O homem, já de uma certa idade, era originário de Yanxin (1), e vivia num lugar conhecido por “Estalagem dos Cai”, um vilarejo a cerca de cinco ou seis li da cidade. Perto da estrada, pai e filho tinham aberto um albergue onde os mercadores itinerantes podiam passar a noite. Muitos carroceiros que se dedicavam ao transbordo se albergavam ali, regularmente, nas suas idas e vindas.
Um dia, ao cair a noite, chegaram quatro homens na esperança de obter um abrigo. Mas sucedia que todos os quartos de hóspedes estavam ocupados: a estalagem estava cheia. Como não desejassem arrepiar caminho, os quatro viajantes insistiram, implorando ao estalajadeiro que os acolhesse.
Abafando um suspiro, o velho sugeriu que lhes podia arranjar abrigo sob um telheiro, embora lhe parecesse que não lhes conviria. Como se queixava, os hóspedes responderam-lhe: “Não solicitamos mais que o conforto de uma esteira debaixo de um alpendre – não temos outra escolha e não teríamos face para lhe exigir mais que isso!”
Ora, acontecia que a nora do estalajadeiro tinha acabado de falecer. Enquanto o corpo repousava num quarto, o filho, ausente para comprar a madeira do caixão, ainda não estava de regresso.
“Como a calma reina na casa em luto, seja…”, pensou o velho e dirigiu-se para a encruzilhada dos caminhos para indicar a direcção da casa aos seus hóspedes. Estes entraram na choupana: uma lamparina brilhava tenuemente sobre a mesa que servia de altar, atrás do qual pendiam tapetes e roupas. Um sudário de papel cobria a defunta. De seguida, os seus olhares voltaram-se para o local onde iriam dormir, num quarto dos fundos onde as camas estava dispostas umas contra as outras.
Exaustos do caminho, os quatro viandantes abateram-se sobre os leitos de imediato. A sua respiração foi-se tornando mais e mais pesada. Apenas um deles permaneceu meio consciente. De súbito, este último escutou um ranger vindo do leito mortuário e abriu logo os olhos. A chama da lamparina, frente aos despojos fúnebres, lançava uma luz viva: a morta tinha removido o sudário!
Ei-la que, levantada do seu leito, avançava lentamente penetrando no quarto do fundo. De rosto cor de ouro pálido, tinha a fronte coberta por um pedaço de seda crua. Aproximando-se dos leitos, soprava três vezes sobre os corpos adormecidos, um após outro. Assustado, o quarto homem, na certeza de que viria a ele de seguida, puxou subrepticiamente a coberta para tapar a cabeça, sustendo a respiração para melhor escutar.
Na verdade, a mulher não tardou a vir soprar sobre ele da mesma forma. Sentindo que ela deixava a divisão, escutou de seguida o barulho do papel do sudário. Pondo a cabeça de fora para arriscar uma olhadela, constatou que o cadáver havia retomado a sua posição rígida.
Ainda apavorado, sem ousar fazer o mínimo som, pôs-se a tentar acordar os seus companheiros mas sem conseguir suscitar a mais pequena reacção. Julgando que não lhe restava alternativa senão vestir-se e sair, tinha acabado de se erguer-se e sacudia as suas roupa quando se fez ouvir, de novo, um barulho. De cabelos em pé, deitou-se de barriga para baixo, com a cabeça entre os ombros sob a coberta. Deu-se conta de que a mulher estava de regresso. Na verdade, esta só partiu depois de haver soprado inúmeras vezes sobre ele. Um pouco depois, o ranger do leito mortuário disse-lhe que ela se deitara novamente. Muito lentamene, pôs a mão fora dos cobertores para alcançar as suas calças que vestiu à pressa, correndo para fora descalço. Mas o cadáver também se levantou, aparentemente na intenção de o perseguir. No momento em que a morta afastava as cortinas, o viandante já tinha saído depois de ter conseguido tirar a tranca da porta. No entanto, a mulher seguia-o a correr! E ele correu uivando de terror mas sem conseguir acordar a aldeia. Preparava-se para bater à porta do chefe do lugar mas, com medo de se atrasar e ser apanhado, lançou-se na estrada em direcção da cidade, a toda a brida.
Chegando aos arrabaldes de leste, viu um templo2 e, escutando o som cavo dos “peixes de madeira”3 pôs-se a arranhar ansiosamente o portão do mosteiro. Alarmados com este apelo insólito a meio da noite, os religiosos não mostravam qualquer vontade de o receber de imediato.
Quando o viandante se voltou, a morta estava sobre ele, à distância de menos de um metro. Ele estava à mercê, em perigo extremo. Em frente do portão havia um salgueiro de largo tronco. Saltando para a esquerda quando ela o ameaçava à direita, ou à direita quando ela se lançava pela esquerda, ele ia evitando-a. Mas o furor do cadáver apenas crescia, apesar da fadiga se apoderar dos dois. Bruscamente a morta endireitou-se. O homem, coberto de suor, arfando, escondeu-se atrás da árvore. Num último e violento esforço, ela estendeu os braços para o tentar agarrar do outro lado do tronco. Mergulhado em terror, o homem desfaleceu. O cadáver que abraçava a árvore, não conseguindo agarrá-lo, ficou rígido outra vez.
Depois de não ouvirem mais nada ao fim de muito tempo, os monges, escondidos no interior, decidiram por fim sair cautelosamente e viram o homem por terra. À luz das candeias, este parecia-lhes morto, mas umas fracas palpitações ainda se sentiam no coração. Foi levado para dentro, onde só voltou a si no fim da noite. Interrogado, depois de ter bebido água quente, o viandante contou o que lhe sucedera. Tocava agora o sino da manhã e, na sombria claridade da aurora, os religiosos foram examinar a árvore onde, de facto, lhes surgiu o corpo de uma mulher.
Muito alarmados, informaram o subprefeito que destacou uma pessoa para tomar conta do sucedido. Esta quis abrir as mãos da mulher mas isto parecia tarefa impossível, tal era a força com que se agarrara. Um exame mais atento revelou que os quatro dedos, à esquerda e à direita estavam mergulhados na madeira como garras, ao ponto das unhas terem desaparecido por inteiro no seu interior. Foi necessária a força de vários homens para a desprender e tirar da árvore. As marcas deixadas pelas mãos eram buracos que pareciam ter sido feitos com uma broca.4
O magistrado mandou um guarda infomar-se junto do velho estalajadeiro, onde reinava a maior consternação na sequência do desaparecimento do cadáver e da morte dos três hóspedes. Posto ao corrente do estranho incidente, o velho seguiu-o de volta e fez transportar o corpo da sua nora numa prancha.
O sobrevivente, em lágrimas, queixava-se ao subprefeito: “Quando partimos éramos quatro mas, agora, regresso só: como fazer acreditar semelhante aventura no país de onde venho?”
O magistrado passou-lhe então um atestado e deu-lhe um viático para o caminho de regresso.
Pu Songling
Trad. Rui Cascais
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Notas
- (1) Sub-prefeitura no nordeste de Jinan, capital do Shandong. Este nome significa “ Fé no Yang”, princípio vital, num trocadilho muito provavelmente involuntário.
- (2) Lanruo, abreviação de elanruo, é transcrição do sânscrito aranya, que significa “retiro”; em chinês, o termo, passou a designar qualquer edifício budista.
- (3) Esta caixa de ressonância em forma de peixe, muyu, serve para marcar as orações e récitas ou exercícios de meditação. Segundo Liu Fu ( verso 1040-seg. 1113), o peixe, que nunca fecha os olhos, incitaria o praticante a esquecer o sono.
- (4) O fenómeno, que deixa perplexos inúmeros comentadores antigos do texto, está largamente referenciado no folclore chinês; nomeadamente em Sawada Mizuho, Kikyô dangi, Tóquio: Kokusho, 1976, p.220-243. É muito conhecido noutros locais, nomeadamente na India, onde a possessão de cadáveres por criaturas demoníacas é a especialidade dos vetala; ver Louis Renou, Contes du vampire, Paris: Gallimard, Connaissance de L’Orient n.o 17, 1963, 1985.
