Han Fei Zi e o legismo

Texto e traduções
Rui Cascais

Han Fei (280-233 a.E.C.) nasceu na família real do reino de Han, no centro da China, durante a fase final do Período dos Estados Combatentes. Na sua formação foi determinante a influência de Xun Zi um confucionista de grande relevo político à época. Para além deste mestre, a outra fonte para as suas teorias políticas foi, curiosamente, o “Dao De Jing” de Lao Zi, que Han Fei interpretava mais como um texto político do que como um guia místico, como pareceu ser prática subsequente e mesmo hodierna. Han Fei via o “Dao” como uma lei natural que todas as coisas e todos os homens estavam destinados a seguir. No entanto, o filósofo acabou por chegar a um pensamento em que o soberano era colocado no centro absoluto, controlando o Estado com a ajuda de três conceitos: poder (shi), técnica (“shu”) e as leis (“fa”). Este pensamento seria objecto de um radical refinamento ao longo da sua vida e obra.

Han Fei assistiu ao gradual, mas constante, declínio do Estado Han e, em diversas ocasiões, tentou persuadir o rei a seguir políticas diferentes, apesar do monarca nunca ter ouvido os seus conselhos (diz-se que Han Fei seria gago, o que se, por um lado, lhe dificultava a comunicação das ideias na corte, por outro, o terá levado a desenvolver aquele que ainda hoje é considerado como um dos mais brilhantes estilos escritos da China). Com um desespero crescente, via como os políticos do seu tempo eram levados pelos filósofos Ru (nome da escola confucionista) e pelos seguidores de Mo Zi (490-403 a.c. Filósofo de estatura equivalente à de Confúcio, que recusava a ordem aristocrática e preconizava uma certa noção de “Amor Universal”) que pregavam interminavelmente acerca das virtudes morais.

Para além desta influência, que considerava perniciosa em extremo, os estados da sua época estavam à mercê de bandos de cavaleiros mercenários que a cada passo escarneciam e agiam contra as leis, acrescentando à confusão da sociedade e dos regentes, como uma errante nuvem negra de anti-heróis pairando sobre todo um período histórico.

Por fim, as obras de Han Fei acabaram por chegar ao centro de poder do Estado de Qin, onde pontificava aquele que viria a ser o Primeiro Imperador (o imperador Huangdi). No entanto, na corte Qin o filósofo foi rapidamente vítima de uma teia de suspeitas relacionadas com a sua origem no país de Han e consequente incapacidade natural de servir a outro senhor. Este clima conspiratório acabaria por conduzir Han Fei ao suicídio.


O Legismo da Dinastia Qin

O ponto principal e básico de onde Confúcio e Mencius partiram assentava numa visão do homem como fundamentalmente bom. Cada ser humano nascia com “de” ou “virtude moral”. Curiosamente, um dos maiores confucionistas da antiguidade, e mestre de Han Fei, Xun Zi (298 -238 a.E.C.), acreditava exactamente no oposto: que todos os seres humanos nasciam fundamentalmente depravados, egoístas, gananciosos e cheios de luxúria. No entanto, esta não era uma visão inteiramente tenebrosa e pessimista da humanidade, pois Xun Zi acreditava, simultaneamente, que os homens poderiam ser tornados bons através da educação e da convivência social. O seu aluno Han Fei começou a pensar a partir do mesmo ponto, embora tenha chegado à conclusão de que os seres humanos são tornados bons pelas leis do Estado.

Para o filósofo, a única forma de contrariar o egoísmo humano e a sua depravação era através do estabelecimento de leis que recompensassem abundantemente as acções, que beneficiassem os outros (a comunidade, a sociedade; o próprio Estado, na figura do soberano) e punissem impiedosamente todas as acções que causassem mal aos outros ou ao Estado. Se, para Confúcio, o poder era algo para ser usado em benefício do povo, para Han Fei, o benefício do povo residia no controlo sem restrições do egoísmo individual.

Radical, Han Fei acrescentava que se não se puder confiar no próprio Imperador para se comportar à altura do interesse do seu povo, isto é, se se pode esperar egoísmo do próprio Imperador, é necessário que as leis tenham um carácter supremo acima mesmo do soberano. Idealmente, se as leis fossem suficientemente bem escritas e aplicadas com agressividade, não existiria necessidade sequer de liderança individual, pois as leis seriam só por si suficientes para governar o Estado. Mais um aspecto em directa oposição ao idealismo confucionista de uma condição social humana em que as leis não seriam necessárias.

Quando os Qin ganharam poder imperial ao cabo de décadas de guerra civil, adoptaram as ideias dos Legistas como a sua teoria política. Na prática isto significou apenas uma nova forma de totalitarismo uniforme. As pessoas eram obrigadas a trabalhar por períodos indefinidos em projectos do Estado, um dos quais foi a construção de secções de muralhas defensivas, parte da Grande Muralha. Todos os tipos de discórdia com o governo passaram a ser objecto de pena capital. Todos os modos de pensamento alternativo, que os Legistas entendiam como encorajando a tendência natural de fraccionamento da humanidade, foram banidos. Estas políticas acabariam por causar a queda da própria Dinastia Qin ao cabo de apenas catorze anos no poder. As revoltas locais não encontraram resistência por parte dos oficiais do governo, que temiam que os próprios relatórios sobre essas revoltas pudessem ser considerados como críticas ao governo e assim resultassem na sua própria execução. A corte só descobriu estes levantamentos quando era já demasiado tarde e, em termos gerais, os Qin caíram em descrédito por mais de dois milénios.

Apesar de tudo isto, não é de facto simples desacreditar o Legismo como apenas um curto, anómalo e desagradável período de totalitarismo na história da China. Os Legistas estabeleceram formas de governo que influenciariam profundamente o futuro. Em primeiro lugar, adoptaram e colocaram em prática o idealismo de Mo Zi acerca do utilitarismo: as únicas ocupações a que o povo se devia dedicar deveriam ser aquelas que beneficiassem materialmente os outros, em particular a agricultura. A maioria das leis dos Qin foram tentativas de demover as pessoas de certas actividades inúteis tais como as Letras e a Filosofia. Este utilitarismo haveria de sobreviver como uma das correntes mais dinâmicas da teoria política chinesa.

Em segundo lugar, os Legistas inventaram aquilo a que podemos chamar “o primado da lei”, ou seja, a noção de que a lei é superior a cada indivíduo, incluindo governantes. É a lei que deve governar e não os indivíduos, cuja autoridade se limita à administração da lei.

Em terceiro lugar, os Legistas aplicaram, quase como conclusão lógica, uma padronização uniforme da lei e da cultura. De modo a ser eficaz, a lei deve ser aplicada com uniformidade, ninguém deve ser punido mais ou menos severamente por causa do seu estatuto social. Esta noção de igualdade perante a lei permaneceria, com algumas alterações (nomeadamente na questão religiosa, levantada sobretudo com o advento do budismo organizado na China), um conceito central nas teorias chinesas de governo.

Na sua busca de uniformização, os Qin levaram a cabo um projecto de padronização da cultura chinesa abarcando o sistema de escrita, o sistema monetário, os pesos e medidas, e os sistemas filosóficos (o que conseguiram sobretudo através da destruição de escolas de pensamento rivais). Tudo isto afectou profundamente a coerência da cultura chinesa e a centralização do governo. A dinastia que lhes sucedeu, a dos Han (202 a.E.C. – 9 a.E.C.), continuou esta tentativa de fusão de escolas rivais num processo conhecido por Síntese Han.

Sete fragmentos sobre o Poder, o Estado e a Lei

1 – A força de um país depende da Lei Não existe país que seja permanentemente forte. Assim como não existe nenhum país permanentemente fraco. Se aqueles que se conformam  à lei são fortes, o país será forte; se aqueles que se conformam à lei são fracos, o país será fraco.


2 –
Apoiar os que seguem a Lei

Na nossa época, o governante que souber eliminar a maldade privada e manter a lei pública terá o seu povo em segurança e o Estado em ordem. Qualquer governante que saiba expurgar a acção privada e agir de acordo com a lei pública, terá um exército forte e inimigos fracos. Por isso, procurai homens que sigam a disciplina das leis e regulamentos e colocai-os acima  do corpo de oficiais da corte. Assim, o soberano não poderá ser enganado por ninguém através da fraude e da falsidade. Procurai homens capazes de julgar cada situação e colocai-os à frente de assuntos distantes. Assim, o soberano não poderá ser enganado na política do mundo.


3 –
O perigo das promoções por reputação e partidarismo

Se as promoções se fizessem com base em meras reputações, os ministros ficariam distantes do soberano e todos os oficiais se associariam com intenções de traição. Se os oficiais fossem nomeados por causa do seu partidarismo, as pessoas esforçar-se-iam por cultivar as amizades em vez de procurarem emprego de acordo com a lei. Assim, se ao governo faltarem homens capazes, o Estado cairá no caos. Se as recompensas forem atribuídas com base na mera reputação e os castigos aplicados com base na mera difamação, os homens que apreciam recompensas e detestam castigos abandonarão a lei do público e praticarão toda a espécie de truques por interesse próprio, associando-se para fins sinistros. Se os ministros esquecerem os interesses do soberano e fizerem amizade com estrangeiros, assim promovendo os seus adeptos, os seus subordinados terão fraca moral para servir o soberano. Muitos são os seus amigos, numerosos os seus adeptos: quando formam juntas à esquerda e à direita, apesar de serem grandes as suas faltas, os seus modos de disfarce serão inúmeros.


4 –
A punição dos inocentes conduz à decadência civil

Os ministros leais, inocentes que sejam, estão sempre perante o perigo e a pena de morte, enquanto que os ministros cavilosos, apesar de destituídos de mérito, sempre gozam de segurança e prosperidade. Se os ministros leais se depararem com o perigo e com a morte sem terem cometido qualquer crime, os bons ministros retirar-se-ão. Se os ministros maus gozarem de segurança e prosperidade sem prestarem qualquer serviço meritório, os mais vilões dos ministros serão atraídos. Este é o princípio da decadência. Se tal fosse o caso, todos os oficiais abandonariam o legismo, praticando o favoritismo e desprezando a lei pública. Frequentariam os portões das casas dos homens dissimulados, mas nem só uma vez visitariam a corte do soberano. Cem vezes calculariam os interesses das famílias privadas, mas nem uma dedicariam ao bem estar do Estado do soberano.


5 –
A administração eficiente depende do primado da Lei

A lei dos primeiros reis dizia: “nenhum ministro deverá exercer a sua autoridade ou laborar em proveito próprio, mas deverá seguir as instruções da sua majestade. Não praticará o mal, mas seguirá o trilho da sua majestade.” Assim, na antiguidade o povo de uma época ordeira se regeu pela lei pública, abandonando todos os esquemas pessoais e dedicando a sua atenção e unindo as suas acções esperando emprego pelos seus superiores.

Porém, o senhor dos homens, se tiver ele próprio de inspeccionar todos os oficiais da corte, descobrirá que o dia é curto e as suas energias insuficientes. Para além disso, se o superior usar os seus olhos, o inferior ornamentará o seu aspecto; se o superior usar os seus ouvidos, o inferior ornamentará a sua voz e, se o superior usar a sua mente, o inferior retorcerá as suas frases. Considerando estas três faculdades como insuficientes, os primeiros reis deixaram de lado os seus próprios talentos e confiaram nas leis e números agindo cuidadosamente no que respeitava aos princípios de recompensa e castigo. Assim, os actos dos primeiros reis tinham apenas  por escopo a ordem política. As suas leis, por muito simplificadas, não eram violadas.

Apesar do governo autocrático nas terras circunscritas pelos quatro mares, os dissimulados não conseguiam fazer vingar os seus planos sórdidos; os enganadores não conseguiam lançar as suas propostas e os maus não encontravam meios aos quais recorrer, de modo que, mesmo a mais de mil li de distância de Sua Majestade, não se atreviam a mudar as suas palavras, nem estando do soberano próximos como cortesãos se atreviam a encobrir o bem ou a esconder o mal. Os oficiais da corte, altos e baixos, não agiam nunca uns contra os outros nem iam além dos seus postos e competências. Desse modo, a rotina administrativa do soberano não lhe ocupava o tempo por inteiro e cada dia continha suficiente lazer. Tal se devia à confiança que o governante tinha na sua posição.


6 –
Seja a Lei a escolher os líderes

O soberano inteligente deixa a Lei escolher os homens e abstém-se de efectuar promoções arbitrárias. Deixa a lei medir os méritos e, ele próprio, não produz regulamentos arbitrários. Consequentemente, os homens capazes não podem ser obscurecidos e os maus carácteres não podem ser disfarçados. Os homens falsamente elogiados não têm lugar, os homens erradamente difamados não podem ser degradados. Assim, a distinção entre soberano e ministros se torna clara e se atinge a ordem. E tal será o bastante se o soberano detiver o escrutínio das leis.


7 –
A todos a Lei trata do mesmo modo

A Lei não se sujeita ao nobre nem cede ao mau. Seja ao que for que a Lei se aplique, o sábio não poderá rejeitar nem o corajoso desafiar. Os castigos por erros cometidos nunca esquecem os ministros, a recompensa pelo bem nunca deixa de lado o plebeu.

Assim, para corrigir os erros do grande, para rechaçar os vícios do pequeno, para suprimir a desordem, para decidir contra más escolhas, para submeter o arrogante, para endireitar o torto e para unificar os costumes das massas, nada há como a Lei.

Para avisar os oficiais e impressionar o povo, para extirpar a obscenidade e o perigo e para proibir a falsidade e o engano, nada se pode comparar à punição. Se a punição for severa, o nobre não poderá discriminar o humilde. Se a lei for inequívoca, os superiores serão estimados em vez de aviltados. Se os superiores não forem aviltados, o soberano se tornará forte e capaz de manter o rumo certo do governo.

Essa era a razão pela qual os primeiros reis apreciavam o legismo e o transmitiram à posteridade. Se o senhor dos homens abandonar a Lei e praticar o egoísmo, o alto e o baixo serão indistintos. Assim, governar o Estado pela Lei é cantar o bem e apontar o mal.

 

As oito vias da traição

Existem oito vias graças às quais os ministros pérfidos atingem os seus fins.

A primeira tem o nome de “alcova”. Que entendo eu por isto? As belas concubinas e mancebos, todos aqueles que, aliando graça e beleza, perturbam o espírito do seu mestre, partilhando a alegria dos banquetes e das fantasias do soberano, aproveitam-se da sua embriaguez ou alheamento para lhe pedirem favores; é raro que os seus desejos não sejam satisfeitos. Quando os dignitários subornam as concubinas e os mancebos, para que estes usem os seus poderes de sedução, utilizam aquilo a que chamo o canal da alcova.

A segunda via tem o nome de “envolvência imediata”. Que quer isto dizer? Os bobos, os anões, os familiares do soberano, toda essa gente que se faz cara antes do rei falar, que opina antes dele ordenar, sabe adivinhar os desejos do seu mestre, pois lêem-lhe as intenções no rosto. Estão sempre de acordo entre si para elogiar ou denegrir, aprovam e respondem em coro; falam a uma voz desde que se trate de influenciar as decisões do soberano. Quando os dignitários os subornam para os incitar a cometer desvios à lei e influir nos seus sentimentos, utilizam aquilo que chamo o canal da envolvência imediata.

A terceira via tem o nome de “anciãos e parentes”. Que entendo por isto? Os príncipes do mesmo sangue e os colaterais do soberano contam-se entre os mais queridos súbditos; os velhos dignitários da corte constituem o conselho com o qual delibera. Basta que estes defendam tenazmente um ponto de vista para que o príncipe siga a sua opinião. Basta, então, que os ministros ganhem os favores dos parentes do soberano oferecendo-lhes músicos e mulheres e que ludibriem os dignitários e funcionários da corte, fazendo-os sonhar com as promoções e gratificações que lhes trariam as suas manigâncias bem-sucedidas, para os influenciar e incitar a agir contra o príncipe. Este é canal dos anciãos e dos parentes.

A quarta via tem o nome de “incitação à ruína”. Que quer isto dizer? Os soberanos gostam de ornamentar as suas residências e adornar as suas mulheres, os seus cavalos e os seus cães; mas se a contemplação da beleza alegra o coração do monarca, ela causa a sua ruína. Quando os ministros gastam as energias dos seus súbditos no embelezamento do palácio, dos terraços, dos tanques reais, quando instauram pesados impostos que apenas servem para adornar os mancebos, as mulheres, os cavalos e os cães do seu mestre, afim de perturbar o seu espírito sob o disfarce de lhe darem prazer e cuidam dos seus interesses pessoais sob a capa da satisfação dos desejos dele, assim se processa aquilo que chamo incitação à ruína.

A quinta via tem o nome de “demagogia”. Que é isto então? Muito simplesmente o seguinte: sucede frequentemente que os ministros delapidam o tesouro público afim de agradar à populaça, distribuem pequenas benfeitorias com o propósito de concitar os favores das massas; rapidamente se eleva por todo o lado, da corte à cidade, um concerto de elogios sobre a sua virtude, aproveitam então para fazerem eclipsar o príncipe e atingir os seus fins. Tal é a utilização daquilo a que chamo demagogia.

A sexta via tem o nome de “sofistas”. De que se trata? Estando o soberano afastado das conversas e das discussões a maior parte do tempo e tendo apenas raras oportunidades de participar nos debates, torna-se a presa ideal dos belos oradores. Os ministros depressa compreenderam a utilidade de recrutar retóricos dos Estados vizinhos ou sofistas locais na esperança de que as suas argumentações fizessem o soberano agir a favor dos seus interesses. Aqueles, por hábeis desenvolvimentos, por torrentes de eloquência, fazem-no sonhar com ganhos fabulosos, ou então aterrorizam-no, fazendo-o pressentir a desgraça e a ruína; os seus ocos discursos não tardam a subjugá-lo inteiramente. Tal é o canal dos sofistas.

A sétima via tem o nome de “grupo de pressão”. Que coisa é? Certos príncipes, perante os grupos de pressão constituídos pela multidão de oficiais e pela massa do povo, apressam-se a aprovar tudo o que a turba dos seus súbditos aprova ou a desaprovar tudo o que o que pode não lhes agradar. Certos ministros aproveitam-se disto para se rodearem de espadachins e temerários dispostos a sacrificarem-se por eles afim de fazer gala da sua autoridade; mostram assim que aqueles que os servem têm vantagens a esperar enquanto que os dias de quem a eles se opuser estão ameaçados; intimidando os servidores do Estado e a população para chegar aos seus objectivos. Tal é a utilização dos grupos de pressão.

A oitava via tem o nome de “principados vizinhos”. Que quero dizer com isto? É uma verdade de experiência que os grandes Estados controlam os pequenos e que os grandes exércitos fazem tremer os pequenos; e como um pequeno país concorda sempre com o que um grande lhe pede, e uma fraca trupe capitula sempre perante fortes batalhões, os ministros multiplicam as taxas, fazem pesar os impostos, esvaziam os cofres do Estado afim de agradar às potências vizinhas e servem-se do prestígio desses príncipes estrangeiros para abusar do seu mestre e obterem o que desejam. Quando não chegam ao ponto de pedir às potências estrangeiras de pegar em armas e juntar exércitos nas fronteiras para sustentarem as pressões que exercem na corte, fazem-nas enviar embaixadores que ameaçam afim de causarem medo. Eis aquilo a que chamo de canal dos Estados limítrofes.

Estas são as oito vias através das quais os ministros executam os seus criminosos desígnios, os oito procedimentos que infectam, destronam ou delapidam os príncipes. Por isso, é necessário prestar a mais aguda atenção.

Um príncipe iluminado goza da companhia das suas mulheres nos seus apartamentos privados, mas jamais escuta as suas recomendações, de modo que põe termo aos pedidos de favores; quanto aos familiares, tendo-se dado conta das suas palavras, preserva-se de pronunciar uma só palavra a mais, no que toca aos parentes e anciãos, impede as promoções abusivas reservando-se o direito de levantar processos judiciais sempre que as consequências das suas opiniões o exijam; no que concerne aos prazeres e divertimentos, exige que estes lhe sejam prodigalizados apenas por sua ordem expressa, afim de que ninguém se arrogue o direito de tirar do povo para lhe oferecer presentes; deste modo o bando de ministros encontra-se na impossibilidade de se aproveitar dos seus gostos.

Para o que seja liberalidade, convém que a distribuição do dinheiro dos cofres privados, o cereal dos celeiros da capital, enfim, que toda a medida de benfeitoria em favor da população seja da autoria exclusiva do príncipe, para que nenhum ministro se possa aproveitar da generosidade do soberano.

Em matéria de opiniões e conselhos, através da investigação dos fundamentos de elogios e acusações proferidas sobre este ou aquele, o príncipe colocará termo aos elogios e às críticas mútuas. No que respeita aos temerários, o soberano deve certificar-se que as suas recompensas nunca excedam o mérito militar; deve reprimir com a maior severidade as brigas de aldeia; não deverão existir fundos secretos para o contrate de espadachins. Enfim, um monarca digno desse nome, em matéria de exigências dos príncipes feudais, não deve aceder senão àquelas que lhe pareçam conformes ao direito, as outras deverão pura e simplesmente ser rejeitadas.

Quando se diz que um príncipe perdeu o seu país, não significa que já não tenha Estado mas que este já não lhe pertence por inteiro. Um príncipe que deixa os seus ministros estabelecer laços com o estrangeiro para influenciar a corte corre para o seu fim. Obedecer a uma potência vizinha sob pretexto de evitar a ruína conduz a uma ruína mais certa ainda do que se lhe for feita frente. Mais vale, assim, não se submeter; os súbditos, se o soberano lhes diz, abster-se-ão de conspirar com as potências estrangeiras; e essas, tendo disto conhecimento, desistem de os encarregar de abusarem do seu mestre.

Um príncipe esclarecido sabe promover os homens de talento e estimular os esforços dos seus súbditos através de posições, de funções e de prebendas que instaura. Eis porque penso que aos homens de talento devem chegar os emolumentos mais altos e os cargos mais altos da administração, que todo o mérito deve ser coroado de dignidades e de recompensas. Se os cargos são medida do talento e os emolumentos ilustram o mérito, os sábios não esconderão as suas capacidades do seu mestre e se dedicarão a servir, e todos os súbditos meritórios se empenharão no desempenho das suas tarefas. Deste modo, todas as suas empresas serão coroadas de sucesso.

Mas, nos nossos dias, passa-se bem o contrário. Sem fazer diferença entre os homens de bem e os escroques, sem procurar avaliar os méritos e os trabalhos de cada um, apenas se dá trabalho àqueles que têm o apoio dos príncipes estrangeiros; escutam-se as recomendações dos que estão em torno; os príncipes do mesmo sangue e os velhos dignitários pedem cargos e prebendas ao seu príncipe para as revender aos subalternos, assegurando-se assim de grandes lucros e da criação de grupos de influência. Os detentores de riquezas e capitais enobrecem-se através da compra de cargos; depois, conspirando conveniências com os familiares do soberano, ganham influência. Ninguém pensa em avaliar méritos e as promoções são feitas desprezando o bom senso. Os funcionários concluem negócios à pressa para se dedicarem exclusivamente a tramar golpes com o exterior. Em vez de se ocuparem do seu trabalho, só pensam em sugar os bolsos do monarca. Nestas condições, os homens de talento, que nenhuma promoção estimula, não têm coração para o trabalho e os súbditos meritórios, que vegetam nos seus postos, colocam pouco empenho nas suas tarefas. Eis então os costumes de um país em perdição.

 

Raiva de um solitário

U

ma perspectiva a longo termo e um olhar penetrante são indispensáveis aos peritos da arte política. Sem estes instrumentos, não poderão descobrir os motivos escondidos; do mesmo modo, a inflexibilidade e a verticalidade são apanágio dos letrados obstinados, permitindo-lhes corrigir os seus erros. Estes dois tipos de servidores do Estado, incapacitados pelas qualidades que os incitam a conformarem-se às leis e cumprir os seus deveres, nunca poderão tornar-se homens de influência. O homem de influência é aquele que age segundo o seu juízo e que esquece as leis quando se trata de agir em interesse próprio. Está pronto a sacrificar o seu país se tal aproveitar à sua família; tal é a sua autoridade que tudo consegue obter do seu mestre.

Eis o homem de influência. Mas assim que se pede luz aos especialistas na arte política e a rectidão dos que zelam pela lei, as suas torpezas correm o risco de serem reveladas e a sua conduta criticada. Quando estes dois tipos de servidores do Estado entram na vida pública, os ministros poderosos e considerados passam a estar fora da paliçada dos regulamentos: os que zelam pela lei e os dignitários que obstruem os corredores do trono são inimigos irreconciliáveis.

A partir do momento em que os altos dignatários detêm as chaves do governo, a administração interior e as potências exteriores tornam-se seus instrumentos: nenhum assunto político estrangeiro pode ser regulamentado sem o seu aval, e os príncipes feudais apressam-se a entoar elogios; nenhuma tarefa pode ser iniciada sem a sua intromissão, e os magistrados rivalizam em servidão; os secretários privados não podem mais aproximar-se do soberano sem passar por eles e todo o palácio conspira para lhes barrar o caminho; os letrados, que se veriam votados à pobreza e ao desprezo sem a sua intervenção, multiplicam-se em elogios. E, graças ao apoio destes quatro tipos de aliados, os nossos ministros conseguem mascarar os seus lucros. Como a pouca lealdade dos homens de influência chega ao ponto de recomendar ao príncipe os seus inimigos jurados, e como o próprio príncipe não consegue penetrar a barreira levantada pelas suas maquinações para tomar claro conhecimento da situação real, este fica dia após dia mais de parte enquanto cresce cada dia mais o peso dos altos dignitários.

É raro que estes homens, que obstruem os corredores do poder, não gozem do afecto e da confiança do príncipe, adquiridas por uma relação prolongada. Souberam chegar próximo do seu amo, conformando-se aos seus gostos e aos seus desejos. Gozam de gordas bolsas e de posição elevada; apoiam-se em numerosos partidários e todo o principado canta o seu elogio. Quereriam entrar em contacto com o seu soberano, como os legistas rigorosos – que não o conseguiriam, pois sem gozar da sua amizade ou da sua confiança, nem beneficiar da simpatia que se obtém a frequência assídua ou o hábito, tal é impossível –, propondo retratarem-se das suas más inclinações falando-lhe de instituições e princípios políticos? Mas aqueles ocupam uma posição humilde e desprezada. Não podem lutar com armas iguais, nem no plano da confiança, eles que são estranhos, nem no plano da familiaridade, eles os desconhecidos, nem no da conformidade de sentimentos, eles os polémicos, nem no da nobreza e do prestígio, eles cuja posição é modesta, nem no plano do crédito, eles cuja única voz se tem de opor aos elogios de todo um povo.

Afligidos por estas cinco inferioridades, os guardiães da lei nem sequer são recebidos em audiência depois de resolvidas as contas anuais, enquanto que os ministros, que fazem cerco ao soberano, fazem render as suas cinco vantagens, podendo estar a seu lado de dia e de noite. Nestas condições, qual o meio através do qual os peritos em política poderão fazer-se ouvir e em que momento poderá finalmente o príncipe ser abordado? Não dispondo de nenhuma vantagem sobre os seus rivais, e a existência de cada parte ameaçando a outra, seria miraculoso que os dias dos servidores da lei não se encontrassem em perigo. Na verdade, aqueles que não são feitos desaparecer sob o golpe de uma inculpação capital são discretamente eliminados pelos assassinos. Os homens íntegros que incitam o príncipe, desejando promover o reinado da lei, caem sob o ferro dos espadachins, quando não a cabeça cortada pela lâmina da justiça.

Todos os intriguistas que formam grupúsculos para se encobrirem abusam do soberano, os elogiosos que praticam discursos especiosos em benefício de interesses partidários podem estar seguros de obter a confiança dos homens de influência. Os facciosos que se conseguem auto-elogiar recebem cargos e dignidades e as nulidades sem sombra de talento são investidas de um poder oculto assegurando-se o apoio de uma potência estrangeira. Assim, os súbditos cuja única actividade consiste em manter o príncipe na obscuridade e cuja preocupação é ganhar a protecção das grandes famílias, tomam o ascendente graças a apoios exteriores quando não conseguem obter um cargo.

Hoje, em dias nos quais os amos dos homens aplicam castigos sem efectuar investigações e dão recompensas sem que lhes tenham sido mostradas provas, não será vão esperar que os guardiães da lei tenham ocasião de expor as suas opiniões, mesmo com risco de vida, e que as facções se retirem abandonando as suas vantagens?

É assim que o príncipe fica cada vez mais aviltado e as grandes famílias mais florescentes. Os príncipes dos estados centrais são todos capazes de reconhecer que a potência e a prosperidade de Yue não lhes aproveitam e dizer: “que me importa, se não posso controlar nada”. Mas um país, por grande e populoso que seja, não se torna tão estrangeiro ao seu amo como o de Yue, se for abusado e afastado dos assuntos, enquanto os altos dignitários monopolizam o poder? Esses soberanos não manifestam a mais profunda ignorância da lógica, ao não verem que o seu próprio país já não é seu, enquanto ao mesmo tempo sabem reconhecer a diferença do pais de Yue? Quando se fala do fim do país de Qi, não quer dizer que as suas terras e casas tenham desaparecido, mas que a família Liu perdeu o controle para a casa dos Tien; assim, a desaparição de Qin não implica que o mesmo suceda ao país, mas apenas a despossessão do clã Ki a favor das seis grandes famílias. E trata-se de uma bela prova de cegueira do príncipe não saber que as suas possessões estão nas mãos de outrem, quando os seus dignitários seguram as rédeas do Estado e dispõem do poder soberano de decisão. Um doente não sobrevive a uma infecção que tenha tido noutro doente um desenlace mortal. Uma dinastia não se mantém seguindo a política de um Estado que foi votado ao desaparecimento: é vão esperar por paz e segurança seguindo as pisadas de Qin e de Qi.

Não é só nos grandes reinos mas também nos pequenos principados que a lei e as técnicas de governação encontram obstáculos. A escolta de um príncipe não sendo composta de gente notável, quando este, depois de ter escutado uma opinião sensata a submete à aprovação do seu conselho, está a fazer julgar um homem inteligente por idiotas. O mesmo sucede com a probidade: os familiares do soberano não são todos santos; assim, quando o soberano toma a elevação moral de um súbdito e a discute com eles está a pedir ao vício para se erigir em juiz da virtude. Os homens de inteligência superior vêem, assim, os seus planos postos por terra por imbecis e os sábios a sua conduta avaliada por devassos. A inteligência e a virtude saem disto conspurcadas e o juízo do soberano falseado.

Entre os súbditos que desejam servir o Estado, aqueles que cultivam a perfeição moral fazem um escudo da sua probidade e aqueles que cultivam a inteligência sobem graças à sua competência. Mas os homens íntegros não podem subornar os funcionários com jarros de vinho pela simples razão que estes contam com a sua probidade para ser bem-sucedidos, enquanto que os administradores competentes se recusarão a mutilar a lei na sua gestão. Nem uns nem outros podem subornar os que rodeiam o soberano ou a aceitar pedidos de recomendação. Quando os pedidos ficam sem efeito e os jarros de vinho não chegam, os méritos da integridade e da competência desaparecem e o príncipe perde toda a clarividência. Enquanto não se medir a inteligência pelos resultados, enquanto não se julgarem os delitos através do confronto de testemunhas, enquanto se preferir escutar as palavras dos que estão próximos apenas, os incapazes pululam na corte e os imbecis e devassos ocupam todos os postos.

A desgraça de um grande principado depende do peso dos dignitários. A desgraça de um pequeno fica a crédito de quem rodeia o soberano. Eis o que corrói todos os príncipes sem excepção. E aos grandes crimes dos ministros respondem os erros monumentais dos soberanos, pois convém saber que os interesses do amo e dos súbditos são antagónicos. Querem a prova? Eis: o interesse do príncipe é de dar emprego aos que tem capacidade; o dos ministros de estar a cargo dos assuntos do estado sem ter dado prova de nenhum talento; o interesse do príncipe é que dignidades e emolumentos coroem o mérito, o dos súbditos que chovam honras sem que façam nada; o interesse do soberano está na exploração das capacidades de homens notáveis; o dos sujeitos na formação de facções que promovam os seus interesses pessoais.

É por isso que um país enfraquecido tem particulares prósperos, e um príncipe fraco, dignitários poderosos. Ao deixar os dignitários abusar e ocupar-se dos seus assuntos privados, um príncipe perderá o seu reino a favor dos ministros, será renegado ao papel de senhor privilegiado, abandonando a distribuição dos feudos ao seu primeiro-ministro. É por isso que, na época actual, não existem dois dignitários em dez que tenham sobrevivido a uma mudança de reinado. E porquê? Porque foram acusados de crimes. E os seus crimes consistiam nada mais nada menos que de terem abusado do seu amo, algo punível com a morte.

Os peritos em política vêem a longo prazo e prevêem a sorte que os aguarda, por isso se recusam a seguir homens influentes: quanto aos letrados virtuosos, o seu sentido de probidade revoltada, ante essa chusma de funcionários que enganam o seu amo, fá-los recusarem-se a conviver com dignitários influentes. Assim, os clientes desses potentados são homens vis, que não hesitam a fazer conluio com escroques quando não são imbecis ao ponto de não verem o perigo. Rodear-se de imbecis e de canalhas com os quais se convive alegremente para enganar o soberano em cima e apanhar gordos lucros por baixo, formar facções que falam a uma só voz, abusar do príncipe e cuspir aos pés da lei, semeando o caos entre o povo, mesmo que a nação esteja de rastos e o soberano à beira da humilhação, não são estes os maiores crimes que um súbdito pode cometer? Mas não será também gravíssimo erro de um príncipe não ver como os ministros acumulam poder? Como pode um Estado esperar escapar à ruína enquanto o príncipe, no alto, comete tais erros e o ministro, em baixo, se permite tais crimes?

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