Tradução Fernanda Dias
Aomen Jilue (Uma Monografia de Macau) é um relatório sobre Macau, escrito por dois delegados do Imperador, Yin Guan-ren e Zhang Yulin (primeira edição 1751). Os poemas inclusos tinham a dupla função de testemunho dos relatos e embelezamento do texto.
Esta monografia viria a ser selecionada para fazer parte da famosa “Biblioteca dos Quatros Ramos Literários” (Si Ku Quanshu) , compilada em 1772-1782 por ordem do Imperador Qianlong. Este facto reflecte bem a importância do livro.
Os temas dos poemas englobam descrições de viagens e embaixadas dos oficiais enviados aos países asiáticos com os quais a China mantinha relações na época (o reino de Champa, Malaca, Vietnam, Java, Filipinas e outros estados tributários) ou encontros e trocas culturais com os povos que aqui aportavam vindos do Grande Oceano Ocidental (Portugal, Espanha, Holanda…) Paisagens, costumes, minuciosas descrições da natureza ou dos mitos, nada ficou esquecido.
Não poderemos senão admirar esses testemunhos de encontros culturais muito antes do que teríamos imaginado.
O poder e o brilho da China durante a dinastia Ming estão aqui bem patentes, dado que os principais poetas citados nesta colectânea são monges errantes, letrados e poetas da dinastia Ming e raramente Qing.
Não estão igualmente ausentes temas sobre estados de alma, geralmente expressos pelos Mandarins afastados das suas províncias, que se servem da incessante impermanência dos ritmos da natureza para exprimir o sentimento de exílio e a perplexidade sobre a inconstância do destino. A nostalgia da despedida nos momentos de separação e a esperança de rever os amigos perpassam explicitas ou veladas, em quase todos os poemas sobre viagens.
Os epitáfios e as homenagens póstumas aos embaixadores e outros ilustres oficiais, assim como relatos de peregrinações aos túmulos, com abundância de referências às virtudes e feitos heróicos dos defuntos, são muitas vezes impregnados de nostalgia perante a ironia do destino. Disso ressalta o papel do Budismo que ensina a arte de “desprender-se”. Como abandonar desejos irrealizáveis, como escapar ao sofrimento, onde descobrir a força de encarar a solidão. Uma das vias da fé budista é o desprendimento; e assim manter a tranquilidade de coração, atingindo o estado ideal do ser humano. Os poemas que descrevem cenas de despedida, passam-se num pavilhão, num miradouro circundado por montanhas, um rio, os pássaros que voam para longe mas não cantam “mudos de desolação”, o sol nascente, a lua, etc., todos os elementos da atmosfera Zen, através da qual os letrados atingiam a harmonia com a natureza. Por vezes perpassam afeições nesses temas do “letrado chinês” amor ao país, aos amigos, à família, e raramente à amada; mas tão discretas são essas alusões que temos que descobri-las como raros tesouros associadas aos elogios dos ilustres do passado, aos relatos de feitos heróicos, à incessante comparação com os mitos.
Antes de Fernanda Dias me ter trazido a sua versão destes poemas, eu nunca tinha considerado Aomen Jilue como integrando uma obra poética. Muitos historiadores usam esta monografia como referência de pesquisa histórica, mas raramente literária. Talvez por isso, nunca reparara que contém tal quantidade de poemas notáveis. Ao colaborar nesta tradução, na passagem de uma língua a outra, na difícil e sempre exaltante comunicação oral, era como se as imagens renascessem, com a frescura da origem.
Sem dúvida graças à sensibilidade de poeta e de pintora, e aos conhecimentos da cultura Chinesa de Fernanda Dias, esta tradução pôde trazer para a Língua Portuguesa as paisagens poéticas em todo o seu colorido e delicadeza pictórica. Cada palavra escolhida no acorde do verso, como o eco da imagem. Uma das razões pela qual a poesia chinesa tem um lugar de realce na literatura mundial, é o facto de ser tão eficazmente pictural.
Disse Wang Wei: “Encontramos pinturas nos poemas, e nos poemas, encontramos pinturas.”
Assim, este livro é uma obra poética, mais artística que documental, por isso mais conforme aos sentimentos dos poetas, que ao contexto histórico desse extraordinário relato que é Aomen Jilue.
Stella Lee Shuk Yee
Os Portugueses
Seus barcos deslizam sobre o mar
seus remos indómitos lembram centopeias
Quando os notáveis vêm de longe ao templo
ostentam o báculo vermelho das confrarias
Entregam o selo em frente do Buda
E logo se retiram.
Que augúrios imploram à monja mendicante
Ao escolher o dia fasto para os seus casamentos?
You Tong
Mansão numa manhã de Primavera
Que lugar será mais deleitoso
Que esta mansão de talha rendilhada
Ao romper da aurora?
Das janelas inundadas de claridade
Vê-se subir o astro luminoso, sobre o mar
E a rumorejante ramaria, de onde as aves
Se evolam em bandos
As portas ainda fechadas
Estão pintadas de verde e ouro
Nas encrespadas encostas
Não desabrocharam ainda as flores
Os génios da manhã, estremunhados
Ainda não olharam para o mar
Pelas ruas da cidade deambulam já
Inquietantes divindades….
Yin Guang-ren
Chegando a Macau
Ao Monte Maior de Afiar-a-Espada
Liga-se Monte Menor de Afiar-a-Espada
Longas praias, brando Outono, velas leves
Até onde chegam meus olhos
Temo pelos pássaros, voando em queda livre
O pescador com sua rede, frente à choupana
Espera em pé sobre as ondas, de coração firme
O claro sol ilumina o Templo de S. Paulo
E a Ilha da Montanha Milenar
Ainda cintilante de orvalho branco
De sete em sete dias, os bárbaros prestam culto
As damas estrangeiras enchem as ruas
Com suas mantilhas e brocados
À sombra da verde ramaria
Combatem galos de esporões de oiro
Chineses e bárbaros, em grupos separados
Ombro a ombro encostados
Ganham ou perdem, cena banal
Os velhos enfeitiçados patenteiam
Em cobiça tenaz a sua vil paixão.
Wang Houlai
Mar da Solidão
Ilha das Nove Estrelas! Cumes da Baía Oriental!
Quão breve é o instante de vê-las, as montanhas!
Mal levantáramos o olhar, já tínhamos passado por elas
Escudos esparsos, mil lanças erguidas
Pelos quatro lados dos céus rodeadasde astros
Montes e rios desfeitos…águas que arrastam destroços
Assim no mundo, o nosso corpo flutua ou submerge
Como lentilha aquática soprada pelo vento
Ao chegar aos Recifes do Alarme, gritamos:
— Alarme! Abrolhos!
Ao passar o Mar da Solidão, suspiramos:
—Aqui vamos solitários!
Que homem houve, desde as origens
Que tendo nascido, não devesse morrer?
Quer desprezemos quer para sempre guardemos
A sinceridade no nosso coração, somos mortais
que poderá brilhar mais que o nosso suor?
Wen Tianxiang
As flores do pátio
Na luz matinal pendem das janelas
Flores singelas, iguais às de todo o lado
Os olhos e o olfato, subtis, perscutam a vastidão
Belos e vibrantes, o diáfano cristal e ojade polido
Exaltam a cor dourada das castanhas de água
Entrelaçadas nas grades, curvam-se as flores
Oferecendo o colo fragante, ao cair da noite
Ao beijo do orvalho
Contra o azul do firmamento
O precipício envelhece
O vento agreste leva até lá o aroma intenso.
Zhang Rulin
Luar na Praia Grande
Nasce a lua, o arco da baía revela dois espelhos
Limpidamente iluminados: o céu e o mar
As ilhas como que temem o acumular da neve
No dorso de um dragão coleiam ondas
Emergem bolhas, nácar, pérolas
Nas colinas erguem-se os pavilhões
É a cidade aspirando a tocar a Via Láctea
As estrelas, baixas, espelham-se nas águas
Anseiam navegar, tal como os barcos
Fina poeira que esvoaça sem atingir os astros
Que génio habita, misterioso e fasto
O palácio lunar de jade branco?
Yin Guang-ren
Macau
Não há muito que o Lótus se eleva na terra
Onde vivem lado a lado chineses e bárbaros
Os mercadores chineses, homens do Sul
Os rios, as montanhas, os Cinco Picos
Tudo pertenceao mesmo sistema
Todos os paízes enviaram para aqui livros
Em barcos, seguindo as glaucas ondas
Esbatidos no extremo do firmamento
Na cidade longínqua o céu consentiu um perigo
Pois o remoto e próximo poder tudo devoram
o templo de S. Paulo preciosos tesouros guarda
Corre a água por entre as ilhas
Nos canais em cruz da Letra Dez
As mulheres bárbaras governam bem as casas
O virtuoso Bispo é respeitado
Os homens sábios, porém, engendram planos
A Passagem do Tigre constrange-te a garganta
A Fortaleza do Monte Anterior pesa-te no dorso
E por tudo isto, oh Porta da Baía
A chave do cadeado ainda aqui se encontra.
Li Zhuguang
Macau Actual
Aqui, onde mais frequentemente
Atracam os barcos de Cantão, no porto
Onde os estrangeiros provocam escaramuças
E os portugueses escondem tropas e armamentos
Pesarosos, os guerreiros nossos
Vêem a eficácia das armas bárbaras
Demónios famintos planando no espaço
Aguardam o momento de devorar
Ensinem-lhes a amizade, nada haverá que temer
A Fortaleza do Monte Anterior vai de novo prosperar
Dentro dos semicírculos, o do Norte e o do Sul
Vivem os estrangeiros, em casas com andares
As damas europeias, passeiam com rosas na mão
Bolsinhas com dinheiro, usam punhais
E os chineses coroados de jasmins
Queimam incensos dedicados ao Senhor!
A muralha que ergueram parece poderosa
Por toda a província de Guangdong
Alastram ainda outras tristezas…
Da Montanha Odorante até ao Istmo
Longa é a via da Haste do Lótus!
Sobem as águas, partem os barcos
Com vento favorável lançam-se ao oceano
Os olhos dos peixes são como as rodas do carro do sol
O corpo da enguia tem dez léguas de comprimento
O Senhor dos Bárbaros isolou-se no interior da ilha
Faz-se o comércio em Xiang Shan, sede do distrito
O culto presta-se no templo de S. Paulo
A autoridade é o Bispo, Príncipe das Leis
As crianças, diabinhos vistosos, usam cores garridas
As damas dos bárbaros, ostentam preciosos cabelos
Sem ganchos nem ornamentos
O papagaio, próspero, cogita…
Ilhas como dorsos de baleia cintilam na luz nocturna
Por bom dinheiro compram-se lindos alciões em gaiolas
De tectos airosos, por vezes redondos, por vezes quadrados
Nas montanhas, baluartes, peças de artilharia
Nas praias e nas fronteiras, altas muralhas pétreas
Um dia a cidade foi ocupada por mercadores estrangeiros
Há mil anos a China teria resistido
Nos dias de hoje são fracos os estrategas
Grande o país dos Cabelos-Vermelhos
Num vaivém, as velas enfunam-se altivamente
Como montanhas galgam as ondas do mar
Na Quinta-lua, fustigados pelos ventos
Os barcos aguardam nos portos a hora de zarpar
Largadas as amarras, afundam-se a carne e o arroz ritual
Usam o telescópio para rumar o navio
Servem-se da bússola para definir a rota
Choram os demónios, são medonhos os Três Escolhos
Quando largam a voar os peixes voadores
Fica o mar assombrado dez léguas ao redor
Ao cair da noite, nos mastros escuros e salgados
O fogo de San’Telmo, brilha efémero e fátuo
Como flores de um dia no fato de um letrado.
Shi Jinzhong
O Farol da Guia
Da colina da Guia, até ao extremo do horizonte
Mil árvores, profusamente iluminadas
A claridade inunda o mar, arranca-lhe faíscas
O céu num clarão, as nuvens a uma banda
A Ponte das Gralhas oculta na penumbra
Raios oblíquos do poente que a Via Láctea anula
Regressam as velas de mil léguas, longe
Sob o farol o ar cintila e ondula, beleza púrpura.
Yin Guang-ren
Da fortaleza da Guia
O céu não voga à flor das águas
O sol apossa-se do espaço
O ancoradouro fica ao largo de S. Paulo
No canal da Taipa, porta das marés
Os peixes voam, sulcando o fogo do poente
O arco-íris rompe a barreira das nuvens
Chegam mercadorias do Ocidente e do Oriente
Os veleiros singraram dez mil milhas
Trazidos pelos ventos.
Shi Jinzhong
Contemplando o mar
A leste da Porta do Tigre, na imensidão sombria
As águas fundem-se nas nuvens de branco jaspe
Emanações do mar!
No Verão multiplicam-se as miragens
Nas noites mágicas canta o galo celestial
Arde o sal. O lavrador repousa
Espalham-se as sementes pelas várzeas
Em dez léguas, ondulará o verde pelos charcos
Mesmo eu aspiro a ser cultivador.
Shi Jinzhong
Mong Há na luz do poente
A Colina do Lótus, ao cair da tarde
Reflecte o fulgor das esparsas nuvens rubras
Ilusão dos pavilhões, tão próximos de mim
A névoa avança das Portas do Cerco
Alastra na espessura do bosque em flor
A inspiração poética é um dom do céu
O fogo crepuscular arde em perfeita beleza
Obra e Criador são uma e a mesma coisa
Yin Guang-ren
