quanto à cegueira causada pela poeira lançada nos olhos, não será uma cruel vingança de deuses ou diabos? Não sabemos que divindade reinava sobre a Cidade dos Hibiscos – não seria uma encarnação de bodhisttava5?
Seja como for, ao abrir uma porta, as pequenas Excelências provaram que demónios ou génios, por maus que sejam, nunca impediram ninguém de se regenerar.
___
- 1 Chang’an, “Paz Perpétua” foi a capital da China durante o primeiro milénio e localizava-se próximo de Xian , no Shaanxi. Aqui trata-se de um termo literário para designar a capital do momento – Pequim.
- 2 Este nome de Fuyong cheng é normalmente atribuído a Chengdu, a capital da província do Sichuan, onde a lenda situa a entrada do Além.
- 3 Trata-se do Guanming jing, abreviatura de Jinguang ming jing (Sutra da Luz do Clarão de Ouro) uma provável tradução do texto sânscrito feita pelo “tântrico” Amoghavajra (705-774) e composto por dhârâni ou encantações à glória do Buda para remissão dos pecados.
- 4 Literalmente “tendo-se purificado das dez mil causas circunstanciais (pratyaya em sânscrito).
- 5 Pusa, abreviação de putisatuo, transcrição do sânscrito que significa “essência de sabedoria” e designa os budas (despertos) que atrasam o nirvana (extinção) afim de socorrer a humanidade em sofrimento.
