Os talismãs fu

O que são e para que servem

A concepção e escrita de talismãs ou sigilos fu () é parte inalienável da prática do taoísmo, tendo acabado por ser também incorporada no budismo chinês. A divisão do taoísmo entre uma tendência exotérica ou filosófica (道家daojia) e uma tendência esotérica dedicada à religião, ao ocultismo e à magia (道教 daojiao) é problemática e artificial e utilizarei aqui apenas o termo taoísmo. Ressalvo, no entanto, que o utilizarei com relutância devido ao travo orientalista, dado que o prefixo “–ismo” está associado às ideologias ocidentais e não corresponde aos termos chineses. Mas encontra-se já bastante enraizado na língua portuguesa e a discussão acerca da sua justeza está fora do âmbito deste artigo.

Quem alguma vez pousou os olhos em talismãs fu não mais os pode esquecer. Fazendo prova de toda a criatividade e singularidade da cultura visual taoísta, deles emana como que um poder desconhecido e são de uma beleza estranha e extraordinariamente intrigante.

Os talismãs fu são textos/imagens (não fazendo sentido, na maioria dos casos, estabelecer uma distinção entre ambas), de cariz sagrado e apotropaico fundamentalmente ilegíveis. São talismãs considerados sagrados porque se acredita criarem canais de comunicação com o mundo das divindades e dos fantasmas. Esses canais podem ser abertos porque os talismãs fu revelam e manifestam o verdadeiro nome (真名zhenming) e a verdadeira forma (真形zhenxing) das entidades invisíveis. Os nomes e formas divinos verdadeiros não coincidem, naturalmente, com os nomes e formas em vigor na Terra. Por isso, são inscritos com escritas celestes (天书tianshu), isto é, escritas ilegíveis cujos protótipos celestes, acessíveis apenas às divindades superiores, manifestam os padrões do Sopro primordial (元气yuan qi) gerador de tudo quanto existe.

No Daozang (道藏, Cânone do Dao) cuja reimpressão completa mais antiga que sobreviveu até hoje data de 1598, podem observar-se com frequência diversas escritas celestes ilegíveis, como a 神书shenshu, “escrita dos espíritos”, também designada por “escrita sigilográfica das nuvens”; a 地书 dishu, “escrita da terra”, com imagens de dragões e fénixes; a  内书 neishu, “escrita interior”, como saliva de tartaruga, dragões, peixes e pássaros; a 外书 waishu, “escrita exterior”, como a que se vê em escamas de peixes e répteis, conchas, penas e pelo; a 鬼书 guishu, “escrita fantasma”, inteligível só para seres não humanos e que se encontra nos cadáveres de gente maléfica que foi atingida por um raio; e a 戎夷书 rongyishu, com insectos e animais.

As divindades superiores transmitem estas escritas a divindades menores que, por sua vez, as revelam sob uma forma já deteriorada a certos humanos iniciados. Assim, o facto de os talismãs fu serem total ou parcialmente ilegíveis é sinal da sua proveniência divina. Ora, como provêm da elite divina, devem permanecer associados a uma elite terrestre. Destinam-se a ser compreendidos apenas pelos Imortais ou por aqueles que atingiram um nível espiritual superior. Permanecem herméticos apenas para quem não é divino ou não foi iniciado na comunicação com as divindades. Ainda que, por vezes, os talismãs fu integrem alguns caracteres reconhecíveis, só devem ser entendidos por mediadores espirituais reconhecidos, visto transmitirem conhecimento que não pode ser revelado publicamente.

Os talismãs fu e as suas escritas celestes são não só revelações e manifestações das forças invisíveis subjacentes à realidade como são também veículos que permitem ao iniciado agir sobre essas forças. Habilitam à manipulação de energias que religam e circulam entre o céu, a terra e o homem, no sentido de restabelecer o equilíbrio de todo o universo ou de um paciente em particular, possibilitando-lhe a obtenção de saúde, riqueza, felicidade ou estatuto. Recorre-se também aos talismãs fu, portanto, devido ao seu poder apotropaico, tendo em vista melhorar a vida humana, por exemplo, influenciando forças da natureza (evocar a chuva, parar inundações), praticar exorcismos (esconjurar espíritos, convocar demónios, dominar fantasmas), conseguir curas doenças e, sendo estas interpretadas como possessões demoníacas, retirar demónios do corpo de um paciente (收妖, shouyao), atrair protecção (acabar com a má sorte, evitar a pobreza), ou ainda para finalidades mais mundanas (atrair fama, fortuna, amor, engravidar, facilitar partos).

Os talismãs fu podem ser usados como emblemas e amuletos ou ser pendurados nas paredes e inscritos em estandartes. Outros destinam-se a ser queimados, as cinzas sendo espalhadas ou misturadas com água e esfregadas no corpo e no rosto, ou ainda ingeridos, o que sucede sobretudo no caso em que se pretende curar uma doença.

 

A história

Do ponto de vista da história mítica, o conjunto dos Cinco Talismãs de Lingbao é considerado o arquétipo das escritas celestes. Foi aos Cinco Talismãs de Lingbao que Yu, o Grande (大禹da Yu), recorreu para instalar a ordem no mundo. Mais tarde, o Rei de Yue utilizou-os como insígnias valiosas e acabaram por penetrar no taoísmo como o talismã da Verdadeira Forma das Cinco Montanhas Sagradas.

Do ponto de vista da história factual, existem provas textuais de que já se elaboravam talismãs fu no Período dos Reinos Combatentes (475-221 a. C.) da dinastia Zhou, pois foi então que o taoísmo se apropriou dessa prática xamânica. As raízes destes talismãs são, portanto, ainda mais antigas e encontram-se nas inscrições em carapaças e ossos oraculares, a forma mais arcaica de comunicação com os espíritos praticada pelos xamãs do neolítico, entre 10 000 e 2000 a. C.

O significado original do caracter fu era “etiqueta, rótulo, emblema” e designava um objecto, geralmente em forma de dragão, peixe ou tigre, que era dividido ao meio e apresentava inscrições no verso. Cada metade era guardada por duas partes distintas como garantia de um acordo. Depois, este ritual de lealdade “cumprir o contrato” (合符, hefu), anterior à dinastia Han (206 a.C. até 220 d.C.), passou a designar no interior do taoísmo a comunicação que se estabelecia através de talismãs entre os adeptos e as divindades, os espíritos, os demónios e os fantasmas.

Na dinastia Han, o mundo sobrenatural era concebido como uma burocracia estruturada de forma hierárquica. Essa burocracia celeste servia de modelo para o estado terrestre. Como tanto os cultos imperiais como os cultos taoístas compartilhavam essa concepção, acreditava-se que os governantes terrestres deviam fazer cumprir as ordens dos governantes celestes. Além disso, através da posse de diagramas (tu) cósmicos e talismãs fu que continham as formas e os nomes verdadeiros dos governantes celestes podiam convocar estes últimos para os ajudar a cumprir e fazer cumprir ordens. A posse de diagramas cósmicos e de talismãs fu confirmava a aprovação divina de um mandato para governar, não havendo separação total, portanto, entre a autoridade espiritual e a autoridade temporal. Os diagramas cósmicos e os talismãs fu estavam intimamente associados, não só ao exercício do poder celeste como ao exercício do poder terrestre, este sendo sancionado por aquele. A associação entre a legitimidade imperial e os diagramas cósmicos e os talismãs fu levou a que, por vezes, o estado interviesse no sentido de controlar a sua posse, desse modo confinando a relação privilegiada com as divindades apenas aos mais altos governantes.  Quando os adeptos do budismo, religião estrangeira que chegou à China pelo menos no primeiro século a.C., perceberam que através dessa posse se recebia legitimidade e autoridade política e espiritual para governar e que conquistariam mais depressa o coração dos chineses recorrendo a uma simbologia que estes já dominavam, também acabaram por adoptar os talismãs fu e os diagramas cósmicos, após tentarem em vão desacreditá-los.

A primeira corrente taoísta organizada que começou a criar talismãs fu foi a Tianshi (天师派), fundada por Zhang Daoling em 142 d.C., na dinastia Han. Por tradição, é a Zhang Daoling que se atribui o mérito da criação dos primeiros talismãs fu.  A segunda corrente foi a de Mao Shan (茅山派), a montanha Mao, onde religiões populares se fundiam com o budismo Mahayana. Na dinastia Jin (265 d.C.-420 d.C.), foi fundada a corrente Ling Bao (灵宝派) um sincretismo de taoísmo e budismo muito devotado à magia relacionada com o infra-mundo e com fantasmas famintos (饿鬼 e gui). Na mesma dinastia, Wei Huancun fundou a corrente Shang Qing (上清). Na dinastia Han e na dinastia Jin, as práticas mágicas do taoísmo eram executadas sobretudo pela elite aristocrática.

A corrente Zheng Yi (正一派) surgiu na dinastia Tang (618-906 d.C.) e começou a vender os seus talismãs fu. De modo a salvaguardar a sua autenticidade, compuseram em simultâneo o lu (), o registo e descrição pormenorizada das divindades, dos espíritos e das entidades acreditados pelo taoísmo, assim como os métodos apropriados para os invocar e exaltar, entre eles a elaboração de talismãs fu. Aqueles que recebiam a iniciação em escritas sagradas passavam por vários estágios de preparação, um dos quais era receber o lu por ordem do mestre, para além de uma colecção de novos preceitos morais exigidos pela posição que acabavam de atingir. A partir de então, o prestígio de um praticante passou a ser medido pelo seu grau de domínio do lu

Da dinastia Tang em diante emergiu todo um conjunto heteróclito de correntes e tradições de magia no seio do taoísmo. Na dinastia Song (960-1279) surgiram os Rituais do Trovão (雷法leifa), que veneravam Lei Gong, o Deus do Trovão. Supunha-se que o praticante se tornava, através desses rituais, num veículo para a manifestação da energia do trovão. Com eles se provocava chuva, se curavam males e se praticavam exorcismos. Os Rituais do Trovão eram considerados como uma das mais elevadas práticas mágicas e vieram a generalizar-se por todo o taoísmo (ver Figura 8). Acredita-se que a escrita celeste associada, a “escrita trovão”, 雷书 leishu, manifesta o poder do trovão.

Xiao Baozhen fundou em 1138 a corrente Taiyi Dao (太一道), na qual se encontravam elementos confucionistas e budistas, para além de taoístas, e que terá provavelmente emergido da corrente Zheng Yi, dado compartilharem muitas semelhanças. Xiao Baozhen era conhecido como um criador de talismãs fu especialmente poderosos. Em 1142, emergiu a corrente Zhen Da Dao (真大道), fortemente influenciada pela ética budista e que dava primazia à oração e não à magia para curar e praticar exorcismos. A corrente Quan Zhen (全真), de 1167, também colocava a ênfase na ética e na moral. Novas linhagens continuaram a formar-se ao longo do tempo e ainda hoje, no sul da China, em Taiwan e no sudeste asiático, prospera uma grande diversidade de tradições taoístas de magia.

 

A literatura

Entre a dinastia Sui (581 a 618 d.C.) e a dinastia Yuan (1271 a 1368 d.C.), grande parte dos talismãs fu encontrava-se em textos de cariz religioso. Entre os textos taoístas clássicos acerca da criação de talismãs fu conta-se o célebre Baopu Zi (抱朴子, O Mestre que Abraça a Autenticidade), escrito por volta de 317 d.C. por um alquimista de renome, Ge Hong.  A obra divide-se em Capítulos Exteriores e Capítulos Interiores e é nestes últimos que os temas relacionados com a alquimia e a magia são abordados.

Encontram-se aí imagens e descrições de talismãs fu como os que se designam por Cinco Entradas Através das Montanhas, atribuídos ao próprio Ge Hong, que visam oferecer protecção durante as viagens, em especial às Cinco Montanhas Sagradas. Através de uma rede de locais (em especial, montanhas, rios, labirintos e grutas) associados aos Imortais, o taoísmo desenvolveu toda uma geografia sagrada que se inseria num sistema de correspondências com a arquitectura e os seus elementos, assim como com o corpo humano. Era nesses locais sagrados que conduziam a câmaras secretas que se podia deparar com revelações divinas, como talismãs fu e escritas celestes. E a posse de um talismã fu com um diagrama, ou “forma verdadeira” 真形 (zhenxing), de uma montanha sagrada permitia ao praticante deambular por ela através de práticas meditativas.

Os escritos do tio-avô de Ge Hong, um 方士 (fangshi, o termo que entre 300 a.C. e 500 d.C. designava os mágicos, xamãs, adivinhos, exorcistas e alquimistas) do Período dos Três Reinos (222-280 d.C.) de nome Ge Xuan, foram compilados na dinastia Song do Sul num volume intitulado灵宝无量度人上经大法 (Ling Bao Wuliang Du Ren Shang Jing Da Fa, As Escrituras Ling Bao dos Grandes Rituais de Libertação Universal), onde se encontra a descrição da estrutura e activação de um talismã fu para exorcizar demónios. O San Dong Shen Fu Ji (三洞神符记, Registo dos Divinos Talismãs Fu das Três Cavernas), do início do séc. V, é parte do Dao Zang (道藏, o Cânone do Dao). No capítulo intitulado Shen Fu Lei (神符类, Tipos de Talismãs Fu Divinos) encontra-se uma escrita celeste bem conhecida, “a escrita das nuvens”, uma vez que a escrita mágica se deve assemelhar “à condensação das nuvens”. Em 437, foi dado à estampa o San Huang Wen (三皇文, A Escrita dos Três Soberanos), com instruções pormenorizadas acerca da forma de criar talismãs fu. Tornou-se num dos textos fundamentais para a ordenação de monges, visto conter os caracteres celestes de todos os nomes de divindades e demónios do panteão taoísta. Com o tempo, passou a partilhar muitas das características do lu. Outra obra de grande importância é o Huangdi Yin Fu Jing (皇帝阴符经, O Clássico dos Talismãs Fu Ocultos do Imperador Amarelo) porque é nele que se podem encontrar as directrizes, não para a criação de talismãs fu, mas para a maneira de os activar de modo a exercerem magia. A primeira referência conhecida a esta obra data da dinastia Tang (618-907 d. C.) mas poderá eventualmente incorporar fragmentos que remontam à dinastia Zhou (1046-256 a. C.).

 

A cosmovisão subjacente

Não é possível entender os talismãs fu sem dominar a cosmovisão que lhes subjaz e que ficou consolidada na dinastia Han. Essa cosmovisão diz respeito ao Qi ( o Sopro), ao par yin e yang (阴阳), à trindade “céu, terra e homem” (天地人 tian di ren), aos trigramas (八卦bagua) do Yi Jing (易经, Clássico das Mutações), considerados como os blocos fundamentais de tudo quanto existe,  às Cinco Fases (五行 wuxing: Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água) e à numerologia (em especial os “quadrados mágicos” 河图 hetu e 洛书luoshu (ver Figura 11) e astrologia chinesas, além de todo um sistema de correspondências associadas, como as Cinco Direcções (五方 wufang) e os seus Cinco Soberanos (五上帝 wu shangdi), as Cinco Cores (五色 wuse), etc., concebido através de um misto de observação fina da natureza e de pensamento analógico.

De acordo com o Huangdi Yin Fu Jing, e segundo a interpretação de Wen (2016), aquele que pretende praticar a escrita de talismãs fu deve estar ciente de que terá de se alinhar com o céu ou a divindade; terá de conseguir que o universo inteiro se manifeste através da própria mão; terá de entender os sinais do céu que tornam possível desencadear mecanismos capazes de alterar o destino; de saber que poderá manipular céu e terra mas apenas quando estes propiciarem a ocasião adequada e caso os fins almejados sejam pacíficos; e que essa manipulação acontece através das Cinco Fases e através do conhecimento de que os astros e a numerologia se relacionam; que nada disto será possível se desconhece ainda que é uma entidade também espiritual; e que a manipulação de céu e terra só terá lugar quando controlar a sua mente; que se vê mais quando não se escuta e se escuta mais quando não se vê; que o céu não favorece nenhum dos iniciados em especial mas será aquele que melhor controlo mental exercer quem mais beneficiará; que para entender a magia não é necessário entender o céu e a terra, basta entender as mudanças presentes nas quatro estações e nas quatro direcções; que yin e yang se implicam mutuamente;  que do qi emergem os oito trigramas do Yi Jing; e que há que manipular o yang para fazer mover os espíritos, e manipular o yin para fazer mover os fantasmas.

 

A estrutura

O aspecto dos talismãs fu varia de acordo com aquilo que se pretende. Como apresentam inúmeras estruturas diferentes, debruçar-me-ei aqui apenas sobre as mais comuns. Costumam ser inscritos à mão com um pincel de bambu ou de sândalo e a tinta negra, com cinábrio vermelhão, ou com sangue. São inscritos em geral sobre papeis rectangulares, mais longos em altura do que em largura. Tradicionalmente, utilizava-se papel de arroz. Também se pode recorrer a tecidos, como a seda. O papel é, em geral, de cor branca ou amarela, preferencialmente amarelo “imperial”. Mas pode apresentar outras cores, como verde e dourado, caso se pretenda atrair riqueza e sorte. A cor do papel e a cor da tinta têm significados determinados e não podem ser escolhidas aleatoriamente ou por razões puramente estéticas. O vermelho é preponderante porque se acredita ser capaz de extinguir possessões demoníacas e forças malignas. Por tradição, o de maior excelência é o vermelho cinábrio, um dos ingredientes principais do elixir da imortalidade. Existem também talismãs quadrados (ver Figuras 2 a 6) e ainda octogonais e circulares, estes últimos sendo frequentemente feitos em metal (ver Figura 12), pedra ou madeira. Antes da dinastia Han, eram feitos de jade ou bambu. Os ofuda e omamori do Japão descendem directamente dos talismãs fu dos taoístas chineses.

Grande parte dos talismãs fu apresenta uma estrutura que lembra um edifício semelhante a um pagode e é no interior dos seus limites que se encontra inserida a maior parte dos caracteres. No topo vê-se por vezes um “telhado”, um V invertido, cruzes de poder – dois traços horizontais atravessados por um vertical – de cada lado ou três pequenos v no vértice (ver Figuras 13 e 14), que simbolizam a trindade “céu, terra e homem” e ainda os três traços superiores do caracter guang, luz, a Luz Branca sagrada que só o adepto do Dao consegue atingir. Logo abaixo surge amiúde o caracter ou caracteres da divindade ou da força natural invocada como, por exemplo, o Supremo Soberano 上帝 shangdi, o Imperador de Jade 玉皇 yühuang (ver Figura 13), Xuan Wu Shen玄武神, o Enigmático Deus da Guerra, ou Buda, fo.

Os talismãs fu são formados com códigos e escrita sistematizados dos quais fazem parte “escritas celestes” ilegíveis, linhas sinuosas yin ou angulosas yang (ver Figuras 9 e 15), círculos e diagramas, por exemplo, das constelações ou dos trigramas do Yi Jing (ver Figura 16) e sinais que apenas um iniciado conseguirá decifrar.   Cada caracter ou símbolo é entendido como uma realidade orgânica dinâmica e carregada de poder mágico.                                                                     

Também se utilizam caracteres legíveis, mas em geral escritos de forma bizarra e quase indecifrável em 符文 fuwen, a escrita fu, e formados pela multiplicação, abreviação e reconfiguração dos seus elementos. Vê-se também amiúde o mesmo caracter repetido várias vezes, por exemplo, (bing, doença) ou (sha morte), (gu, infestar) (zai, abater) e (po, destruir) para lhes dar ênfase e assinalar a sua importância (ver Figura 17). Lida-se com o sobrenatural, com fantasmas e demónios, daí estes caracteres associados à violência. Os talismãs fu também apresentam ocasionalmente caracteres ou símbolos referentes a insectos, porque um antigo exorcismo contra os demónios implicava fazê-los manifestar como insectos de modo a aprisioná-los depois no interior de um recipiente.

É comum os talismãs fu tomarem ainda de empréstimo algum vocabulário utilizado nos decretos imperiais, como o termo圣旨 (sheng zhi, decreto) e (ling, ordem, mandato), o que remete para os primeiros deles, que representavam decretos celestes. Outro caracter bastante vulgar é gui, fantasma. E ainda o Sol ri e a Lua, yue (ver Figura 18), as estrelas, xing, Órion (em chinês, 参宿, shenxiu, O Local de Descanso das Três Estrelas) e a Ursa Maior (em chinês, 北斗 beidou, A Concha do Norte), de enorme importância na astrologia e na mundivisão chinesas tradicionais. Por vezes, os talismãs fu são dominados por um caracter comoqi, o Sopro (ver Figura 19) ou mo, magia. Utilizam-se muitas vezes linhas curvas e serpenteantes que servem para amplificar a energia circulante do qi. Séries de círculos ou quadrados (ver Figuras 1, 8, 18, 20), amiúde entrelaçados, são amplificadores de energia yin ou yang, respectivamente, e o seu número associa-se ao significado numerológico.

Existem também talismãs fu com a forma dos quadrados mágicos hetu e luoshu (ver Figura 11) ou que são estruturados em quadrados e rectângulos (ver Figuras 21 e 22) onde se inserem caracteres, símbolos e figuras. Estes últimos costumam ser guardados em caixas, elas próprias decoradas com simbologia mágica adicional.

 

O carimbo

Uma vez terminado e consagrado o talismã fu, há que o carimbar. O carimbo (yin) costuma apresentar uma cor contrastante em relação à cor do papel e revela a pertença ao iniciado ou à corrente específica que perfilhou, ou ainda ao templo associado. Deste modo, espíritos, divindades e fantasmas conseguirão identificar a fonte da energia que os invocou ou derrubou. Os primeiros carimbos datam da dinastia Han e começaram por ser feitos em pedra ou metal. Mais tarde, eram feitos de madeira, valorizando-se sobretudo as madeiras que tivessem sido atingidas por um raio. À primeira vista, assemelham-se aos carimbos chineses comuns como, por exemplo, os que eram utilizados pelos letrados chineses ou por casas comerciais. Como eles, podem ser gravados em caracteres yin ou yang, ou seja, em baixo ou em alto relevo e com caracteres em escrita sigilográfica legível, mas também com escritas celestes ilegíveis e com textos/imagens carregados de diversa simbologia.

Através da gravação dos caracteres, sabe-se que, de início, as divindades mais invocadas eram o Soberano Celeste (天帝 tiandi) e o Deus Amarelo (黄神huangshen). Os Selos de Yue do Deus Amarelo, 黄神越章Huangshen yuezhang, são dos mais conhecidos e surgiram pela primeira vez no Baopu Zi. São gravados dos dois lados. Num deles podem ler-se aqueles quatro caracteres, enquanto no outro se encontram vinte caracteres ilegíveis, enigmáticos, inseridos em quadrados minúsculos. Parece que estes Selos foram utilizados em contextos fúnebres, além de protegerem em viagens, curarem doenças e subjugarem demónios. Existe um grande número de carimbos entre as ilustrações do Dao Zang (道藏Cânone do Dao).

Tanto a data para a gravação de um carimbo como a data para o timbrar (下印 xiayin) são cuidadosamente escolhidas. Carimba-se o talismã fu de uma forma dramática que culmina num ribombar. É costume ainda recitar simultâneamente a fórmula retirada dos decretos imperiais 急急如律令jiji ru lü ling, que significa “Fica assim ordenado”.

Além de se carimbar os talismãs fu da forma vulgar, molhando-os em tinta ou pasta de cinábrio, também é comum carimbarem-se com o sangue do dedo polegar ou da língua, que é cortada com um pedaço de vidro ou um prego. Pode timbrar-se outras superfícies além dos talismãs fu, como as partes doentes dos corpos humanos, de modo a deles retirar vapores tóxicos. Os carimbos parecem gozar pelo menos de tanto prestígio quanto os talismãs fu. De tamanho bastante menor, neles o poder está mais concentrado. Segundo a obra acima mencionada Duren Shangjing Dafa (灵宝无量度人上经大法, As Escrituras Ling Bao dos Grandes Rituais de Libertação Universal), possuir um talismã fu e não possuir um carimbo equivale a possuir soldados sem possuir um general. E possuir um carimbo sem possuir um talismã fu equivale a possuir um general sem possuir soldados.

 

A activação

Antes que os talismãs fu possam começar a exercer o seu poder há que primeiro activá-los e consagrá-los. A activação muda consoante as correntes em causa, mas consiste em geral em exorcismos de demónios e de transferências de qi, a energia por detrás de toda a mudança e transformação. Por exemplo, na corrente do Templo da Nuvem Branca (白云观, Baiyun Guan), os talismãs fu são activados através do sopro do iniciado que lhes transfere assim o seu próprio qi, que sabe ser parte do Qi universal. Invoca-se também a divindade (神符shenfu) adequada para alcançar a finalidade a que o talismã fu se destina, conhecimento que é transmitido apenas de mestre para discípulo, embora possa também ser adquirido através da prática.

Os rituais de consagração (designados por 开光 kaiguang, à letra, “abrir a luz”, ou seja, abrir um canal de comunicação entre a terra, o homem e o céu), são muito prolongados e complexos e constituídos por recitações, cânticos e rezas, assim como por estalar os dentes e dar passos segundo uma ordem determinada, por exemplo, segundo o diagrama da Ursa Maior ou do quadrado mágico luo shu, além de outros exercícios ocultos, como a projecção astral. A maior parte das correntes também recorre aos mudra, gestos sagrados da mão com origem no hinduísmo e capazes de instilar poderes sobrenaturais no talismã fu.

O ritual de consagração deve ocorrer na altura correcta, de acordo com o黄道 Huang Dao, ou Via Amarela, a órbita da Terra em volta do Sol, o que exige, mais uma vez, conhecimentos de astrologia e de numerologia.

 

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