Homens embriagados recriam o dragão e nele se transformam
No oitavo dia do quarto mês lunar, realizam-se as festividades do Dragão Embriagado (舞醉龍 Wǔ zuì lóng), que apenas se comemoram em Macau e são organizadas pela Associação dos Comerciantes de Pescado (U Hong). Estas festividades tiveram a sua origem na vila de Sek Kei, em Zhongshan, e recriam uma lenda que refere um homem que, muito embriagado, caiu ao rio, onde um dragão vivia e desde há tempos aterrorizava a população ribeirinha.
Animado pelos vapores etílicos do vinho e com um heroísmo imprudente, o homem ataca o animal, conseguindo cortá-lo em três partes, matando-o. Por isso todos os anos os homens das lotas (lanes) celebram esta data embriagando-se, enquanto transportam pelas ruas a cabeça e a cauda do dragão. Em gestos livres recriam em passos de dança os movimentos da parte que seguram do dragão, sendo eles mesmos o corpo que falta, para num todo este animal ficar completo.
Noutra história ficamos a saber porque é que o dragão não tem corpo. Buda, quando o dragão se banhava no rio cortou-o em três partes, ficando o tronco separado das duas extremidades. Estas duas, cabeça e cauda, foram resgatadas numa rede de pesca que um pescador embriagado trouxe da faina.
No oitavo dia da quarta Lua, ainda cedo pela manhã, na zona Sul do mercado de S. Domingos as mesas cheias de oferendas encontram-se dispostas no pátio à entrada do Templo de Kuan Tai (關帝), o deus da Guerra. Aí se faz a concentração e se realiza pelo mestre das cerimónias os rituais que dão início às festividades. A entrega de cada uma das cabeças do dragão, que tem chifres de veado, língua de serpente, olhos de touro, barba de bode e escamas de peixe, é feita aos membros, assim como as caudas.
Após a dança do leão e dos intervenientes bem bebidos começa o cortejo, sempre acompanhado pelos tambores e pratos de metal. A partir daqui, o cortejo segue pelo bazar chinês até ao mercado do Patane e daí ao Mercado Vermelho, onde a cerimónia da refeição merece referência. E não é por acaso que uma enorme fila aí espera!
Assim, no dia 8 do quarto mês lunar, que ocorre no início de Maio, as caudas e as cabeças do Dragão são retiradas do templo onde ficaram expostas à protecção divina e guardadas desde o quinto dia da quinta Lua, após realizadas as regatas dos barcos-Dragão.
Numa cerimónia conhecida como “fora da água” ou “qi shui”, depois de se realizarem os sacrifícios ao Deus da Água, as cabeças e caudas do Dragão são transportadas por homens ligados ao comércio de peixe fresco pela cidade de Macau. Partindo do Templo Sam Kai Vui Kun, os homens, pois só eles podem incorporar o dragão, vão vestidos com calças pretas, camisolas brancas e uma faixa vermelha à cintura, tendo no punho esquerdo uma fita vermelha e outra na cabeça, onde colocam um ornamento metálico dourado em forma de flor. Embriagados, quase inconscientes, espargindo-se com vinho de arroz emprestam assim o corpo ao Dragão. Esta acção serve para acordar o Dragão.
Manhã cedo, depois das rezas num templo fronteiriço do Mercado de São Domingos e da distribuição gratuita de comida à população que queira comparecer, um grupo de jovens, depois de devidamente alcoolizados, pega em várias cabeças de dragão esculpidas em madeira e em igual número de caudas e inicia uma dança ébria. O grupo percorre vários mercados da zona ribeirinha da cidade, a beber e a dançar na rua, sendo frequentemente substituídos os elementos demasiado trôpegos. Os organizadores, participantes e até alguns acompanhantes, encerram a festividade com um banquete bem servido e animado.
Esta festa coincide com a celebração do nascimento de Buda, como já foi referido. Na versão budista, é uma comemoração do banho celestial com que o bebé Buda foi agraciado pelos dragões do Céu, no oitavo dia do quarto mês lunar.
Buda foi abençoado pelos dragões celestiais com um belíssimo banho, que os budistas ritualizam banhando a sua estátua. Os chineses da província de Cantão, embora possuam outras explicações para a origem da Festividade do Dragão Embriagado, permitem a coexistência pacífica de versões entre as várias religiões.
Há duas histórias muito interessantes e absolutamente naturalistas para a génese da Festividade do Dragão Embriagado. A primeira conta, ligando a Festividade do Dragão Embriagado à província de Cantão, que um monge em dia do banho à estátua de Buda, estando a sofrer do calor que todos nós conhecemos, se foi banhar ao rio. Nisto, das águas saltou uma serpente enorme, que o faz temer pela sua própria vida. Então desembainhou a espada, cortando o animal ao meio. Entretanto, aproximou-se um pescador embriagado, que iniciou uma estranha e ébria dança com o corpo mutilado da serpente. Ele tanto rodopiou, que uniu a serpente e esta ressuscitou como dragão.
Na segunda relata-se que em dia de rezas a Buda, a pedir a salvação de uma população afligida por epidemias, saltou do rio uma enorme serpente, que os aldeões se apressaram a cortar. Os ferimentos fizeram com que a água se tingisse de sangue, inviabilizando o seu consumo. Os aldeões consideraram que o sucedido era obra do dragão, que desta forma impediu o consumo de água imprópria e a proliferação da epidemia. Assim terá nascido a Festa do Dragão Embriagado.
Seja qual for a versão, nota-se que é uma festividade ligada à água dos rios, onde, como sabemos, para os chineses habitam dragões. Estes albergam um poder extraordinário, normalmente muito positivo. Possuem uma capacidade de metamorfose inexcedível, passando de pequenos a grandes e destes até muito grandes. O movimento de dança e de alegria, como acontece na Dança do Dragão Embriagado, favorece as mutações afortunadas e auspiciosas de serpente em dragão.
