Os manchus e o governante ideal

“Quase diariamente, levava os meus filhos a praticar tiro ao alvo com a minha guarda pessoal. Dizia-lhes que não perdessem as suas tradições manchus mesmo em coisas como o vestir, a comida, os utensílios, que não se deixassem tingir demasiado pelos hábitos Chineses como sucedeu com os últimos governantes Jin e Yuan.

Dizia-lhes que procurassem os seus prazeres numa vida em espaços abertos, que não se enclausurassem atrás de tabiques e em salas contíguas, como os Chineses consideram adequado”.

Kangxi

 

Quem eram, afinal, esses “estrangeiros” que conquistaram a China no século XVII? Não se tratavam propriamente de ilustres desconhecidos. Contactos entre Manchus e Han existiam, pelo menos, há mais de mil e quinhentos anos. A invasão dos Qing não abria um precedente; pelo contrário, confirmava o receio que os Han sempre mantiveram relativamente às tribos que habitavam o norte do império e que levara no passado à construção da Grande Muralha.

 

Tungus, Ruzhen e a dinastia Jin

Os Manchus descendem dos Tungus, uma etnia que ocupou a área conhecida por Manchúria, no nordeste da China, pelo menos desde o século III A.C., resultante da fusão de várias tribos locais como os Sushen e os Ilu, bem como de outros povos de origem turca e mongol. Essencialmente, dedicavam-se à caça, à pesca e à recolecção, tendo posteriormente desenvolvido formas primitivas de agricultura e pecuária. Em registos chineses da época são descritos como Donghu (bárbaros de leste). A sua língua pertence a um ramo das línguas Altaicas, da família linguística Uralo-Altaica, e distinguia-se de linguagens vizinhas, por exemplo, pela peculiar distinção entre masculino e feminino através da utilização das vogais ‘a’ e ‘e’, como nas palavras ama ,‘pai’, que se torna eme ‘mãe’. Tal como em chinês, os verbos manchus não distinguem pessoa nem número.

No século X, os historiadores chineses referem-se a estas tribos como Nuzhi ou Juzhi, uma transliteração do termo nativo Ruzhen. Nesta altura estamos já longe de uma organização puramente tribal e desordenada. Os Ruzhen são senhores de um reino de alguma dimensão e importância.

No século XII, mais concretamente em 1115, os Ruzhen afastam do poder os Liao (originariamente Kitan, de onde deriva o nome Cataio), cuja dinastia tinha, pela primeira vez, tornado Pequim (então Yenjing) na capital do império e que se diziam os verdadeiros sucessores da dinastia Tang (618-907).

Vindos do norte da Manchúria, os Ruzhen fundam a dinastia Jin que duraria até 1234, quando foram depostos pelos Mongóis. Os Jin caracterizaram-se, numa primeira fase, pela rígida manutenção da sua estrutura social e militar, proibindo o uso da língua, dos nomes, do vestuário e dos costumes Han, pelo menos durante a prática do serviço militar, a que todos os Ruzhen eram obrigados. Neste sentido procuravam manter a sua superioridade militar, já que noutros campos eram claramente inferiores, nomeadamente no que concerne as técnicas agrícolas e a própria arte de governar. A sua sinificação era praticamente inevitável, até porque constituíam um grupo minoritário numa região densamente povoada e que até então nunca tinha sido invadida por povos seminómadas. Um longo período de paz logicamente assegurou, em grande parte, a sua absorção pela maioria Han. Antes da invasão mongol, os governantes Jin tinham entrado em franca decadência preferindo os estudos confucianos e a poesia Han da dinastia Tang aos cuidados da arte da governar, para além de verem os seus recursos esgotados por uma guerra interminável com os seus rivais do Sul, os Sung. Por outro lado, Han e Kitan, pouco satisfeitos com o governo dos Jin, aliaram-se aos invasores mongóis, proporcionando-lhes os seus conhecimentos sobre o exército Jin e as características do terreno.

Em 1211, os Mongóis lançaram os seus primeiros ataques, liderados pelo próprio Gengis Khan, efectuando pilhagens por onde passavam. Só em 1214 se propuseram conquistar Pequim. No entanto, a cidade encontrava-se extremamente bem fortificada e a paz acabou por ser assinada levando à retirada das tropas atacantes. No ano seguinte, Gengis Khan quebrou o armistício e acabou mesmo por conquistar a capital. O último imperador Jin viria a suicidar-se em 1234, quando o seu império já não existia e se encontrava cercado no Hunan. Os Ruzhen, na sua grande maioria, retiraram-se para as suas terras de origem, no norte da Manchúria.

 

Os Qing

Os Mongóis acabariam por conquistar toda a China, em 1280, incluindo a Manchúria, que transformaram numa província a que deram o nome de Liaoyang, e estabeleceram a dinastia Yuan. No entanto, os Han nunca se conformaram com o domínio mongol tendo-se sucedido numerosas revoltas e rebeliões. Finalmente, os Yuan viriam a ser derrubados em 1380, sucedendo-lhes a dinastia Ming, que retomou o controlo chinês sobre a Manchúria. Nesta altura, os Ruzhen habitavam o norte da província e encontravam-se divididos em cinco clãs independentes, mas tributários do poder Ming.

Em meados do século XVI os Mongóis tinham, de algum modo, recuperado parte do seu poderio militar e ameaçavam de novo as fronteiras do império chinês. Este facto provocou uma diminuição do controlo da Manchúria, levando a um aumento de poder por parte dos Ruzhen. Até então os chineses tinham seguido uma política de “dividir para reinar”, incentivando as escaramuças entre os clãs e mesmo no seu interior. Entre os Chien-chou Ruzhen nascera, em 1559, Nurhachi que tomaria o poder no seu clã com cerca de vinte anos de idade, dando início a uma era nova para os Manchus. Em 1586 derrotou um adversário dentro da sua própria tribo, apoiado pelos Chineses, consolidando definitivamente o seu comando.

Em seguida, tratou de construir um Estado Manchu, começando pela escrita e pela organização militar e administrativa. Para tal, em 1599, incumbiu o letrado Erdeni de criar um sistema de escrita, cuja origem se pode remeter ao sistema mongol, que deu origem a uma literatura nacional. Em 1601, criou o sistema dos estandartes, uma forma de organização militar que se desdobrava em administração e recolha de impostos. Esta imposição de Nurhachi foi determinante para transformar uma sociedade tribal num Estado organizado. Provavelmente, esta transformação dos clãs num burocracia militar terá sido inspirada na estrutura político-militar chinesa, em vigor nas fronteiras do império. Ao mesmo tempo, conseguiu dominar todos os clãs Ruzhen sob a sua bandeira. Em 1615, os originais quatro estandartes, que Nurhachi colocara sob um estrito controlo familiar, foram transformados em oito, igualmente entregues a familiares de confiança. Entretanto, Nurhachi tratou de conquistar os outros clãs Ruzhen e de os organizar, agora, segundo uma lógica totalmente diferente, formando um Estado consideravelmente poderoso.

Este poder manchu viria a crescer desmesuradamente, também do ponto de vista económico, com o estabelecimento de vários monopólios, nomeadamente das minas, riquíssimas na região, e do tráfico de peles, pérolas e ginseng. Em 1616, Nurhachi proclamou-se khan (imperador), usando igualmente a expressão chinesa Tian Ming (Mandato Celestial), inaugurando uma dinastia a que chamou Jin, assumindo-se herdeiro da casa dinástica do mesmo nome que os Ruzhen tinham fundado no século XII.

Quando se sentiu definitivamente preparado, em 1618, Nurhachi lançou o seu primeiro ataque contra a China, na cidade fronteiriça de Fushun, alegando que este acto se justificava, inclusivamente, porque os Chineses teriam estado por detrás do assassínio de seu pai e de seu avô. O êxito desta expedição ficou-se a dever ao facto do comandante da cidade se ter passado para o lado manchu. Facto que se veio a repetir posteriormente, porque os Chineses reconheciam que, mesmo sob o poder manchu, tinham acesso à administração e era até reconhecida a validade da manutenção das estruturas políticas e culturais chinesas.

Em 1625, mudou a sua capital para Mukden, preparando-se para defrontar os exércitos chineses que guardavam a entrada da China propriamente dita. Contudo, no ano seguinte, perdeu a sua primeira batalha contra as forças Ming, em Ningyuan, vindo a falecer dos ferimentos, em 30 de Setembro de 1626.

Sucedeu-lhe o seu oitavo filho Hung Taiji, que conseguiu eliminar os seus irmãos rivais, muito graças às suas capacidades de líder militar. No seu reinado os Manchus conquistaram a Mongólia Interior e a Coreia, aproveitando ao máximo as riquezas destes países. Graças aos soldados e cavalos mongóis e ao dinheiro e mantimentos que lhe vinham da Coreia, Hung Taiji aperfeiçoou o sistema dos Oito Estandartes organizando os primeiros raides para lá da Grande Muralha. Os Manchus ofereciam grandes privilégios aos Chineses que se lhes juntassem, o que provocou uma galopante influência chinesa na administração manchu. Este facto contribuiu decisivamente para a consolidação do poder administrativo e militar do descendente de Nurhachi. Sob este estímulo e a conselho dos seus conselheiros chineses, Hung Taiji resolveu, em 1636, mudar o nome da sua dinastia de Jin para Qing (Pura) e lançar-se definitivamente na conquista da China. Isto depois de conquistar parte da Mongólia e ter-se apoderado do Grande Selo do Khan, o que lhe conferiu simbolicamente o título de Filho do Céu. Morreu exactamente um ano antes das suas tropas entrarem em Pequim, em Junho de 1644.

A sua morte lançou alguma confusão sobre a sucessão dinástica. Dorgon, o décimo quarto filho de Nurhachi, seria o mais provável e desejado sucessor, mas o príncipe recusou o cargo, nomeando para o lugar o filho de Hung Taiji, Fulin, de cinco anos de idade, que viria a chamar-se Shunzhi. Para si e para seu irmão Jirgalang reservou os lugares de regentes do império. Foi ele que, com a ajuda do general chinês Wu Sankuei, retirou Pequim das mãos dos rebeldes que tinham destronado o último imperador Ming. Mas se os Han pensavam que os Manchus retirariam depois da conquista da capital estavam bem enganados. Shunzhi foi levado para Pequim a 19 de Outubro de 1644 e onze dias mais tarde proclamado imperador. No mesmo ano, Dorgon conseguiu submeter as províncias de Shensi, Hunan e Shandong; no ano seguinte, seguiram-se Kiangnan, Jiangxi, Hebei e parte de Zheijiang; sendo as províncias de Sichuan e Fujian conquistadas em 1646. Com o tempo foi concentrando o poder nas suas mãos, relegando o seu irmão para a mera função de assistente do imperador. Quando morreu, em 1650, numa caçada perto da Grande Muralha, todo o norte da China tinha sido dominado.

O imperador Shunzhi expandiu o império por toda a China, forçando as últimas tropas Ming a refugiarem-se em Taiwan, de onde expulsaram os Holandeses, em 1659. Encarado como uma pessoa extremamente afável, Shunzhi foi grandemente influenciado pelos eunucos da corte e pelos monges budistas. Faleceu muito novo, de varicela, aos 23 anos de idade.

No entanto, existe uma outra versão: reza a lenda que, por amor a uma bela consorte  prematuramente falecida, terá entrado para um templo chan (zen), descuidando os assuntos de Estado. Anos mais tarde, o seu filho e sucessor Kangxi terá, debalde, tentado encontrá-lo.

 

Os Estandartes

O sistema dos Estandartes constituiu a principal forma de organização do jovem Estado manchu fundado por Nurhachi. Foi em 1601 que, pela primeira vez, o exército manchu foi dividido em quatro companhias de 300 homens cada. Cada uma ostentava um estandarte de cor diferente: amarelo, vermelho, branco e azul. Em 1915 foram acrescentados mais quatro estandartes, sendo que as cores se mantiveram as mesmas com a particularidade dos novos estandartes apresentarem uma margem bordada a vermelho e o estandarte vermelho uma margem bordada a branco. À medida que os Manchus progrediam nas suas conquistas e simultaneamente iam recrutando e arregimentando mais soldados, o número de elementos dos estandartes ia também aumentando, chegando a atingir os 7500 homens por cada um, divididos em cinco regimentos que, por sua vez, se subdividiam em quatro companhias.

Mais do que uma mera forma de organização militar, o sistema dos estandartes lançou as bases para uma burocracia estatal que se revelou ser a pedra de toque dos manchus nos primeiros anos do seu crescimento e uma das razões do seu sucesso, nomeadamente junto das tribos nómadas do país. Era através deste sistema que se cobravam os impostos, organizava o recrutamento e recenseava a população, permitindo assim aos governantes uma noção muito aproximada da realidade do seu Estado.

O sistema dos estandartes servia assim de mediador entre o Estado e a população, o que demonstra bem o carácter militarista da dinastia Qing, pelo menos durante as primeiras décadas do seu reinado.

Durante a conquista da Mongólia e da China, os cativos eram obrigados a servir no exército pelo que, em 1634, foram criados oito estandartes mongóis e em 1642 mais oito, desta vez chineses, num total de 24, que se mantiveram durante toda a dinastia.

Os membros dos estandartes eram considerados uma espécie de nobreza e tinham direito a um tratamento preferencial em termos de pensões anuais, terra e distribuição de arroz. Os que pertenciam aos estandartes manchús eram certamente mais bem tratados que os seus colegas chineses e mongóis, mas nenhum deles podia fazer comércio ou qualquer trabalho manual sem primeiro pedir para ser retirado das suas funções. Para além disso, os que violassem a lei não eram julgados por um qualquer magistrado civil, mas por um general manchú designado para o efeito.

Depois de um século e meio de paz, as qualidades guerreiras dos homens dos estandartes tinham-se deteriorado e o seu treino considerado com algum desleixo. Quando da Rebelião do Lótus Branco (1796-1804) e da Revolução Taiping (1850-54), o sistema dos estandartes revelou-se incapaz de proteger a dinastia que se viu obrigada a reunir outro tipo de forças militares. No princípio do século XX, o sistema estava perfeitamente obsoleto.

 

Kangxi e o governante ideal

Filho de Sunzhi e feito imperador aos sete anos de idade, em 1661, só oito anos mais tarde Kangxi controlou, de facto, o trono do Império do Meio. Durante este período o governo foi exercido por quatro conselheiros manchus, herdados da corte de seu pai: Suoni, Sukeshaha, Ebilong e Aoboi. Estes homens, de tendência conservadora, demonstravam algum desdém pela crescente influência chinesa, que o imperador Shunzhi apadrinhara. Agora que se encontravam no poder iam tomar medidas drásticas para combater o que consideravam elementos perniciosos.

E começaram logo pela instituição que mais os irritava: os Treze Ofícios que, constituída por eunucos, era responsável pela administração do Palácio Imperial. Tratava-se de uma tarefa de grande responsabilidade e influência, porque  supervisionavam a administração doméstica e controlavam os pagamentos de todos os funcionários.

Recuperada por Shunzhi, esta instituição de origem Ming horrorizava os manchus que a substituíram pelo Conselho de Administração do Palácio, formado apenas com elementos da sua etnia.

A partir de 1667, Kangxi começou a interessar-se pelos assuntos de Estado. Já com treze anos, frequentava as audiências e participava nas reuniões, mas o poder encontrava-se ainda nas mãos dos seus ministros. Com a morte de Suoni, Aoboi tornou-se um virtual ditador, mandando matar Sukeshaha e dominando Elibong. Mas Kangxi estava precavido contra as suas intenções. Há já muito tempo que homens fiéis a Aoboi controlavam parte do Palácio Imperial e o informavam sobre os movimentos do imperador. O jovem imperador resolveu recrutar cem jovens guerreiros dos Estandartes, sob o pretexto de praticar com eles a arte marcial “buku”, de origem manchu. Na prática serviam-lhe de guarda-costas contra as eventuais conspirações de Aoboi. O clima entre ambos deteriorou-se progressivamente até ao dia em que Kangxi resolveu por um ponto final na situação. Aoboi recebeu um convite para uma bebida no Palácio. Quando o ministro chegou o imperador praticava artes marciais com os seus habituais companheiros e não lhe ligou importância. Somente deu ordens para lhe darem uma cadeira. Uma das pernas do móvel fora serrada e Aoboi deu por si esparramado no chão. Segundo as regras da corte imperial Qing, uma quebra de etiqueta por parte de um ministro diante do imperador era considerada um crime. Irado, Kangxi ordenou a sua prisão, imediatamente executada pelos seus jovens guerreiros. Aoboi foi julgado, considerado culpado de vários crimes e executado. Kangxi tinha, então, quinze anos.

A primeira grande tarefa que se erguia diante do jovem imperador era a unificação e pacificação de todo o território chinês. Basicamente, dois problemas se levantavam: o rebelde Coxinga, que se refugiara em 1661 na ilha de Taiwan, expulsando os Holandeses e dominando com os seus barcos quase toda a costa da China; e a revolta dos três reinos vassalos do Sul, a Guerra San-fan.

 

A guerra San-Fan

Quando da conquista do poder, os Qing contaram com o apoio de alguns generais Ming no domínio de territórios rebeldes no Sul. Estes homens permaneceram à frente dos governos das províncias submetidas, dotadas de um regime de larga autonomia em relação ao poder central de Pequim. Inclusivamente, beneficiavam de ajudas do governo para a manutenção do exército.

O mais poderoso era o general Wu San-kuei, que participara na tomada de Pequim aos rebeldes, responsável pela derrota dos últimos aristocratas leais aos Ming, refugiados no Yunnan. Wu, agora “príncipe” e governador militar das províncias de Yunan e Kweichow, controlava também Hunan, Shensi e Gansu. Não desmantelara nunca o exército que lhe permitira controlar tão vastas regiões em 1661, quando Kangxi tinha apenas sete anos. Agora, dez anos mais tarde, o seu reino prosperara significativamente.

Para além de Wu San-kuei, existiam também os governadores de Guangdong, Shan Ko-hsi, e de Fujian, Keng-Ching-chung. Foi natural que estes três homens, graças ao seu poderio militar e distância em relação à corte, começassem a ser considerados uma ameaça cada vez mais real por Kangxi. A questão resolveu-se quando, em 1673, Shang Ko-hsi, de Cantão, entregou o comando do seu exército ao governo central e de bom grado se retirou da vida pública. A corte reuniu em conselho para decidir se havia de exigir a mesma atitude aos seus outros reinos vassalos. A maior parte dos conselheiros mostrou temer o bem equipado e treinado exército de Wu San-kuei, mas o jovem Kangxi insistiu na ideia de tentar subtrair o exército ao general, argumentando que, cedo ou tarde, os reinos finalmente se revoltariam, sendo portanto mais avisado aproveitar a oportunidade para preveni-los da sua determinação. A guerra foi declarada. Mais tarde, apesar da vitória, vir-se-ia a arrepender da sua decisão e escreve: “Apesar do Conselho de Príncipes e Altos Oficiais não ter concordado comigo em 1673, decidira avançar. Parecera possível, se fossemos suficientemente exaustivos e mostrássemos as nossas boas intenções na transferência dos três príncipes do sul, que a sua única alternativa seria aceitar as nossas determinações”. E vai mais longe na demonstração dos seus erros: “Uma audiência da corte tem a importante função de reduzir a arrogância. (…) A existência de audiências regulares é crucial com os militares, especialmente quando detêm o poder há muito tempo. A rebelião podia não ter acontecido se Wu San-kuei, Keng Ching e Shang Chih-hsin tivessem sido convocados para audiências regulares e devidamente atemorizados. Os oficiais da fronteiras tendem a obedecer apenas aos seus próprios comandantes, reconhecendo-os como quem governa”.

A guerra durará até 1681, mesmo para além da morte de Wu San-kuei, que ocorreu em 1678. Só depois de liquidadas todas as erupções de autonomia a sul do Yangtse, se pode falar de um regime Qing, centralizado, equilibrado, que dará origem a um longo período de estabilidade interna.

 

Do outro lado do estreito

Para completar o puzzle — sobretudo para controlar a costa chinesa infestada de piratas — urgia conquistar Taiwan ao rebelde Coxinga. Empurrado para fora do continente chinês em 1661, Coxinga atacou os Holandeses em Taiwan, com uma armada de novecentos barcos e vinte cinco mil homens, ocupando a ilha e expulsando os estrangeiros. A partir daí desenvolveu as suas actividades, controlando recursos importantes.

A mistura explosiva de pirataria e comércio ao longo da costa chinesa atingiu tais proporções que levou a corte a decretar, em 1662, o encerramento de todas as actividades costeiras de Shandong a Guangdong. Os habitantes deviam ser evacuados, à força se necessário, o que provocou grande consternação. Pensavam assim diminuir o poder de Coxinga e cortar-lhe as principais fontes de rendimento.

O rebelde morreu em 1662, mas o filho que lhe sucedeu no trono imediatamente apoiou a revolta do governador de Fujian, quando da Guerra San-Fan, continuando a criar problemas nas orlas costeiras.

Finalmente, depois da vitória na Guerra San-Fan, havia disponibilidade para pensar em Taiwan. Vale a pena ouvir o próprio imperador sobre os dilemas da expedição de 1683:

“De novo me avisaram a não nomear o Almirante Shih Lang para liderar a campanha contra Taiwan por ter servido antes a Dinastia Ming e também a soldo do rebelde Coxinga e, logo, poder revoltar-se ele próprio se lhe desse navios e tropas. Mas uma vez que os restantes almirantes Chineses asseguravam que Taiwan nunca seria tomada, chamei Shih Lang para uma audiência e disse-lhe pessoalmente: ‘Na corte dizem que vos revoltarás quando chegares a Taiwan. É minha opinião que enquanto não fores enviado a Taiwan a ilha não será pacificada. Não te revoltarás, garanto-te.’ Shih Lang capturou Taiwan num ápice e provou ser um oficial leal. Mesmo desprovido de instrução e arrogante, compensam-no as suas ferozes capacidades militares e os seus dois filhos têm-me servido com distinção”.

 

O fim dos conflitos

As guerras terminavam e havia tempo para construir a paz mas, curiosamente, o imperador continuava a interrogar-se e a sentir-se culpado pela sua decisão abrupta, que precipitara o conflito:

“Tinham decorrido oito anos de amarga guerra e, apesar da paz ter chegado, as feridas estavam por cicatrizar. Eu recusei, e continuei a recusar, todos os pedidos para que me fossem atribuídos novos títulos honoríficos de vencedor porque esta guerra resultara dos meus próprios erros de cálculo e a responsabilidade pelo sucedido – por tudo o que sucedeu – era minha. Nunca esperei que Wu San-kuei se revoltasse em 1673 quando aceitei os seus pedidos de reforma. Nunca esperei que tantos seguissem Wu quando de facto se revoltou.”

O jovem Kangxi aprendia sobre os trabalhos da Espada, sobre a sua acção terrível ou sobre o seu poder regenerador. A Espada tanto mata na Guerra como cura na Paz. Como o grande rei Wu, da dinastia Zhou, parecia ter o Mandato do Céu para usar a força e a estratégia militar para dominar as revoltas internas e expandir as fronteiras do império. Agora a tarefa parecia terminada.Unificado o território, a atenção do imperador recai na administração do Estado. Seguiam-se os trabalhos do Livro.

 

Do conhecimento e da seriedade

Quando os antigos desejaram difundir a virtude pelo Reino, cuidaram primeiro de ordenar os seus próprios estados. Desejando a boa ordem dos seus estados, primeiro ordenaram as suas próprias famílias. Desejando ordenar as suas famílias, cultivaram-se primeiro a si próprios. Desejando cultivar-se a si próprios, rectificaram primeiro os seus corações. Desejando rectificar os seus corações, procuraram primeiro o pensar sincero. Desejando um pensar sincero, ampliaram ao máximo o seu conhecimento. Tal ampliar do conhecimento reside na investigação das coisas.

Estudo Maior

 

Este parágrafo, atribuído a Confúcio, denota bem da importância prestada pelo filósofo à necessidade de conhecer e de como o conhecimento deve ser um dos objectivos principais dos governantes. Este imperativo foi seguido de muito perto pelo imperador Kangxi, sobretudo através da influência que nele exerceram as obras do filósofo confuciano Zhu Xi (1130-1200), cujo pensamento se tornou numa espécie de ortodoxia oficial do regime.

Um conceito de Zhu Xi agradava particularmente ao imperador: o respeito pela seriedade. Mas, enquanto o filósofo da dinastia Song o aplicava fundamentalmente a um estado mental do indivíduo, o imperador entendia que devia ser alargado ao domínio do político, isto é, aplicado na prática quotidiana. Daí que tenha criticado com ardor os letrados que não conseguiam conciliar doutrina e acção. O imperador considerava que o conceito de seriedade era o mais elevado princípio da prática política. A sua devoção a Zhu Xi era tal que mandou compilar as suas obras completas, confessando depois que o tinha feito por sentir uma extrema admiração pela vida e obra do filósofo. Um pormenor da pedagogia de Zhu Xi agradava particularmente ao imperador: o facto de sublinhar a importância da aquisição de conhecimentos através dos livros.

 

Da importância da leitura

Desde a infância que Kangxi se mostrara apreciador da leitura e da discussão dos grandes temas do saber chinês. Aos oito anos, interrogava a sua entourage sobre as interpretações dos clássicos confucianos “Estudo Maior” (Da Xue) e de “Prática do Meio” (Zhong Yong). Mostrava interesse e preocupação em perceber a fundo os textos e não apenas cumprir o dever da leitura.

Outro facto que reforça esta ideia é a importância atribuída por Kangxi ao ching-yen, uma instituição da corte imperial que consistia em palestras conduzidas por letrados cuidadosamente escolhidos sobre os mesmos clássicos. O imperador, não somente as impunha numa base diária (ao contrário de outros imperadores que as evitavam como maçadoras), como as marcou para as primeiras horas da madrugada, isto é, antes da sua habitual audiência. Findos os deveres de Estado, retomava as discussões que só abandonava quando tinha a certeza de tudo ter correctamente compreendido. Estas palestras não eram suspensas, nem no seu aniversário nem durante as suas expedições.

 

O ideal de governação

Esta preocupação derivava da crença segundo a qual a aprendizagem e a aquisição de conhecimentos estão na origem de toda a sabedoria e que esta é indispensável ao governante. Os imperadores sábios Yao e Shun são os modelos seguidos por Kangxi que deles afirma ser “o sucesso da sua governação não mais que o resultado da sua sabedoria”. Ora esta sabedoria não podia advir que do “método de desenvolvimento da mente” (xin-fa), o que num sentido alargado se refere ao conhecimento da mente e da natureza como um todo, ou seja, ao conhecimento do Dao (Via), algo que só pode ser compreendido pela própria mente.

Pode ser atribuída a Kangxi uma certa obsessão pelo conceito de governante ideal. Este será aquele que consegue conjugar a tradição da governação com a tradição do Dao, tal como Yao e Shun. Aliás, este tinha sido um desejo há muito acalentado pelos letrados confucianos, que no duque de Zhou viam a sua última realização. Para estes homens o único problema que agora se levantava era o facto de Kangxi ser manchú, o que de certo modo era contraditório com a expectativa do regresso ao poder dos Han. O filósofo Li Fu (1675-1750) sente esta mesma contradição e resolve-a com a seguinte pergunta: “Os imperadores sábios Yao e Shun não vieram também de terras bárbaras?” Parece que a determinação de Kangxi em juntar na sua pessoa a tradição da governação com a tradição do Dao, juntamente com a sua grande preocupação pelo estudo e observação dos ideais de Confúcio, convenceram os letrados chineses da sua época que estavam perante uma nova idade de ouro.

O imperador criou, em 1686, o Átrio da Transmissão de Sabedoria, um espaço destinado ao estudo e veneração de sábios como Confúcio, Mêncio e dos nove sábios imperadores, isto é, Fu Xi, Sheng Nung, Hsuan Yuan, Yao, Shun, Yu, Tang, Wen e Wu. Assim praticava o que já antes teorizara: a tradição da governação só podia ganhar legitimidade através da tradição do Dao.

O próprio Kangxi escreveria: “Penso que a razão pela qual o Céu gera sábios é para os tornar governantes e educadores do povo. A tradição da governação esteve sempre ligada à transmissão da tradição do Dao. Confúcio, Zeng Zi, Xun Zi e Mêncio nasceram depois dos imperadores sábios Yao, Shun, Yu e Tang e depois dos reis sábios Wen e Wu”.

 

Da autocracia

Contudo, como em tudo na vida, existe sempre o reverso da medalha. É que a separação entre a tradição da governação e a tradição do Dao, bem como o desinteresse dos imperadores por esta última, permitira que o seu desenvolvimento se tivesse feito de forma relativamente independente do próprio poder. Agora, com Kangxi, esta independência via-se algo ameaçada.

Ao absorver a tradição do Dao, o governante pouco espaço deixava aos letrados confucianos para que estes, de algum modo, como tinham feito no tempo dos Song e dos Ming, se opusessem ao poder político. Este aspecto surge muito claramente na crítica feita aos letrados daquelas dinastias, segundo a qual a separação das duas tradições esvaziara o pensamento de uma aplicação prática. Indo mesmo mais longe, o filósofo Fei Mi (1625-1701) preconizava que só o detentor do poder poderia transmitir a tradição do Dao. Se assim não fosse então tornava-se numa metafísica inútil e sem aplicação concreta. Compreende-se que ficam então lançadas as fundações de Estado autocrático em que poder e saber encontram a sua expressão máxima na pessoa do Soberano.

Kangxi criou uma inquisição literária, mas que sempre se mostrou bastante moderada, se a compararmos a outras épocas da história da China. Sobre a sua acção punitiva dos letrados que o hostilizavam, escreveu o imperador:

“E ainda assim, durante todo o meu reinado apenas mandei executar um académico por escritos sediciosos, o que foi o caso de Dai Mingshi (戴名世). Não só havia escrito e publicado trabalhos estranhos e impertinentes enquanto estudante como mantinha ligações com a família Fang, que em tempos havia colaborado com o rebelde Wu Sangui. Ao entrar para a Academia de Hanlin recusara-se a queimar os blocos dos seus trabalhos anteriores. No seu livro Nanshan Ji, Dai Mingshi publicara os títulos de nobreza dos três pretendentes Ming que haviam prosseguido a luta depois dos Manchú terem fundado a nova dinastia. Defendia que, se seguíssemos os princípios historiográficos de Confúcio, o reino de Hung-kuang em Nanquim e o reino de Lung-wu em Fukien, e o reino de Yung-li, primeiro em Kwangtung e depois em Yunnan e Kweichow, deveriam ser todos adequadamente registados. Afirmava que o nosso governo tinha imposto a censura, que as pessoas encaravam o tema da queda dos Ming como um assunto proibido, que as provas acerca da conquista estavam a ser gradualmente destruídas e adulteradas. Afirmava haver toda a espécie de livros do seu conhecimento que não haviam sido entregues à Corte – mesmo títulos que o Gabinete de História havia abertamente manifestado interesse em adquirir – e que sabia de trabalhos por académicos reformados que tinha sido mantidos em segredo. O Conselho de Castigos recomendou que Dai Minshi fosse submetido à pena de morte lenta, que todos os seus conhecidos acima de dezasseis anos fossem executados, e todos os parentes do sexo feminino juntamente com as crianças fossem escravizados. No entanto, fui misericordioso reduzindo a pena para decapitação e poupando os seus parentes”.

É verdade que, ao contrário dos seus antecessores e predecessores, Kangxi foi extremamente benevolente mesmo para os letrados que se recusavam a aceitar o domínio Qing.

 

As Grandes Enciclopédias

A sua paixão pelos livros levou-o a promover a edição de vários clássicos da cultura chinesa. Mas a sua acção mais importante foi a encomenda de várias enciclopédias que se tornaram no maior repositório de sempre da cultura chinesa tradicional, desde então até aos nossos dias. Sem este trabalho ciclópico certamente que muito do saber Han se teria perdido para sempre.

A mais extraordinária destas enciclopédias, a Gujin Tushu jicheng (Coleçção Completa de Escritos e Ilustrações do Passado e do Presente), foi encomendada a Chen Menglei, que tinha sido um opositor dos Qing. Só viria a ser publicada em 1726, já no reinado de Yongzhen, que baniu o compilador em 1723, quando da sua subida ao trono.

A Gujin Tushu jicheng é composta por seis divisões principais, 32 subdivisões e compreende 6109 secções. Cada uma destas secções encontra-se, por sua vez, ordenada em oito tipo de escritos ou fontes literárias: citações de fontes clássicas, ordenadas cronologicamente, quando datáveis, ou na ordem tradicional de clássicos, historiadores, filósofos e literatos; comentários de natureza ortodoxa destes quatro géneros literários; biografias; composições literárias; frases seleccionadas pelo seu valor literário; relatos factuais ou anedóticos de menor importância; citações variadas; e, finalmente, materiais menos ortodoxos como ficções e citações de fontes taoístas e budistas. As suas seis principais divisões referem-se, por ordem de importância a relações humanas, geografia, economia política, artes e ciências, literatura e fenómenos celestes. As subdivisões são extensas e abrangem praticamente todas as vertentes do saber humano.

Para dar uma ideia da sua dimensão podemos citar a Encyclopaedia Sinica, de Samuel Couling, que em 1917 lhe atribuía uma dimensão quatro vezes superior à da Enciclopédia Britânica. Segundo a mesma fonte, somente o British Museum possui uma edição completa, em 745 volumes, certamente sonegada no século XIX. Ao todo, a Tushu jicheng tem cerca de cem milhões de caracteres, tendo sido considerada já na segunda metade do século XX como a maior e mais útil enciclopédia alguma vez compilada na China.

Para além deste trabalho monumental, Kangxi ordenou ainda a produção de várias colecções literárias, de ensaios, de frases célebres ou de grandes autores, dicionários, etc. A sua contribuição para a preservação e dinamismo da cultura chinesa é fundamental e incalculável.

 

Homenagem a Confúcio

Chegado ao Lu de Leste,
ascendo ao átrio do Mestre,
presto libações entre as duas colunas.
Cruzando a altíssima parede,
encontro o profundo ensinamento do Mestre,
que perpetua a tradição da Via de Yao e Shun
e como os rios Chu e Ssu se estende.
Na floresta toco os leves pinheiros e abetos.
Solenemente me curvo.

Kangxi
in Kung Shang-jen, Memória sobre a visita do imperador Kangxi ao templo de Confúcio

 

Kangxi visitou Qufu, a cidade de Confúcio, em 1684. Esta visita revestiu-se de um imenso significado, porque constitui o momento em que o imperador definitivamente demonstrou o seu apreço e respeito pelo Venerável Mestre. Mas, mais que o homem, Kangxi homenageava as ideias e princípios que eram os fundamentos da cultura Han e que haviam de nortear todo o seu reinado.

Mal chegou ao templo de Confúcio, o imperador desceu da sua liteira e entrou a pé no átrio principal. Nessa entrada, terá escrito que “Imperador ou homem do povo todos aqui desmontam do seu cavalo”. Aí inaugurou uma nova versão do ritual normalmente executado pelos governantes: “ajoelhou-se três vezes e curvou-se nove, em vez de se ajoelhar duas vezes e se curvar seis”, relata o descendente da família de Confúcio, Kong Shangren. Nunca um imperador prestara ao Sábio uma tão reverente homenagem. Este facto impressionou grandemente a família Kong.

Ao contrário de outros imperadores, que doavam ao templo objectos de prata ou de ouro, Kangxi doou o seu pára-sol dourado e escreveu em louvor a Confúcio uma tábua onde se pode ler: “Mestre de Dez Mil Gerações”. O seu objectivo, segundo ele mesmo confessou, era valorizar significativamente os ritos de homenagem a Confúcio. Neste aspecto o comportamento de Kangxi afastava-se significativamente do de outros imperadores que o precederam. Na verdade, foi quase sempre algo tensa a relação entre os detentores do poder e os ensinamentos e a própria família do Venerável Mestre. A começar por Qin Shi Huang, o fundador da dinastia Qin (221-206 a.C.), que mandou queimar todos os clássicos confucianos. Os livros só se salvaram porque foram escondidos por um dos membros da nona geração da família na Parede Lu, hoje situada em pleno templo, exactamente no local onde dantes ficava a casa de Confúcio. Já na dinastia Ming, mais concretamente em 1372, o fundador Ming Tai-tzu proibiu a realização dos sacrifícios da Primavera e do Outono nos templos confucianos, à excepção do templo de Qufu. Assim tentava reduzir o culto do Mestre e o seu simbolismo a um local específico, enquanto o seu próprio poder se estendia universal. No entanto, esta proibição não durou mais que dez anos.

É preciso compreender o extremo poder e influência que a família de Confúcio exerceu sempre na China. A cidade de Qufu constituía um Estado dentro do próprio Estado, no qual se cobrava uma taxa específica destinada à família Kong. Ainda hoje, já na septuagésima sexta geração, é talvez a mais antiga família do mundo, na medida em que pode estabelecer a sua linhagem directa até ao ano 550 a.E.C.. Todos os imperadores sentiam a necessidade de ser reconhecidos pelos Kong como meio de legitimar o seu poder. Este facto era ainda mais verdadeiro para os fundadores das dinastias. Kangxi não foi excepção mas excepcional foi sem dúvida o seu comportamento e o reconhecimento dos Kong. Basta comparar dois tipos de tratamento.

No ano 85 o imperador Han Changdi visitou Qufu. Depois de cumprir os ritos perguntou a um descendente de Confúcio “a minha visita glorifica o vosso clã, não é verdade?”, ao que este respondeu “aprendemos que nenhum dos nossos sábios governantes deixou de respeitar o Mestre e os seus ensinamentos. A visita de Vossa Majestade a este lugar é uma manifestação de reverência pelo Mestre e sem dúvida que aumentará a vossa virtude. Quanto à glorificação do nosso clã, não nos atrevemos a aceitar tal honra”. Changdi riu-se e comentou: “Só um descendente do Sábio poderia formular uma tão boa resposta”.

Quando em 1684 Kangxi dirigiu algumas perguntas a Kong Shanren sobre a conservação do templo este respondeu: “A maior parte das relíquias do Sábio encontram-se em ruínas. Não são merecedoras do olhar e atenção de Vossa Majestade. No entanto, depois de as olhardes, todas as coisas do templo se tornarão instantaneamente preciosas e magníficas”. Compreende-se a diferença das respostas: a visita imperial conferiu ao imperador Han um acréscimo de virtude, enquanto a visita de Kangxi conferia glória ao próprio templo.

De notar ainda a visita de Kangxi a Qufu ocorre exactamente um ano depois de ter assegurado a integridade do território com a conquista de Taiwan. Chegara o tempo de mostrar aos chineses que estavam no limiar de um período que se pretendia pacífico e de desenvolvimento. A ida a Qufu acontece no regresso da sua primeira viagem ao Sul, ou seja, depois de ter estado em Suzhou e Nanjing. Na antiga capital, Kangxi realizou um sacrifício no túmulo de Taizi, o fundador da dinastia Ming, o que muito surpreendeu os oficiais locais.

Mas em Suzhou ocorreu um facto ainda mais espantoso: quando da visita a um templo budista, um grupo de monges recebeu o imperador com música; este pegou num instrumento e participou no entretenimento da multidão. O povo extremamente espantado irrompeu em vivas ao imperador, que lhes retribuiu os seus cumprimentos.

Aliás, Mêncio refere no seu livro (Livro I, Parte B) que “se partilhares os teus divertimentos com o povo, então serás um verdadeiro Rei”. Compreende-se que Kangxi, com somente trinta anos, conhecia profundamente os ditames confucionistas e, nomeadamente, a importância que o Venerável Mestre dava ao domínio da música. O imperador recorria ao simbolismo confuciano para legitimar a sua dinastia e a si próprio, exibindo uma extraordinária percepção da cultura Han, se bem que, na realidade nunca tenha perdido a sua identidade manchu. Ao sacrificar junto ao túmulo de Taizi, demonstrava ser herdeiro da tradição da governação, ao reverenciar como nenhum outro Confúcio, assumia-se como herdeiro da tradição da Via.

O sucesso da presença de Kangxi em Qufu tem como consequências por um lado, o reconhecimento por parte de um governante de origem bárbara da importância do Grande Mestre e da sua absorção da cultura Han, e por outro, a união na pessoa do imperador das duas tradições normalmente separadas, a tradição da Via e a tradição da governação, o que fez de Kangxi o soberano-sábio, há muito esperado por todos os letrados confucianos. Tal como aconteceu quando a mãe de Confúcio se encontrava grávida do Sábio, era tempo de surgir um unicórnio, o animal mítico cuja aparição anuncia a chegada de um sábio governante.

 


O corvo e as origens mitológicas do povo manchu

Há muito, muito, tempo três irmãs levavam uma vida muito aprazível e confortável no Palácio Celestial. No entanto, sentiam-se muito sozinhas. Um dia que os pais tinham saído do palácio, a mais nova, de seu nome Fu Kulun, disse às outras duas: “Minhas irmãs, os nossos queridos e reais progenitores deixaram-nos aqui para participarem nas Festividades do Pêssego. Porque havemos nós de ficar para aqui abandonadas? E se também saíssemos?”

As outras duas apressaram-se a concordar. Rapidamente mudaram de roupa e saíram do Palácio Celestial, montando nas nuvens e deslizando pela neblina. Estavam muito felizes com a beleza de tudo quanto viam à sua volta. Em breve passavam por cima de uma cadeia de montanhas cobertas de neve, tão resplandecentes que elas tinham dificuldade em manter os olhos abertos. Entre dois picos luzia um enorme lago, de água muito azul, que reflectia o céu como um espelho.

As três irmãs nunca tinham visto nada que se assemelhasse e muito excitadas não resistiram a banhar-se naquelas águas puras. “Qual é o nome deste lugar e como vamos encontrá-lo da próxima vez que aqui quisermos voltar?”, perguntou a segunda irmã não cabendo em si de alegria.

“Vamos dar-lhes um nome”, respondeu a mais velha, “reparem na neve das montanhas, tão branca. Vamos chamar-lhes Chang Bei Shan (Montanhas da Brancura Eterna) e já que nós vimos do Céu e nos banhámos neste lago vamos por-lhe o nome de Tian Chi (Piscina Celestial). O que pensam disto?” As outras concordaram alegremente e, desde então, as montanhas e o lago são conhecidos por estes nomes.

Entretanto, a irmã mais nova começou a sentir-se cansada e com fome, talvez por ter nadado demasiado. Quando procurava algo para comer, viu um grande pássaro negro que voava na sua direcção com um fruto vermelho no bico. Quando passou por cima dela, o pássaro emitiu um grasnido muito agudo e nesse momento deixou cair o fruto no vestido da rapariga que ainda se encontrava pelo chão. Esta deu uma pequena corrida e apanhou-o. Cheirava deliciosamente. Primeiro, mordeu-o com algum temor, mas depois, devido ao seu sabor inebriante, comeu-o o mais depressa que pôde. Quase em seguida sentiu-se pesada e muito quente. Em breve experimentou uma grande ternura pelo mundo humano e um estranho desinteresse pelo mundo celestial, que lhe surgia agora muito distante e sem importância. “Irmã, veste-te depressa que temos de voltar ao nosso palácio”, disse-lhe a mais velha, arrancando-a aos seus devaneios. Mas ela respondeu que não tinha o menor desejo de voltar a casa.

As outras duas irmãs ficaram espantadas e advertiram-na de que se não voltasse o pai ia ficar muito zangado. “Minhas irmãs, percebi que as minhas raízes são aqui e aqui pertenço. Este lugar pode-me dar tudo aquilo de que preciso. Não me interessa se nosso pai ficar zangado”. “Mas o que é que te fez ter essa opinião? É, de facto, surpreendente”, retorquiu a irmão do meio. A outra não respondeu, mas abanou a cabeça em silêncio. Só depois de muito instada pelas irmãs é que lhes contou a história do fruto e confessou-lhes que tinha a sensação de estar grávida.

As irmãs ficaram aborrecidas com a história e compreenderam que ela não tinha outra alternativa senão permanecer no mundo dos humanos. Mas como poderia sobreviver sozinha naquelas montanhas longínquas?

Subiram ao cimo de um pico e viram do outro lado, para além de uma densa floresta, campos de trigo, carneiros, porcos e muito peixe no rio. Assim decidiram levá-la para um campo perto das montanhas onde lhe construíram uma casa numa árvore. Logo que tudo ficou preparado, as duas irmãs mais velhas despediram-se em grande pranto.

O tempo passou e Fu Kulun deu à luz um rapaz. Este era estranhamente forte e, pouco tempo depois de nascer, já sabia falar. Passados alguns anos transformou-se num belo rapaz, muito habilidoso na caça e na pesca. A sua mãe deu o nome manchu de Aisin Gioro Bukuli Yongshun  e explicou-lhe que estava fadado pelo deuses a pôr em ordem o mundo.

Em seguida, ela arranjou-lhe um pequeno barco e mandou-o rio abaixo, para que encontrasse o seu próprio caminho, e desapareceu. O rapaz, mal se viu sozinho, seguiu as instruções da mãe e desceu a correnteza até chegar a um local onde construiu um abrigo com ramos de salgueiro e um colchão com as folhas inebriantes do absinto.

Nesse tempo existiam três tribos que disputavam a terra, lutando ferozmente entre si. Um dia alguém foi buscar água ao rio e deparou com Yongshun. Quando voltou à aldeia contou o seu encontro aos chefes. Os chefes foram à sua procura e assim conheceram esse rapaz tão estranho mas de fisionomia agradável. Ele era tão forte e inteligente que as três tribos resolveram cessar os seus combates e nomeá-lo seu chefe. E assim Yongshun tornou-se no primeiro antepassado dos Manchus, cujos descendentes são, por isso, excelentes caçadores e pescadores. Os carneiros, os porcos e o trigo que a sua mãe vira do cimo da Montanha da Brancura Eterna tornaram-se nos seus meios de subsistência, geração após geração.

A pesca e a caça contribuíram para formar o carácter duro e corajoso dos Manchus, mas também os tornaram gente impiedosa. Anos mais tarde, quando as tribos já não podiam suportar mais os desvarios dos descendentes de Yongshun, revoltaram-se e a sua vingança foi brutal.

A revolta e outras que seguiram deixaram apenas um rapaz manchu vivo que se lançou numa fuga desesperada, perseguido por tropas a cavalo. Numa curva da estrada, o rapaz tentou esconder-se, mas os seus inimigos estavam muito perto. Quando estes estavam prestes a chegar, um enorme corvo desceu dos céus e escondeu-o sob as suas gigantescas asas. Os soldados passaram e não o descobriram. O rapaz salvou-se e com o tempo recuperou o seu poder e prosperidade. Desde então, os Manchus têm grande respeito ao Corvo e prestam-lhe homenagem, porque foi ele, esse grande pássaro negro, que salvou o seu antepassado.

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