Em 1969, ao cair da noite, um homem entrou sorrateiramente numa fábrica de papel no sudoeste da China. Na fábrica estavam guardados livros proibidos, dispostos em montes, à espera de serem cortados em finas tiras de papel e depois serem reciclados. O homem que se esgueirou para dentro da fábrica queria deitar a mão a um livro em particular.
O Lótus Dourado – Jin Ping Mei em chinês – é considerado o quinto romance clássico, a seguir aos Quatro Grandes Romances Clássicos. A sua representação graficamente explícita da sexualidade fez com que o livro ganhasse um nível de notoriedade na China equivalente ao de Madame Bovary no Ocidente. Desde a sua publicação no séc. XVII, o livro foi banido, vendido, comprado e circulou livremente.
Aos cinéfilos estrangeiros pode ter escapado esta referência do filme de Feng Xiaogang Não Sou Madame Bovary, em parte porque o realizador não está a invocar a personagem titular de Gustave Flaubert, mas sim a mais inesquecível heroína da literatura chinesa, Pan Jinlian, do romance Lótus Dourado. O título do filme em chinês é Não Sou Pan Jinlian. Embora tanto Madame Bovary como Pan Jinlian tenham sido acusadas ao longo dos tempos de depravação moral, a natureza das suas personalidades é diferente.
Pan é literalmente uma femme fatale, com pés pequeninos e uma luxúria insaciável, treinada para cantar e tocar o tipo de música associada a artistas de reputação duvidosa. Se quisermos, uma Madame Bovary dura e expedita.
No seu filme, Feng retrata a protagonista Li Xuelian (Lótus de Neve), interpretada por Fan Bingbing, como uma mulher que tenta quebrar O Sistema. Assim sendo, o filme, à semelhança do romance Lótus Dourado, é uma história sobre o tecido social. Feng Xiaogang aborda a natureza da burocracia e a incansável luta de uma mulher contra a sociedade chinesa. Este factor faz o filme parecer político e pesado, mas a história desenrola-se como uma comédia, uma sátira mordaz ao Estado opressivo e à incompetência e indolência dos funcionários do Governo.
Feng Xiaogang escolheu dar tratamento singular às suas imagens. As cenas campestres são visualizadas através de uma forma circular, eliminando a periferia do ecrã, o que nos dá a sensação de estarmos a olhar para uma pintura chinesa ancestral, poética e deslumbrante. Quando ela chega a Pequim, a forma circular desaparece e o enquadramento passa a ser um quadrado perfeito, representando o mundo muito mais vasto onde ela se vai inserir.
Poderemos ser criticamente poéticos ou poeticamente críticos? Bem, desde os tempos ancestrais, a elite chinesa certamente terá encontrado uma forma de expressão útil e criativa para o definir.
Citação famosa de Feng Xiaogang para guardar na memória
“Só os mais impulsivos podem pensar que sou um mestre. Não sou um mestre pura e simplesmente porque o nosso tempo não produz quaisquer mestres.”
