Extinto o fogo, só resta a vela

A morte é como a extinção de um fogo. Uma vez extinto, já não dá qualquer luz; uma vez morto, o homem já não é dotado de qualquer consciência. Estes dois fenómenos são semelhantes. Enganam-se aqueles que, debatendo esta questão, afirmam que os mortos são capazes de consciência. Entre uma pessoa que vai morrer e um fogo que se vai apagar, qual é a diferença? Extinto o fogo, só resta a vela; morta a pessoa, só resta o corpo: dizer que os mortos são capazes de consciência é acreditar que uma vela apagada pode ainda dar luz.

No mais fundo inverno, são os fluidos glaciais (hanqi) que trazem o gelo e, assim, a água nele se pode tornar. Na primavera, os fluidos reaquecem e o gelo funde-se. Como o gelo é a vida humana: os fluidos yin e os fluidos yang cristalizam-se para formar os seres humanos; uma vez acabadas as suas vidas, estes morrem e tornam a ser fluidos. A água da Primavera não se pode tornar gelo: como poderia, então, a alma tornar a ter forma? 

Marido e mulher, ambos ciumentos, vivem sob o mesmo tecto: se um dos dois se embrenha no deboche e mantém relações ilícitas, tal desencadeará o furor do outro, conduzindo a conflitos e disputas entre eles. Vejamos o seguinte caso: o marido morre e sua esposa torna a casar ou, ao contrário, morre ela e o esposo torna a casar: se o defunto fosse dotado de consciência, não deveria então enfurecer-se contra o seu cônjuge? Mas o defunto mantém-se calado, sem que qualquer mal se abata sobre o que se torna a casar. Eis outra prova de que os mortos são incapazes de conhecimento.

Confúcio sepultou sua mãe próximo do Monte Fang. Uma chuva torrencial fez derrocar o túmulo. Ao saber do sucedido, em lágrimas, Confúcio disse: “Os Antigos não reparavam os túmulos”. E não mandou reparar o túmulo de sua mãe. Se os mortos fossem dotados de consciência, indignar-se-iam ao ver os seus túmulos votados ao abandono. Sabendo disso, Confúcio ter-se-ia posto a reparar o de sua mãe, atraindo assim as boas graças da sua alma. Mas, sábio que compreendia a natureza das coisas, nada fez, sabendo também que os mortos não são dotados de percepção.

 

Wang Chong*
Trad. Rui Cascais

*Wang Chong 王充 (27–97) foi astrónomo, naturalista e filósofo, tendo vivido durante a dinastia Han de Leste. Texto retirado do 論衡 Lunheng.

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