Liu Xiang 刘向 (77-6 a.C.) foi um mandarim imperial, distinto letrado da dinastia Han do Oeste (西汉 206-9), que realizou a primeira grande reorganização da biblioteca imperial, após a queima dos livros na China (213-212 a.C), ordenada pelo primeiro imperador, Qin Shihuang (秦始皇), sendo um excelente compilador, classificador e poeta. Entre os seus escritos em prosa, legou à posteridade uma interessante fábula na forma de estória proverbial (成语 chéngyǔ) sobre o movimento correcto, intitulada “枭将东徒” (Xiāojiàng dōngtú), de que abaixo apresento a tradução acompanhada de comentário.
枭逢鸠
鸠曰:“子将安之?”
枭曰:“我将东徒。”
鸠曰:“何故?”
枭曰:“乡人皆恶我鸣,以故东徒。”
鸠曰: “子能更鸣,可矣。不能更鸣,东徒犹恶之声。”
(Capparelli, Schmaltz, 2007: 94)A Coruja muda para Leste
Certa coruja encontra uma rola, que lhe pergunta: “Para onde vai?”
Ao que esta responde, “Vou mudar para Leste.” E o diálogo prossegue: “Pode-se saber a razão?”
A Coruja informa: “Toda a gente detesta o meu pio, pelo que vou mudar para Leste.”
Rola: “Se conseguir alterar a voz, pode fazê-lo, senão não vale a pena, porque no Leste também detestarão o seu tom.”
Esta fábula contém uma lição de vida que estimula a uma meditação existencial, válida para todas as filosofias tradicionais chinesas. A mudança física e geográfica se não for acompanhada por uma transformação interior não produz bons resultados. A viagem, de curta ou longa duração, pode implicar uma alteração real de vida, mas para tal terá de ser acompanhada por um movimento mental, como, de resto, indica a etimologia do sinograma 道 (Dào), que significa “caminho” ou “via”, sendo que este para ter consequências positivas e eficazes terá de ser liderado pela cabeça que chefia (首 shǒu) o corpo a andar e parar de repente (⻌辵辶zhuó). O modo como a coruja se expressava irritava os congéneres, logo seria expectável que se não modificasse a sua voz, fruto de um determinado comportamento, podia e devia esperar o mesmo tipo de reação e consequências negativas, fosse onde fosse, caso insistisse em permanecer no mesmo registo vocálico, sem abertura à influência do exterior. Incomodaria de igual modo tanto no Oeste como no Leste, no Norte ou no Sul.
A viagem nas etimologias da China tradicional pode ser encarada como um visita de longa ou curta duração, já que o convidado 客 (kè) será aquele cujo pé está pronto a entrar devagar (夊suí) numa casa ( 宀 miǎn). Manda a boa educação que as visitas sejam realizadas com parcimónia e por convite, salvo em situações excepcionais, os anfitriões devem dar o seu consentimento, estando preparados para receber os convivas, é desaconselhado aparecer de surpresa, já que a reacção dos donos de casa pode ser negativa. Resumindo, só assim serão as visitas um prazer tanto para quem é convidado como para quem convida. Há uma fábula muito conhecida na China a propósito de um visitante teoricamente bem-vindo, mas na verdade indesejado, que podemos acompanhar na versão proverbial “O Senhor Ye ama Dragões” (叶公好龙 Yègōng hàolóng), também de Liu Xiang (刘向) , de que aqui deixo a minha tradução:
叶公好龙
叶公最喜欢龙。他穿的衣服上绣着龙,戴的帽子上镶着龙, 他住的房子的墙上画着龙,柱子上刻着龙。这些龙都屈曲盘绕,张牙舞爪,真是又华丽又威武。天上的龙听说叶公喜欢龙,真下来找他了,它的头才伸进窗口,尾巴已经甩到了堂上。这一下子可把叶公吓坏了。他的脸子刷白,回头就跑。原来他喜欢的并不是真的龙。
有人嘴上说喜欢某事情,实际上并不真是这样,事情真的来了他就害怕。
(北京外文出版社, 1984:99)O Senhor Ye Ama Dragões
O Senhor Ye gostava acima de tudo de dragões. As suas vestes eram bordadas com dragões, nos seus chapéus estavam pregados dragões, as paredes de sua casa estavam cobertas de pinturas de dragões, bem como nos pilares de madeira, onde surgiam gravados; todos eles proeminentes, serpenteantes, de bocas escancaradas e garras afiadas, magníficos e poderosos. Quando chegou aos ouvidos do dragão celestial o imenso gosto do senhor Ye pelos seus pares, resolveu visitá-lo, enfiou a cabeça por uma das janelas, enquanto lançava a cauda pela casa dentro, pregando um susto de morte ao senhor, que esquálido fugiu esbaforido, porque afinal não apreciava verdadeiramente os dragões.Há muita gente assim como o senhor Ye que afirma gostar daquilo que realmente receia.
Esta fábula relata o episódio de um anfitrião, cujo comportamento atrai inconscientemente um visitante, neste caso o dragão, a sua casa, segundo o dito proverbial português, que aqui se oferece na equivalência pelo sentido: “enganar-se a si mesmo”. Talvez Ye quisesse acreditar que amava aqueles seres, cuja aparência de facto lhe inspirava horror. No caminho existencial que se percorre é bom ter atenção para não nos enganarmos a nós mesmos, já que quer se dê um pequeno passo ( 彳chí) ou simplesmente um passo adiante (夊 chì) para ir ao encontro do outro é preciso adotar a postura correta, evitando aquela na qual de propósito, ou nem por isso, somos impedidos de agir com sinceridade. Na fábula apresentada, o dragão foi induzido em erro pelo comportamento do senhor Ye, por este se ter convencido a si mesmo de algo que não correspondia à realidade, o que pode suscitar consequências não apenas imprevistas, mas desastrosas, por exemplo, ao iniciar-se uma longa viagem.
Também na língua chinesa há um radical etimológico para “mover” e “longa viagem”, que é yǐn (廴) e um provérbio filosófico famoso associado a Laozi (老子). Este, num dos capítulos do Clássico da Via e da Virtude (道德经) declara que “ uma longa viagem começa por um passo” no capítulo sessenta e quatro: “千里之行´/始于足下”, na tradução de António Graça de Abreu, “uma viagem de cem léguas/começa por um passo”, a ideia é a mesma e no fundo expressa uma imensa cautela em relação ao movimento e à ação ou não fossem os taoistas grandes defensores da não-ação (无为 wúwéi), pelo menos da visível, porque a essencial depende de um movimento interior, quantas vezes invisível para os olhos e de deixar fluir a vida espontaneamente sem querer agarrar ou possuir seja o que for. Quanto ao tema da viagem física, sabe-se que se for pensada e cautelosa, pode correr bem, porque é vista como um caminho a construir, mas é aconselhada uma outra forma de viagem, como a mais adequada: a mental. Leia-se então o que nos é dito no capítulo quarenta e sete a este respeito:
不出户
知天下
不窥牖
见天道
其出弥远
其知弥少
是以圣人不行而知
不见而名
不为而成
(Graça de Abreu, 2013:120)Eis a tradução que proponho:
Sem se sair de casa,
Conhece-se o mundo inteiro,
Sem se olhar pela janela,
Entende-se o caminho do céu,
Quanto mais para longe se for,
Menos se é conhecedor,
Por isso o sábio entende sem viajar,
Conhece sem olhar,
Sem ação opera a transformação.
行 (xíng) é um dos radicais para movimento na língua chinesa para “andar” e “caminhar”, pelo que, mesmo sem a desconfiança dos taoistas, especificamente do seu fundador, relativamente às deslocações físicas, é bom estar atento ao conselho transmitido, se iniciarmos uma longa viagem, devemos fazê-la com pequenos passos, munidos de muita cautela e pensamento, a fim de a estudar ao pormenor, avaliando os riscos, pesando perdas e benefícios, mas não se pense por isso que o santo taoista não viaja, ele realiza imensas deambulações, porém sem sair do lugar, o seu espírito liberta-se, enquanto a mente proporciona o chão propício, por meio da meditação, para que tal aconteça. Esta é a postura tipicamente filosófica. Também se pode andar na vida, à maneira da gente comum, por ímpetos ou deixando-se levar ao sabor das correntes, havendo um verbo que funciona ainda como radical na língua chinesa que traduz esta deslocação no tempo do quotidiano. Ele é o 走 (zǒu), que significa “correr”, mas também “andar” e “ir”, num deixar-se levar sem meditação ou até simples reflexão sobre os nossos processos mentais. Há uma estória proverbial ilustrativa deste modo de estar na vida, que inclui o referido radical, “走马观花”, que significa numa tradução literal, “ir a cavalo contemplar as flores” e numa tradução pelo sentido “olhar sem ver” ou “ver de raspão”:
走马观花
人们传说,从前有个名叫贵良的小伙子,他的脚有毛病,走路很困难。他想找一个漂亮的妻子,就要他的朋友华汉替他介绍一个姑娘。正巧,有个名叫叶青的姑娘,鼻子有些毛病,也要华汉给她找个满意的丈夫。华汉想:让她和贵良结婚,不是很好吗?
有一天,华汉让贵良骑着马从叶青的家门前走过,又叫叶青手里拿一朵花,装作闻花的样子。
叶青看到贵良骑在马上,样子很威武,心里非常喜欢。贵良也爱上了个很好看的闻花姑娘。
结婚那天,夫妻见面,说起“走马观花”的情景,彼此才恍然大悟。
(北京外文出版社, 1984:67/8)Ir a cavalo contemplar as flores
Conta-se que em dado tempo terá vivido um certo rapaz de nome Guiliang, com pés defeituosos, pelo que lhe era difícil andar a pé. Mas como desejava casar, pediu ao seu amigo Hua Han que lhe apresentasse uma rapariga. Nem de propósito, ele conhecia uma rapariga, a Ye Qing de nariz torto, que também o procurara para lhe arranjar um marido. Pensou Hua Han: “Seria óptimo se os conseguisse casar!”Certo dia, propôs a Guiliang que passasse por casa de Ye Qing montando a cavalo e pediu a Ye Qing que o aguardasse com um ramo de flores, pretendendo cheirá-las.
Ye Qing gostou imenso de ver o cavaleiro montado no seu cavalo, achando-o magnífico. Da mesma forma, Guiliang considerou muito atraente aquela moça a aspirar o aroma das flores.
Quando eles se encontraram no dia do casamento, ambos perceberam imediatamente a razão de ser de “ir a cavalo contemplar as flores”.
Pelo que para não se ser enganado, as acções devem ser realizadas com atenção e cuidado, mas não é assim que habitualmente procedemos, já que é mais fácil ceder ao lufa-lufa dos desejos e ao correr apressado da vida, onde não há tempo para adoptar o movimento certo e ponderado, sendo muitas vezes pressionados pelas circunstâncias a mascarar ou disfarçar as nossas alegadas imperfeições com vista a obter os resultados pretendidos. Se por um lado, eles casaram enganados, por outro, diz a sabedoria popular portuguesa que “não se estragaram duas casas”, ou numa interpretação mais metafísica, “Deus (Destino para os não crentes) escreve direito por linhas tortas”.
No entanto, a precipitação nem sempre tem um final feliz, indica uma outra estória proverbial ligada a um radical linguístico aqui já mencionado, o de “andar e parar de repente” (⻌辵辶zhuó), em “perseguir”(逐), onde se pode ler etimologicamente um pé de alguém no encalço (⻌) dum porco selvagem. Este sinograma pertence a uma estória proverbial famosa “Kuafu persegue o sol” (夸父逐日), em que o titã Kuafu, ao jeito de Ícaro, o herói grego que queimou as suas asas, vai perder a vida numa corrida desenfreada rumo ao Astro-Rei, que nunca consegue alcançar, já que morre de sede pelo caminho, depois de ter bebido todo o Rio Amarelo. Moral da história: as acções impulsivas podem pagar-se com a própria vida.
Por fim, é interessante acompanhar as propostas dos radicais da língua chinesa ligados ao movimento. Podemos dar passos adiante (夊chí), andar devagar ( 夊 suí), mover-nos ou caminhar numa longa jornada ( 廴yǐn), dar passos pequenos (彳 chì), andar simplesmente (行 xíng), correr, andar ou ir (走 zǒu) e andar e parar de repente(⻌辵辶zhuó), porque o mais importante está, segundo creio, em perceber qual é o movimento correcto para cada um de nós, de preferência, o que se nos adequa espontaneamente e ao mesmo tempo se harmoniza com determinada situação no tempo certo e favorável à viagem exterior ou interior tão perfeita quanto possível.
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Bibliografia
- Capparelli, Sérgio, Márcia Schmaltz. 2007 50 Fábulas da China Fabulosa. 中国寓言五十篇. Porto Alegre: L&PM Editores.
- Edições de Línguas Estrangeiras de Beijing (北京外文出版社).1984.《成语故事选》北京外文出版社.
- Graça de Abreu, António. 2013. Laozi. Tao Te Ching. Lisboa: Nova Vega.
- Shi Zhengyu (施正宇) .1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origins of Chinese Characters. Beijing: New World Press.
- Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.
