Qu Yuan (343-278 a.E.C.) é um dos primeiros grandes poetas da China Antiga. Foi ministro do reino de Chu numa China ainda não unificada. Caído em desgraça, Qu Yuan assistiu à conquista das terras de Chu pelo reino rival dos Qin. Desgostoso face ao destino infeliz da sua pátria, decidiu colocar uma pedra ao pescoço e afogar-se no rio Miluo, na actual província de Hunan. Antes de se suicidar escreveu o Li Sao, um conjunto de poemas, nimbados de amargura, que o levaria ao grande panteão dos imortais da poesia chinesa.
Era uma vez um poeta, ministro e homem de Estado chamado Qu Yuan (340 a.C.-278 a.E.C.). Viveu tempos atribulados numa China ainda não unificada, dividida em reinos independentes e autónomos que tanto se aliavam como lutavam entre si. É o chamado período dos Reinos Combatentes (475 a.C.-221 a.C.) que antecede a fundação da grande China, Império do Meio, um único Estado centralizado, vasto e unido sob o bastão do primeiro imperador, o príncipe do reino de Qin, o poderoso Qin Shihuang, soberano único de todo o império no ano de 221 a.C.
Qu Yuan foi primeiro-ministro do reino de Chu. Tentou em vão defender e salvar o seu reino face às ameaças do reino rival de Qin que então já ameaçava os territórios vizinhos e crescia conquistando outros reinos. Intrigas na corte de Chu fizeram com que Qu Yuan fosse afastado pelo príncipe de todos os cargos públicos e condenado ao degredo para terras distantes. Ao modo dos entendimentos chineses, uma coisa má acabou se transformar numa coisa boa e Qu Yuan, em verso, terminou a cantar a sua amargura num longo poema intitulado Li Sao, que se pode traduzir por “Elegia da Tristeza”, e o fez entrar na galeria dos grandes poetas da China. Uma mescla de realismo autobiográfico, mais uns laivos fortes de romantismo e a reminiscência de cantares populares da época marcam os poemas de Qu Yuan e deixaram forte influência na posterior poesia chinesa. Alguém comparou os seus versos a “pérolas caindo sobre bandejas de jade.”
O poeta nasceu em Zigui, na província de Hubei, junto de Xiling, umas das Três Gargantas do rio Yangtsé, e passou, de há dois mil e duzentos anos para cá, a fazer parte da galeria das figuras de um passado histórico permanentemente vivas no conhecimento e na memória do povo chinês. O enorme poeta Li Bai (701-762) , assim se lhe refere:
Poemas de Qu Yuan brilham
Iluminam o céu e a lua.
Numa outra alusão a Qu Yuan, Li Bai conclui deste modo um seu poema:
O mundo odeia o que é claro e puro,
o homem sábio oculta o seu fulgor.
Na margem do rio, um velho pescador.
ele e eu regressaremos juntos.
Degredado, esquecido, errando ao acaso pelas margens do rio Miluo, afluente do rio Xiang que por sua vez desagua no rio Yangtsé, Qu Yuan, premeditando o suicídio, encontrou um pescador que o terá reconhecido e lhe perguntou quais as razões porque deambulava por regiões tão afastadas da capital do reino de Chu. Qu Yuan ter-lhe-á respondido mais ou menos com estas palavras:
“O mundo está corrupto, eu quero permanecer puro, o mundo vive a sua embriaguês, eu quero permanecer lúcido.”
O pescador, antes de se afastar, retorquiu:
“Se as águas do rio estão límpidas, aí lavo a minha roupa, se as águas do rio estão barrentas, aí lavo meus pés.”
Verdade é que Qu Yuan, com sessenta e dois anos de idade, se lançou nas águas do rio Miluo, abraçando uma grande pedra, e não mais foi visto. Os camponeses e pescadores da região avançaram para o rio, céleres nos seus barcos-dragão, em busca do corpo do poeta e ministro. Foram espalhando grãos e bolas de arroz glutinoso nas águas para que os peixes e os dragões comessem o arroz e não o corpo de Qu Yuan.
Ainda hoje, no quinto dia da quinta Lua – em princípios de Junho, segundo o nosso calendário –, se comemora por toda a China, incluindo Macau, a data da morte de Qu Yuan com as corridas dos barcos-dragão. Movidos por vigorosos remadores, os barcos deslizam rápidos como se procurassem mesmo o corpo de Qu Yuan e o timoneiro, com o seu tantã a ritmar todas as manobras, não se esquece de ir espalhando bolas de arroz nas águas do rio ou do lago. Assim o corpo do poeta estará a salvo.
Qu Yuan
Qu Yuan, tantos, tantos anos, a entretecer as rimas,
Sem espada na mão para trespassar o inimigo.
Cresciam ervas selvagens, tão raro o perfume das flores…
O poeta mergulhou de vez na imensidão das ondas,
Foi o fim da dor, sofrimento e mágoa…
Mao Zedong
Trad. A.G. de Abreu
Neve sobre as montanhas Zhongnan
Os picos das montanhas Zhongnan
Desenham suas formas de encantar,
Em silhuetas ténues e diáfanas,
Criadas pela aurora matutina.
Flutuam entre nuvens alterosas
Cobertos pela neve branca e fria.Ameaçando o firmamento imenso,
Em tons claros, alegres e brilhantes,
Surgem ao longe as mágicas florestas,
Que estendem sossegadas, quietamente
Sobre a cidade há pouco despertada
As frias e molhadas mãos da noite.trad. Francisco do Carvalho Rego
Enigmas
Antes da criação quem poderia prever
Todas as modificações que vieram a acontecer?Que estranha força resistiu
A tudo quanto antes era vazio?Antes da fusão no espaço da luz e escuridão
Quem desse fenómeno entendia a razão?Imponderáveis poeiras que se aglomeraram
Quem poderá dizer como é que elas se formaram?Quem poderia dizer que a luz e a madrugada
Sairiam do escuro e da noite mais cerrada?Força feminina, masculino poder
Que motivos os fez prevalecer?E o firmamento, de nove anéis, que se criou,
Quem foi o Artista que assim o cinzelou?E quem tão grande esquema idealizou
E que motivo o Criador impulsionou?Fazer tão grande cúpula suspender
E de um largo eixo, o mesmo depender?E sobre que pilares a terra está assente
Ainda para além do oriente?E as nove esferas que giram sem parar
Qual é a força que as faz entrecurzar?E o curso dos planetas quem traçou
E os sinais do Zodíaco decifrou?E o sol e a lua que ficassem no céu
E as constelações, perto de ambos, suspendeu?E que o sol nascesse no oriente
E morresse depois no ocidente?E desde o romper da madrugada até ao fim da noite
Quem pode o sentido conhecer deste trajecto?E qual é da lua o seu poder
Que de um lado desaparece e do outro vai nascer?trad. João C. Reis
A Deusa da Montanha
Parece que há alguém no interior da montanha
Vestida de heras, cinturada de cuscuta.
Um breve sorriso no seu olhar eloquente…
“Como vocês me amam por ser assim tão graciosa!”
Conduz um leopardo escarlate que raposas malhadas escoltam.
O seu carro é de magnólia, a bandeira de caneleira entrançada,
Enfeitada de orquídeas, o ásaro é a sua cintura.
“Para o meu bem amado colhi todos os perfumes.
Moro num sombrio bosque de bambus onde nunca vejo o céu.
A estrada é escarpada e por isso chego tarde.
Sozinha, subo ao cimo da montanha,
As nuvens deslizam em baixo com lentidão.
O sol esconde-se: faz escuro em pleno dia.
Nas rajadas do vento Leste, os deuses enviam a chuva.
Espero o amado longínquo sem pensar no regresso.
O ano chega ao fim, quem então me florirá?
No Monte dos Adivinhos colhendo cogumelos,
Espero impaciente nos montes de pedra onde trepam as heras.
Porque tarda tanto esse homem…e, desgostosa, esqueço o regresso.
Vós amais-me, mas o tempo esvai-se…
Sou tão pura como a fonte em que bebo,
à sombra de pinheiros e ciprestes.
Vós amais-me, sei-o, mas uma dúvida subsiste.
O trovão avança e atroa, a chuva é negra.
Os macacos gemem, depois berram à noite.
O vento sopra forte e assobia nas ramagens,
Penso em vós e não conheço senão a tristeza.”trad. Adelino Ínsua
O Senhor entre as nuvens
Lavei-me em água de orquídeas
banhei-me em suave aroma.
Em minhas vestes multicores
sou igual à flor.
O Espírito desce agora
em longas curvas
flameja
de infinita claridade
Ah! Vem repousar na Pousada da Vida.
A sua luz brilha como um sol
A sua luz brilha como a lua!
Puxado por dragões, trajado como um deus
ei-lo, movendo-se, fugaz
aqui e além.
Desceu o Espírito
na sua grande majestade,
mas, já célere, ascende às nuvens.E olha para baixo
para a província de Chi
e para mais longe ainda.
Atravessa os quatro mares, num voo
sem fim.Com saudades do Senhor, suspiro fundo.
O meu coração está perturbado.
Estou triste, triste.trad. Luísa Neto Jorge
Elegia da Separação
Acabou-se!
Ninguém do país quer saber de mim!
Por que penso ainda na minha terra natal?
Já é tarde para oferecer os meus serviços para uma governação justa!
Seguirei o destino de Pengxian.trad. Alexandre Li Ching
Canção dos Archeiros de Shu
Estamos aqui, a colher os primeiros rebentos de feto
E a dizer: Quando regressaremos à nossa terra?
Estamos aqui porque temos os Ken-in como inimigos,
Não temos repouso por causa destes mongóis.
Arrancamos os rebentos de feto tenros,
Quando alguém diz «Regresso,» os outros ficam cheios de tristeza.
Mentes entristecidas, a tristeza é forte, temos fome e sede.
A nossa defesa ainda não é segura, ninguém pode
deixar que o seu amigo regresse.
Arrancamos os caules de feto velhos.
Dizemos: Deixar-nos-ão regressar em Outubro?
Não há sossego nas tarefas do reino, não temos repouso.
A nossa tristeza é amarga, mas não quereríamos regressar
à nossa terra.
Qual a flor que começou a abrir?
De quem é a carruagem? Do general.
Os cavalos, até os seus cavalos, estão cansados. E eram fortes.
Não temos descanso, três batalhas por mês.
Oh céus, os cavalos estão cansados.
Os generais em cima deles, os soldados junto deles,
os cavalos estão bem treinados, os generais têm flechas
de marfim e aljavas decoradas com pele de peixe.
O inimigo é rápido, temos de ter cuidado.
Quando saímos, a Primavera derreava os salgueiros,
voltamos com neve,
avançamos lentamente, temos fome e sede,
a nossa mente está entristecida, quem saberá da nossa mágoa?trad. Gualter Cunha
Nove Cânticos 九歌 . O Senhor do Sol 東君
Raios de um Sol que está a nascer no Oriente,
Cobre as minhas balaustradas e meu Arbusto Sagrado.
Golpeio meu corcel às rédeas soltas,
Esgota-se a treva da Noite, o Dia nasce.
Na carruagem de dragões, por trovões levada,
Ondulam pendões feitos de nuvem.
Suspiro, quero subir aos Céus,
Mas o coração profundo, na terra natal se queda.
A embriaguez de sons e cores divinas,
Logo faz esquecer o desejo das memórias natais.
Afinam-se as cordas, tocam-se sinos que saem dos eixos.
Sopram-se flautas, soam pífaros,
sugerem-se sedutoras feiticeiras.
Como martins-verdes, elas dançam alegres e ágeis,
Aos pares, cantam felizes.
Afinados, marcam o ritmo os tambores,
Espalham-se pelos céus as divas até cobrirem o Sol.
Com vestes alvas, da cor das nuvens puras e sublimes.
A longa flecha aponto aos Céus, aniquilo a estrela feroz.
Mergulho dos Céus, aperto nas mãos meu arco
E encho a Caçarola abatida com vinho de osmanto.
Depois, ligeiro, aperto as rédeas,
E pela Noite dentro sigo rumo ao Oeste.trad. Nuno Peres
O Monarca do Leste
Neste dia propício, neste dia de signos favoráveis
Cumulemos de honras e de prazeres
o Monarca das Alturas.Ergo pelo punho de jade a minha longa
espada “ch’iu chiang”,
tilintam as pedras no meu cinto.
E da esteira semeada de jóias e pendentes de jade
porque não colher agora
o ramo perfumado?Sirvo, sobre orquídeas,
a carne que cheira a manjerico.
Sirvo o vinho de cássia
e aquela bebida com travo a pimenta.Erguem-se já as baquetas, ressoam já os tambores!
E os cantores, numa cadência baixa e lenta
Cantam suavemente.
Mas logo, estridente a sua voz
responde ao som das flautas e das cítaras!
Nas suas vestes esplêndidas
o Espírito deambula em majestade,
E aromas fragrantes invadem os altares.
Em mil acordes se enleiam as cinco notas.
O Senhor está alegre e feliz, o seu coração
conhece a paz.tradução Luísa Neto Jorge
Elegias
Exilado olho para trás e suspiro
Quando será que voltarei a casa?
Regressam os pássaros aos ninhos onde nasceram
E sobem as raposas aos montes para morrer
Exilado fui porque a lei à míngua se cumpria
Sempre esta mágoa, não a esqueço,
Noite ou dia.trad. João C. Reis
Epílogo
Com mágoa regressando
agora entendo
Como um relâmpago
o céu da noite fendendo
Nem rezando aos céus
nos salvaremos
Se guardar o respeito
por nós próprios não sabemos
Os reis orgulhosos
exigem submissão
Se não se arrependerem
não têm salvaçãotrad. João C. Reis
