A Claridade e a Virtude

notas sobre a espada e o seu simbolismo

 

Yu, o Grande, conhecia a arte da forja. Sabia distinguir os metais machos dos metais fêmeas.

As lebres de Wu, de cujo fel se fez um par de espadas, eram um casal, logo cada uma das espadas têm um sexo diferente. A têmpera nasce da união da água e do fogo. Por vezes, neste momento, as espadas transformam-se em dragões. As espadas Yin ficam nas ribeiras onde são temperadas. Daí que as espadas tenham a tendência de se atirar à água para reencontrar o seu par perdido. O curso de água mais famoso é precisamente a Ribeira das Espadas, onde existe a Garganta do Dragão, justamente porque aí, no momento de ser temperada, uma espada se transformou em dragão e levantou vôo.

Zuo Qiming, Zuo Zhuan

 


 

Poucos objectos inspiraram aos homens tanto fascínio como a espada. De tal modo que esta aparece como símbolo ligado às representações mais determinantes do poder. Símbolo de força, de guerra, mas também de lei e de paz, capaz de proteger a vida e de dar a morte, a espada percorre as civilizações – e através delas o imaginário da humanidade – quase desde os seus primórdios até aos nossos dias. O facto de ainda hoje, quando perdeu já a sua função mais imediata (a do combate), continuar a despertar interesse e mesmo paixão um pouco por toda a parte é a prova irrefutável de que esse fascínio antigo perdura. Quando se esgotou o carácter mais imediato da sua funcionalidade surgiram então mais claros outros aspectos dessa afectividade, dessa complexa relação entre o homem e um objecto por si concebido, que estimulam agora uma série de reflexões sobre questões estéticas, simbólicas, históricas, etnológicas, psicológicas, tecnológicas, enfim toda a gama dos saberes humanos, exactamente à medida da sua importância civilizacional.

Esta é atestada por numerosos testemunhos do âmbito do mito, da literatura, dos discursos tecnológico e político. O discurso sobre a espada ultrapassa largamente o dos seus mais óbvios e próximos utilizadores (ferreiros, armeiros, guerreiros), para ocupar o tempo e as mentes de habitantes de diferentes campos da actividade humana.

Se podemos considerar que existem objectos cuja existência não nos aflige nem assombra, cujo espaço e desempenho se encontram relativamente à mercê do nosso domínio, já a espada, enquanto objecto técnico, foge a esse desejo de controlo, não apenas do ponto de vista quotidiano (porque pode dar a morte e assegurar a defesa da vida) mas também na medida em que se erige como símbolo carregado de características muito particulares.

Na ausência da sua utilização bélica no mundo de hoje, a espada não desaparece exactamente porque sempre desempenhou um papel diferente de um mero instrumento de combate, talvez devido à característica singular que inspirou a sua sacralização: a espada pode ser aperfeiçoada mas, no seu género, não pode ser ultrapassada. De facto, poderemos admitir que as ligas metálicas sofreram um desenvolvimento ao longo dos séculos e que as forjas e os armeiros são hoje capazes de produzir lâminas de melhor qualidade (o que talvez nem seja verdade). É também certo que a forma da espada foi sendo modificada, talvez mais devido ao tipo de exército que devia servir, do que realmente no sentido efectivo do seu melhoramento. Mas o curso da História não proporcionou, nem parece que vá proporcionar no futuro uma arma metálica de corte ou perfuração, tão ajustada à medida do homem enquanto seu prolongamento físico e psicológico.

Sendo uma forma pressentida como inultrapassável, a espada surge como um objecto cuja sacralidade confunde e seduz o seu próprio criador, como se o armeiro fosse o parturiente, o que assiste à hierofania de um parto divino.

Estas concepções simbólicas têm uma origem antiga em todas as civilizações e marcam rupturas com o passado, sobretudo devido ao advento da tecnologia dos metais, cujos mistérios eram explicados de modo vago ou emergiam disfarçados sobre o manto de linguagens iniciáticas e esotéricas.

Seja na mitologia chinesa ou no conto breve japonês, que servem de epígrafe a esta introdução, a espada aparece como símbolo ambivalente, macho/fêmea, Yin/Yang, terrível/propiciadora, exterminadora/fertilizante, afinal tão à imagem do seu próprio criador, mas dotada de um poder superior. Os discursos sobre a metalurgia e o fabrico das espadas, quer sejam literais ou alegóricos, são preciosas pistas para a compreensão de alguns dos percursos mais fascinantes da aventura da espécie humana.

 

1. O SIMBOLISMO DOS METAIS
1.1. Metais celestes, metais telúricos

A descoberta da fundição dos metais marca uma nova era para a Humanidade. Normalmente, pensa-se, de modo algo preconceituoso que as descobertas técnicas antecedem a sua explicação ou justificação mitológica, quando na realidade por vezes acontece o contrário. Na verdade, muito antes de se terem dedicado às técnicas da forja, já os homens conheciam e utilizavam os metais. Os nossos antepassados mais primitivos recolhiam pedaços de metal que encontravam na natureza e trabalhavam-nos como se de pedra se tratasse. Mas essa matéria tinha uma origem bem específica e plena de significados simbólicos. Os metais vinham do Céu. Literalmente, os homens observavam com espanto e temor a queda dos meteoritos, chegando posteriormente à conclusão de que os minérios que extraíam destas pedras caídas do Céu eram, portanto, de origem divina. A sacralidade dos meteoritos encontra hoje a sua expressão mais conhecida na Kaaba islâmica.

Mas mais do que o simbolismo da pedra em si, conta o contágio mágico dos metais nela contida. Confundidos com o raio, os meteoritos vinham das alturas rasgando a noite e incendiando na sua queda o próprio céu e depois as florestas. Era um mensageiro do fogo celeste, próprio para ser aproveitado pelos artesãos como fonte de matéria-prima e pelos magos como fonte de presságios. Algo que muito se confundia e que era necessário precaver pois que tratava de matérias perigosas. Com efeito, estes metais recolhidos à superfície vinham do céu e eram, portanto, participantes de uma sacralidade celeste e masculina. Repare-se que a queda do raio, como da chuva, representa a consumação da hierogamia entre o Céu e a Terra. Uma relação violenta e cruel, geradora de metais, e que os homens se veriam mais tarde na contingência de imitar. Por vezes, os meteoritos caíam com tanta violência que feriam o ventre da Terra, penetrando-a e ficando bem longe do alcance dos homens.

É precisamente a descoberta da fusão dos metais e do trabalho das minas que deu origem, segundo Eliade, a uma importante deslocação simbólica. Não nos interessa tanto aqui seguir uma cronologia das descobertas técnicas mas somente anotar algumas repercussões simbólicas estas trouxeram às culturas. A concepção de uma origem celeste dos metais é já suficiente para se compreender como este fenómeno impressionava a imaginação humana. Mas agora trata-se de ir ao seio sagrado da Terra e dele retirar os minérios que nele adquiriram já outras qualidades, nessa gestação geológica milenar, de idade incompreensível para o Homem. Ora esta acção implica a passagem para uma outra simbologia, agora também de contornos telúricos e femininos, portanto ambivalente, o que vai obrigar à introdução de outros elementos no universo do mito.

 

1.2. A imolação de Mo Xie

A tradição chinesa conta que Gan Jiang e a sua esposa Mo Xie eram ferreiros. Tendo recebido ordem para forjar duas espadas, Gan Jiang dedicou-se dia e noite ao trabalho mas, após três meses de esforços, não conseguia realizar a fusão dos metais. Interrogado pela mulher sobre as razões do seu insucesso, o marido respondia-lhe evasivamente até que, face à sua insistência, acabou por lhe confessar que, em situação idêntica, o seu mestre se servira de uma rapariga para efectuar o casamento. Mal ouviu estas palavras, Mo Xie atirou-se para dentro da fornalha, possibilitando a união das ligas. Em seguida, o marido fabricou duas espadas: a espada fêmea, que se chamaria Mo Xie, e a espada macho que levaria o seu próprio nome. Noutra versão, Gan Jiang conta que o seu mestre e sua mulher teriam ambos sido consumidos como único modo de ligar os metais. Mas é preciso ter em conta que em chinês casar/casamento (ping) tem igualmente o sentido geral de embaixada e outro mais específico de entrevista realizada, podendo portanto tratar-se de um sacrifício cuja vítima tem por missão operar como casamenteiro entre os metais em presença. Contudo, a imolação de Mo Xie pode também ter o sentido de casamento/oferenda ao deus da Forja para que este se dignasse proporcionar a ligação dos metais. Como vimos mais acima, o casamento do Céu e da Terra através do raio (origem dos metais) é um acto violento, a sua repetição no ambiente sagrado da forja implicará por isso mesmo a violência de um sacrifício humano.

Segundo Marcel Granet, o Mocho, animal perigoso, ligado ao Yang e ao quinto dia do quinto mês (quando o Yang adquire toda a sua potência – diz-se que as crianças de sexo masculino nascidas neste dia matarão os pais quando alcançarem a altura da porta), era o emblema animal de um clã real de ferreiros, mestres do Raio e das Estações. Enquanto ministros seriam rivais do Céu e deviam ser controlados.

 

1.3. Reis e ferreiros

Os 81 irmãos tinha corpo de animal e vozes humanas, as cabeças de cobre e as frontes de ferro. Comiam areia. Foram os inventores das armas, dos sabres, das lanças e das grandes bestas. Aterrorizavam e faziam estremecer o mundo. Cometiam massacres. Faltava-lhes Virtude.

in Gui Cang

O trabalho dos metais, da mina e das forjas, foi sempre entendido como especial e perigoso. O minério não somente teria vindo do Céu como teria gestado no ventre da Terra, participando assim de uma dupla sacralidade. Daí que os ferreiros, os homens destinados a esta tarefa perigosa, tenham sido encarados por todas as civilizações como seres especiais e dotados de um saber também ele especial.

Em termos concretos, o ferreiro era certamente alguém que, juntamente com o oleiro e o feiticeiro (com o qual às vezes se confunde), tinha o domínio do fogo. Ora o fogo é o que permite, entre outras coisas, a própria transmutação da matéria. Normalmente, a descoberta ou introdução das novas técnicas são atribuídas a um rei fundador, como é o caso quase total dos reinos africanos, em que os reis são igualmente ferreiros.

O ferreiro, enquanto nómada que procura regiões onde existam minérios, não tem um lugar claro no seio da sua própria cultura, na medida em que toca em matérias perigosas que nem todos sabem dominar e que provocam um temor sagrado. Ele é, de certo modo, um marginal temido e respeitado, sendo o seu cargo hereditário, constituindo uma linhagem de poderes importantes e específicos. A mitologia africana é profícua em histórias de ferreiros que se tornam reis em tribos que não a sua, como uma espécie de recompensa ou reconhecimento pela introdução e domínio de uma técnica nova e maravilhosa.

Mas também a história das origens da civilização chinesa nos relata episódios semelhantes. Yu, o Grande, primeiro imperador da dinastia Xia, foi o grande Ordenador do Mundo. Para além de controlar o curso furioso da águas, era conhecido por perfurador de montanhas e por ser um rei-ferreiro, que dominava os segredos da forja e da união dos metais. A ele se atribuiu a fusão dos Nove Caldeirões dos Xia, feitos com metais que vinham das Nove Províncias, trazidos pelos Nove Pastores. Estes caldeirões eram leves e fáceis de transportar e tinham o condão de fazer ferver os líquidos sem necessidade de fogo. Eram justos, pois neles se aplicavam os suplícios. Yu, o Grande, o primeiro dos monarcas a estabelecer uma dinastia, surge portanto não só como detentor dos conhecimentos iniciáticos que permitiam o trabalho dos metais mas, sobretudo, como seu virtuoso e justo utilizador.

Porque, ainda na mitologia chinesa, para conhecermos a origem da fundição dos metais e do fabrico das armas, teremos de recuar mais, até aos tempos imemoriais do primeiro dos Cinco Augustos, Huangdi, conhecido pelo Imperador Amarelo. É que as armas e a forja são atribuídos a Chiyou, um ser maléfico que morreu em batalha contra o grande rei, num combate mítico cuja reprodução ritual tem atravessado a história da China. Chiyou, cuja natureza aparece por vezes repartida em 72 (9×8) ou 81 (9×9) irmãos, tem um aspecto temível: cabeça de cobre com a testa em ferro e semelhanças bovinas. A tremenda batalha em que defrontou Huangdi surge recheada de contornos mitológicos, em que cada um arregimentou para o seu lado diferentes seres divinos: a sua legião de demónios espalha uma misteriosa neblina, no seio da qual Huangdi para se orientar inventa a bússola; depois o monarca derrota o seu inimigo graças a uma trompa mágica que imitava o grito do Dragão. Chiyou terá mesmo sido morto pelo Dragão Yin, o dragão da Chuva que, juntamente com Niu-pa, a deusa da Seca, secundava Huangdi. Duzentos anos antes da nossa era, esta figura terrível foi recuperada pelo primeiro imperador dos Han que lhe dedicou um sacrifício. A multiplicação de Chiyou transforma-o numa espécie de confraria, o que de algum modo se relaciona com o papel fundamental que as confrarias de ferreiros desempenhavam na China Antiga e cujos conhecimentos mágicos foram transmitidos pela tradição taoista.

A história de Chiyou dá-nos a ver uma civilização que se apercebe dos perigos inerentes ao uso incontrolado da forja e das armas, nomeadamente para os detentores do poder, sinalizando ao mesmo tempo a sua origem maligna. Este ser mitológico múltiplo aparece como uma espécie de patrono dos rebeldes que ameaçavam, em hordas marginais, o poder centralizado dos imperadores. Na história da China, as confrarias têm inúmeras vezes desempenhado um papel de oposição ao poder estabelecido e roído por dentro o vigor e a virtude das dinastias.

A mitologia chinesa mais primeva, de origem real, teme o poder das forjas e das armas, em detrimento da Virtude (De). A história de Huangdi e Chiyou demonstra que a Virtude vence a força ainda semibestial das armas e dos metais, mas mais à frente mostraremos como, depois de submetida à medida humana, com a dinastia Zhou, mesmo na mitologia chinesa, a espada conquistará o seu espaço no panteão dos símbolos de poder.

Assim, para já podemos concluir que o domínio da forja e dos metais é uma ocupação perigosa, demiúrgica, pela acção da qual a matéria se transforma e muitas vezes adquire a forma mortal de uma arma, capaz de dar vida ou morte, consoante a sua própria alma e alma do homem que a empunha.

“O sabre é a alma do guerreiro”, diz o Bushido japonês. Mas, num sentido mais geral, a espada ultrapassa a dimensão do carácter solitário do guerreiro para se erigir em símbolo colectivo do exercício da violência, ou seja, da própria essência da forma Estado.

 

2. A ASCENÇÃO DA ESPADA
2.1. Armas, animais e guerreiros

Que importa viver muito tempo?
Que guerreiro quererá ser poupado?
Friedrich Nietzsche,
Da Guerra e dos Guerreiros

Seremos tigres ou rinocerontes
Para assim percorrermos estes desertos?
Pobres de nós, os guerreiros,
Dia e noite sem repouso
in Shi Jing, Livro das Odes

Talvez o primeiro gesto tecnológico do homo faber tenha sido a construção de uma arma. Sendo uma espécie pouco dotada fisicamente e sem presas  consideráveis que lhe pudessem servir de ataque ou defesa, os nossos ancestrais precisaram desde muito cedo de utilizar as suas centelhas de inteligência e atenção no fabrico de instrumentos bélicos. E que modelo mais próximo escolher que o próprio mundo animal? A verdade é que as bestas apresentavam uma parafernália de armas naturais concedidas pela própria Natureza: cornos, dentes, bicos, barbatanas, espinhos, capazes de perfurar, rasgar e cortar com eficácia, assegurando a continuidade da espécie na luta pelos alimentos e pela sobrevivência. Se o homem utilizou, em primeiro lugar, os próprios despojos dos animais que matava ou encontrava mortos, não deverá ter passado muito tempo para que começasse a reproduzir em pedra e madeira as presas dos seus inimigos.

Esta aproximação ao mundo animal não deixou de ter numerosas e profundas repercussões simbólicas, traduzidas, por exemplo, no totemismo de confrarias de guerreiros que se identificavam a um animal específico. São famosos os berserkir, homens-ursos que aterrorizavam as florestas do norte da Europa, bem como a sociedade secreta dos homens-leopardo que se dizia controlar grandes regiões de África.

Uma vez mais nos surgem pois as sociedades de guerreiros, seres perigosos em tempo de paz, que é necessário controlar. De facto, a figura do guerreiro percorre com fatalismo a história e o imaginário das civilizações. Útil e reverenciado em tempo de guerra, este personagem e as suas armas constitui uma ameaça para o poder divino-legal em tempo de paz. Ele é um ser solitário (o melhor exemplo é o cavaleiro andante, figura que percorre sozinho grandes espaços tanto a Ocidente como no Oriente), incómodo, mas indispensável. A sua natureza, endurecida pelo tempero das batalhas e o confronto regular com a morte, é imprevisível e dificilmente controlável, tal como a sua sexualidade. O regresso dos guerreiros, por exemplo, era normalmente comemorado com festas que incluíam uma certa licenciosidade, com o objectivo de acalmar, através do sexo, os homens excitados pela matança e pelo sangue.

Rapidamente, reis e imperadores compreenderam que havia necessidade de captar as confrarias de guerreiros e mantê-las sob a sua bandeira, como condição de estabilidade e garante de obediência. Dependendo dos locais e das vicissitudes da História, assim também assistimos a diferentes graus de relação, de proximidade e afastamento entre a soberania e os guerreiros.

 

2.2. Armas contundentes, armas cortantes

Outro modo que o simbolismo tem de estabelecer diferenças entre armas passa pelas características do seu funcionamento. Assim, teremos armas contundentes e armas cortantes. No primeiro caso teremos as clavas, as maças, etc., que esmagam, desfazem, maceram; no segundo as espadas, os machados, os punhais que cortam, dividem, perfuram. Distinção aparentemente significativa a nível simbólico, as primeiras teriam um conteúdo e acção fundamentalmente impuro e brutais, mais perto da animalidade; enquanto as segundas, mais perto da humanidade, conteriam na sua acção algo de salvívico e purificador.

Este tema aparece sobremaneira ligado ao simbolismo da espada, na medida em que a sua acção terá um carácter regenerador, como no conhecido caso da Excalibur, da lenda celta do Rei Artur, a espada que cura e dá vida. Trata-se, afinal, de cortar o tempo para inaugurar um novo momento, um acto de regeneração. Para dar conta destas operações torna-se necessário cortar com o passado, negro e decadente, e inaugurar uma nova era. É o que Alexandre, o Grande, executa ao cortar com o seu gládio, o inextrincável nó de Gordium, tornando-se senhor da Ásia.

De espada na mão, o soberano corta para depois religar. O seu instrumento é portanto fundador de um novo tempo de uma nova memória. A espada distingue-se perfeitamente dos instrumentos contundentes que não figuram nas simbologias reais e são utilizados pelos puros guerreiros, seres apenas semi-divinos, como o Hércules da mitologia grega, que utiliza a maça. Só amarrados a um estrito código de comportamento, como no caso da cavalaria medieval europeia ou do Bushido japonês, os guerreiros têm, por assim dizer, licença de posse e porte de espada.

O uso da espada nos exércitos era extremamente limitado. Os soldados usavam arcos, bestas, lanças, mas só aos oficiais superiores era concedido o uso da espada, normalmente instruídos na arte do combate individual. Na China, por exemplo, depois que a infantaria mongol conquistou o império, o uso da espada rareou de facto, até porque o sistema militar o tornava já obsoleto. Isto torna-se bem claro quando percorremos o tratado de tecnologia do século XVII Tian Gong Kai Wu, de Song Yingxing. Neste livro, no capítulo do fabrico de armas, são referidos o arco e as flechas, a besta, armas de fogo… mas silêncio absoluto sobre a espada. Porque haveria um manual de ensinar a fabricar um instrumento, afinal, ainda de características tão perigosas?

 

2.3. Da Espada e do Livro

Tivemos em Wen e Wu dois grande e sábios reis. Trataram conscienciosamente dos assuntos de Estado e promoveram com zelo a conduta moral. A sua diligência e virtude tornaram-se famosas quer no Céu quer na Terra. O Céu, portanto, confiou ao rei Wen o seu mandato.
in Shu Jing, Livro de História

Numa extraordinária floresta, à saída da cidade de Qufu, província de Shandong, está situado o túmulo de Confúcio. Todo o bosque é um enorme cemitério, cuja idade remonta pelo menos há 2500 anos. Os discípulos que aí se deslocavam em romariam eram supostos trazer uma árvore para plantar da sua terra natal. Este facto proporciona hoje ao visitante a contemplação de uma flora bem diversa, no meio da qual se espalham os túmulos. Antes de chegarmos ao local onde repousa o Venerando Mestre, depois de percorrer uma álea empedrada, deparamos com duas enormes estátuas de pedra, espécie de guardas daquele espaço sagrado. Um segura de encontro ao peito um livro, o outro segura uma espada.

Estes dois símbolos parecem constituir os dois fundamentos do poder na China. Curiosamente, ao contrário de outras mitologias, onde o carácter militar, guerreiro, mágico, precede o estabelecimento da ordem e é fundador; na China o livro precede a espada e esta surge já domesticada pela acção virtuosa que precedeu a sua aparição. Indispensável ao exercício do poder, a espada encontra-se, contudo, de certo modo, submetido ao ditame do livro.

É o que se torna evidente quando olhamos para a história fundacional da dinastia Zhou (1122-256 A.C.). O seu primeiro soberano ficou conhecido por rei Wen, que era um génio civilizador, pleno de virtude e compaixão, que não se vingava dos seus inimigos e que chegou mesmo a prescindir de parte dos seus domínios em troca do fim da tortura da trave. Nas suas terras reinava a harmonia – os camponeses cediam uns aos outros nas discussões sobre os limites dos campos e todos cediam aos mais velhos. Perante este reino de virtudes os Chefes entenderam que Wen tinha o mandato do Céu e rapidamente foi deposta a dinastia Yin, encabeçada por um déspota, para que se iniciar a dinastia dos Zhou. Reconhecido, Wen não entabulou nenhuma guerra contra o rei Zhouwang, o último dos Yin. Foi ao seu filho, o rei Wu, a quem coube a materialização da vitória. Lançou-se na guerra contra Yin porque o tirano “oprimia as Cem Famílias”. Vencedor incontestado, Wu consolida o poder da dinastia.

Temos então os dois aspectos da monarquia, mas a virtude ordenadora precede o aspecto marcial e, de certo modo, controla-o. O mandato celeste pertence a Wen e só depois a Wu. Aliás, os próprios nomes Wen e Wu transformaram-se em conceitos que descrevem os soberanos posteriores como possuindo em maior quantidade uma ou outra qualidade. Wen significa, numa tradução alargada, cultura, ordenamento, virtude, enquanto que Wu se refere ao carácter marcial do exercício do poder. Se, por um lado, compreendemos que o Livro precede a Espada; por outro torna-se claro também que sem a acção cortante se torna impossível estabelecer um reino virtuoso. A espada ascende a símbolo real, de guardião da justiça e garante mesmo da aplicação do Livro, presente no túmulo do criador do pensamento que viria a ser considerado doutrina de Estado ao longo da extensa história da China.

 

3. A espada que corta jade e neblina

A dualidade sexual da espada nas concepções chinesas, simplesmente, significa também que esta possui uma natureza totalizante. Daí que exista o perigo de se transformar em dragão, um animal que também reúne em si várias naturezas e por isso representa também a totalidade. Essa sua característica encontra-se também relacionada com o facto de a espada ser instrumento de vida e de morte, capaz de cortar, mas também de religar e de manter intactas essas mesmas ligações.

Neste sentido existe também uma relação próxima entre a espada e a alquimia, não apenas pela relação íntima entre os alquimistas e os ferreiros – até porque a forja é o primeiro espaço alquímico, mas sobretudo porque, como já vislumbrámos, a espada é mestra do Tempo. Faz parte das suas qualidades cortar com o Tempo passado e preservar o novo Tempo, empurrando assim a História para a sua finalização, tal como o alquimista procura o controlo da historicidade, nomeadamente através da demanda da imortalidade.

Falam os chineses de uma famosa espada que “corta o jade e a neblina”. Eis os dois pólos de um instrumento capaz de destruir o material mais duro mas também de afastar o resíduo mais mole, conhecido por confundir os guerreiros. Só uma mente clara e um espírito virtuoso compreenderão o manejo da espada e dos seus símbolos. Os outros, que não queiram seguir a Virtude (De), deverão quedar-se pela sua contemplação.

 


 

A espada sínica

 

Na China, os dois tipos básicos de espadas eram direitos: a jian, de lâmina dupla, e a dao, de uma só lâmina. Enquanto a jian manteve a sua forma básica, a dao evolui para muitas formas diferentes, graças à influência da guerra e do comércio. A zhibeidao, uma espada direita de uma só lâmina, foi exportada para o Japão durante a dinastia Tang (600-900), onde evolui para a forma curva do tachi e depois para a katana. A sua copa, em forma de disco, desenvolveu-se no Japão e foi mais tarde adaptada para ser utilizada nas espadas chinesas.

Os encontros com as tribos nómadas da Ásia Central levaram ao desenvolvimento da peidao, um verdadeiro sabre de lâmina curva. As espadas destas tribos nómadas influenciaram mais tarde o desenvolvimento de lâminas curvas por toda a Ásia, Europa de Leste e Médio Oriente.

O comércio ao longo da Rota da Seda espalhou as técnicas de fabrico de espadas nos dois sentidos. Motivos decorativos chineses surgem em espadas indianas e islâmicas, enquanto as lâminas facetadas de inspiração islâmica apareciam nas espadas dao.

É pacífico que o desenvolvimento das espada na China constitui um dos mais notáveis capítulos da história da espada. Os avanços chineses no bronze são bem conhecidos, mas ainda mais notável é o aperfeiçoamento chinês, cerca do ano 300 a.E.C., de técnicas de processamento do aço que hoje no Ocidente conhecemos por Processo de Redução de Carbono Siemans e Processo Bessemer, normalmente atribuídos aos séculos XIX e XX europeus.

Anos-luz à frente dos seus vizinhos, os Chineses desenvolveram estilos independentes e aplicaram criatividade e imaginação ao design das espadas. A Jian, espada direita de lâmina dupla, é um destes mais antigos designs. Sobreviveu até aos nossos dias e é normalmente encontrada nas mãos dos praticantes de artes marciais e tai chi. Uma grande variedade de sabres foi igualmente desenvolvida na China, desde o poderoso niuweidao (Sabre Rabo de Boi), de lâmina larga, ao mais refinado e suavemente curvo liuyedao (Sabre Folha de Salgueiro), bem como muitos outros tipos. Estas espadas exibem uma “pattern-welding” sofisticada, o uso de cal para um diferenciado tratamento de aquecimento, e também folha múltipla, semelhante, ou talvez mesmo ultrapassando, o fabrico e a performance das espadas japonesas.

Se bem que as espadas chinesas sejam as mais graciosas e tecnologicamente avançadas da história da humanidade, também é verdade que sofreram bastante em termos da continuidade do seu desenvolvimento. Em muitas épocas da história da China, a tecnologia do fabrico de espadas atingiu pontos incrivelmente elevados. Infelizmente, porque os métodos de produção eram normalmente considerados segredos militares, os conhecimentos da arte não eram passados a outros e morriam no espaço de uma geração. Os fabricantes de espadas que se seguiam tinham de descodificar poemas ou canções crípticas — se é que alguns existiam — para redescobrir as antigas técnicas, por vezes só o conseguindo alguns séculos mais tarde.

O uso da cal para obter diferentes níveis de dureza no gume e no corpo das espadas foi originalmente desenvolvido pelos chineses. Os Japoneses, cujas lâminas eram direitas nos primeiros tempos, adoptaram mais tarde esta tecnologia. (Estas lâminas eram conhecidas por chokuto ou “espada direita”). A cal era aplicada ao corpo e à parte detrás da espada enquanto o gume permanecia exposto. No fim do tratamento térmico do aço, no momento de temperar a lâmina, a cal permitia um arrefecimento diferenciado da própria lâmina. O gume exposto formava uma forma dura e cristalina de aço conhecida por martensite enquanto que o corpo arrefecia mais devagar e formava a pearlite, mais mole. Logo, na mesma lâmina era possível casar duas qualidades opostas. O aço duro do gume garantia a capacidade de corte e a resistência do revestimento enquanto o corpo mais mole oferecia maior tolerância ao choque e absorção do impacto. Forjada direita, a lâmina japonesa adquiria a sua curva quando temperada, porque o aço martensite do gume é molecularmente mais largo que a pearlite e logo a curva era o resultado natural do tratamento térmico.

 

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Notas 

  • 1. No mundo de hoje a espada surge como objecto estético, ligado fundamentalmente à colecção. No entanto, não perdeu nem um pouco o carácter de objecto de prestígio e de depositário de saber huamno quer do ponto de vista tecnológico, quer histórico, quer cultural.
  • 2. De notar que mesmo em exércitos relativamente modernos, como por exemplo o napoleónico, o uso da espada era reservado aos oficiais, apesar das armas de fogo desempenharem o principal papel nos combates. A espada é assim um signo de distinção e hierarquização social. É sabido que na Europa e noutras longitudes a aprendizagem da esgrima era reservada aos filhos das famílias nobres.
  • 3. Existem fabulosas histórias que referem a existência no passado de espadas extraordinárias, cujas virtudes em muito ultrapassam as contemporâneas. Lendas à parte, a verdade é que a partir do século IX, nomeadamente no Japão, pouco se acrescentou à arte de forjar e temperar espadas. Na China, a espada que cortava o jade é lendária, tal como a Excalibur celta cujo gume cortava indiferentemente metal e a pedra.
  • 4. A espada é um prolongamento do braço, o seu manejo um exercício da mente, a pistola é um prolongamento do desejo, mata à distância
  • 5. Conceito de Mircea Eliade que significa “algo de sagrado se mostra”. Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, Edições Livros do Brasil, Lisboa.
  • 6. É o caso da invenção do carro de transporte cuja primeira utilização era meramente ritual, servindo para transportar uma representação do disco solar, o que não deixa de ser um argumento para a teoria segundo a qual a invenção da roda terá nascido, antes demais, da representação do Sol. Cf. Eliade, Mircea; Ferreiros e Alquimistas; Relógio d’Água, pag.21.
  • 7. Mircea Eliade, op.cit.; pág. 19. Esquimós, Aztecas, Maias e Incas, que desconheciam a fundição, utilizavam o ferro celeste, a que davam mais valor do que ao ouro. Quando interrogados por Cortez de onde vinham as suas facas, os Aztecas apontaram para cima e responderam que vinham do Céu. Igualmente referências ao uso dos metais de origem celeste são verificadas na Suméria e na China.
  • 8. Casamento entre seres divinos. Cf. Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, op.cit..
  • 9. Num filme americano dos anos 50, “Treasures of Sierra Madre”, de John Houston, um velho mineiro insite em apagar os traços de uma mina já explorada, argumentado que tem de “sarar a montanha, reparar a ferida que lhe infligira”. Este caso demonstra que este tipo de concepção da mina enquanto ferida na Terra e da necessidade de a curar persistiu até muito recentemente.
  • 10. Granet, Marcel; Danses et Légendes de la Chine Ancienne; PUF, 1926.
  • 11. São, por exemplo, os casos descritos por Marcel Griaule entre os Dogon do Mali ou por Siegfried Nadel entre os Nupe da Nigéria.
  • 12. O primeiro imperador dos Han, Gao Zu, era de origens humildes. Ao que parece, seria dotado de um enorme carisma e sinalizado por várias marcas divinas, entre as quais 72 pontos negros na sua coxa esquerda. Este número refere-se à confraria e ao seu poder bélico. Gao Zu viria a recuperar o culto e as dansas de Chiyou.
  • 13. Granet, Marcel; Danses et Légendes de la Chine Ancienne; PUF, 1926.
  • 14. Existia na cidade de Gordium, na Ásia Menor, um nó de tal modo complicado que ninguém o conseguia desatar. Rezava a lenda que quem conseguisse tal façanha se tornaria senhor de toda a Ásia. Alexandre, perante a situação, não hesitou e de um golpe cortou o nó.
  • 15. Quando os primeiros mongóis desembarcaram no Japão, a sua infantaria venceu facilmente os samurais japoneses cujo desígnio guerreiro era o prestígio de encontrar um inimigo digno para entabular um combate individual. Só que quando os mongóis enviaram uma armada de duzentos mil homens para a invasão total, um tufão inesperado afundou e dispersou os navios, fazendo abortar os planos de conquista.
  • 16. “No Japão algumas facas e espadas são feitas de um aço fino que é processado cerca de cem vezes de tal modo que se a espada for erguida ao sol os seus reflexos são suficientes para iluminar um quarto interior. (…) Os Bárbaros (Japoneses) clamam que este aço é capaz de cortar jade. Eu próprio, no entanto, nunca assisti a esta proeza”. Este parágrafo está incluído na secção referente aos metais e não às armas.
  • 17. Cf. Georges Dumézil, Le heritage indo-européen à Rome; Gallimard, 1946. O autor descreve as características brutais, terríveis, dos fundadores de reinos como Rómulo, alimentado por uma loba (animal de Marte, deus da Guerra) e culpado de um crime abominável como o fraticídio, mas imbuído de suficiente sanha mágico-guerreira para fundar a cidade de Roma. O segundo rei de Roma, Numa, estabiliza a cidade através da criação das instituições político-jurídicas.
  • 18. Cf. Szuma Chien, Records of the Historian. The Commercial Press, HK.

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