Sheng-Ching Chang, historiadora de arte taiwanesa, leva ao grande público de língua chinesa o seu trabalho de 448 páginas “A New Perspective” sobre a já muitíssimo debatida matéria do encontro entre o Ocidente e o Oriente. Centrado no visual, o livro parece revolucionar a narrativa histórica de encontro sino-ocidental nos primeiros séculos da globalização.
Com o subtítulo em inglês “History of Eastern and Western Art Exchange under Globalization”, a obra da directora do instituto de estudos museológicos da Universidade Católica Fu Jen em Taiwan faz várias novas conclusões acerca dos intercâmbios multisseculares entre a China e o Ocidente, representado sobretudo pela França, Prússia ou Reino Unido.
Para além de se referir da influência do Eixo Central de Pequim na construção do Palácio de Versalhes e a inspiração do poder absoluto do Filho do Céu na França, o livro académico mas largamente acessível, conta várias histórias sobre o mútuo conhecer (e mal entender) entre os dois mundos .
Sendo admirador do rigor e da humanidade da professora, pude antecipar alguns aspectos da eventual tradução alemã de “Uma Nova Perspectiva”, após assistir o seu seminário “Pontes de Inspiração: Intercâmbio Cultural e Artístico entre a China e a Europa” na Universidade Técnica de Berlim.
Falando cantonense como língua materna, não percebi logo que o título do livro em mandarim de “Uma Nova Perspectiva” é um jogo de palavras: tem a mesma pronúncia como “O Novo Mundo”. Um ideograma que se vê na capa é 視 (visão, “shì” em mandarim), o qual, na sua origem trimilenária, partilha a mesma forma com o caracter 見 (ver, pronunciado “kin” em cantonense), um grande olho com dois pés.
Palácios europeus com cosmologia chinesa
O “Eixo Central de Pequim: Um conjunto de edifícios exibindo a Ordem Ideal da Capital Chinesa” (nome oficial) ficou recentemente classificado como Património Mundial da UNESCO. Entretanto, o estudo de Chang procura oferecer uma nova leitura da história da globalização e a inspiração chinesa nos palácios de França e Prússia e tematiza os primeiros três dos sete capítulos do seu livro.
No primeiro capítulo sobre este eixo e o cosmo da China, são apresentadas várias gravuras de plantas de Pequim. Chama-se a atenção para para uma imagem de Pequim com a Cidade Proibida como uma planta centralizada, isto é, na forma de uma quadrática, apresentados numa gravura em cobre (1665) do explorador e artista holandês, João Nieuhof (1618-1672). No contexto macaense, Nieuhof é conhecido sobretudo graças à sua famosa gravura de Macau em defesa contra os navios holandeses, obra esta que foi feita por volta de 1665.
Para os efeitos, Augusto II da Polónia (1670-1733) tinha a vontade de fazer com que o seu Grande Jardim (“Jardim Imperial”, na tradução chinesa de Chang) de Dresda fosse um “estádio da maior perfeição”. Segundo a investigação da professora, o também eleitor da Saxónia mandou o arquitecto Johann Friedrich Karcher (1650-1726) fazer o projecto, cuja versão dos anos de 1690 foi justamente inspirada por um Pequim quadrático teorizado nas obras de Nieuhof.
A historiadora refere uma “Planta da Cidade de Pekim”, desta vez um pouco mais realista mas sempre na forma de tabuleiro de xadrez. O mapa está incluído em “Nova Relação da China” (escrito em 1668 e apenas publicado 20 anos depois) do jesuíta português, Gabriel de Magalhães (1610-1677). “No meio há um claro eixo central. Este é o eixo do rei”, descreve Chang, que prossegue com a sua conclusão que França adoptou o citado eixo real.
“Na segunda metade do século XVII, as imagens da capital chinesa já circulavam na Europa. Luís XIV de França tomou o imperador chinês como modelo, no caso, na integração do elemento mais importante da capital da China – o eixo central – no plano de construção do palácio (de Versailles). Embora o eixo de Versailles seja latitudinal e o da Cidade Proibida longitudinal, o emprego do eixo chinês destina-se ao novo ideal de palácio que representa uma monarquia absoluta”, refere a também museóloga.
Ananás e o dragão que já não é mais dragão
Em Junho de 2016, na véspera da visita de estado de Xi Jinping à Polónia, o presidente chinês assinou um artigo no jornal polaco “Rzeczpospolita” (A República) com o fim de incentivar as relações bilaterais. Neste texto, o nome de um jesuíta, Miguel Boym (1612-1659), foi evocado como “Marco Polo da Polónia”. Assim, o grande público do país ficou a (re)conhecer esta personalidade histórica, que muito contribuiu para o conhecimento da China na Europa.
A maior passagem relacionada a Macau no livro de Chang é justamente uma investigação sobre a propagação do ananás pelo missionário natural de Levive (da então Polónia-Lituânia) como um produto exótico sínico, embora este fruto tenha tido a sua origem na América do Sul. Na sua obra, a erudita afirma que a Espanha plantou os primeiros ananases na Europa em 1514, mas sublinha igualmente que Boym foi “o primeiro europeu” que posteriormente “reportou (a existência de plantações de) ananás no sul da China”.
Sabe-se que os espanhóis e os portugueses trouxeram plantas da América do Sul e introduziram-nas em diversas zonas tropicais e depois chegaram à China.
A audiência de Macau conheceu os desenhos de ananás constantes no clássico boymiano “Flora da China” (1656) através das cópias à mão do respeitado sinológo polaco Edward Kajdański (1925-2020). A exposição foi acolhida, em 2014, pela Biblioteca Sir Robert Ho Tung e co-organizada pelo Consulado Geral da Polónia e Instituto Ricci.
O quarto capítulo de “Uma Nova Perspectiva” aborda exactamente uma história visual da globalização sempre actual ao recorrer à história da veneração do ananás no Ocidente nos muitos aspectos da vida europeia, nomeadamente na arquitectura. A investigação de Chang concentra-se no saber sínico promovido pelos jesuítas no Velho Continente através das gravuras históricas, mas parecem haver, no livro, poucas referências ao ananás como um dos símbolos da globalização que chegou ao Oriente: os relógios cantonenses e pequinenses com decoração de ananás do século XVIII, hoje colecionados pelo Museu do Palácio de Pequim.
A parte que se segue esclarece a génese do dragão “internacional” reinventado pelos jesuítas na Europa, sobretudo por Atanásio Kircher, originário do Sacro Império Romano-Germânico e que mereceu uma ficção histórica escrito pelo escritor francês Jean-Marie Blas de Roblès, “Lá Onde Os Tigres Se Sentem Em Casa” (Prémio Médicis 2008).
Conforme apresentado em “Uma Nova Perspectiva”, um retrato do “Monarca supremo do Império Sino-Tartárico”, integrado em “China monumentis” (1667) de Kircher, demonstra como um traje de imperador manchu está costurado como um dragão europeu medieval, que “nada a tem a ver com o manto de (verdadeiro) dragão do imperador chinês”, observa a conhecedora da obra de Kircher.
Ao exemplificar ainda os motivos de dragões da Casas Chinesa e do Dragão no Palácio Sanssouci que Frederico II da Prússia mandou construir no meio do século XVIII, a professora parece reiterar que o dragão já era um produto de miscigenação, pelo menos entre as elites europeias.
Mais um exemplo visual ilustrado pelo livro, que é considerado enriquecedor para o sentido da palavra “dragão” nas línguas europeias, é uma tapeçaria da Real Manufactura de Beauvais, “História do Imperador da China” (séc. XVIII, colecção Louvre). Este dragão, europeu e orientalista, verifica justamente o primeiro passo da globalização linguística da palavra em latim, “draco”. Chang, ao comentar o tecido, indica que “(os dragões) são objectos de decoração que adornam a cidade imperial, simbolizando o poder e a autoridade do imperador (chinês).”
Lembra-se da bandeira do dragão vermelho (e europeu, “Ddraig Goch”) do País de Gales: o próprio dragão é também um “produto” importado na Grã-Bretanha pelos romanos.
Sinologia é tradução
Parece-me interessantíssimo comparar as evoluções visual e linguística do conhecimento da China no Ocidente. Quando observamos o dragão chinês visualizado no século XVII, isto é, um dragão praticamente medieval e europeu, bem como a invenção da tradução “dragão” do ideograma sino-confucianista “龍” (pronunciado “long” em cantonense, mandarim, e nos dialectos de Fucheu ou Xangai) terem a mesma origem: a procura de conhecer (e cristianizar) o Extremo-Oriente pelos jesuítas.
Vejo automaticamente a professora Chang, que lecionou em alemão, como sinóloga, pois estudar a China numa língua fora do chinês (mesmo em coreano, japonês ou vietnamita), é um permanente acto de tradução.
Uma outra fonte de inspiração de “Uma Nova Perspectiva” é, para mim, justamente a abordagem da história de arte por Chang, que espelha igualmente o visual produzido hoje: mesmo com o avanço de tecnologia, isto é, substituindo as imagens mais antigas da China semi-imaginárias por outras reais, o olhar exotizante e orientalista do Ocidente persiste de alguma forma até hoje, tanto na fotografia como no cinema.
Num próximo artigo, teremos o prazer de continuar a dar a conhecer a investigação de Sheng-Ching Chang referindo aos dois últimos capítulos de “Uma Nova Perspectiva”, onde esta autora procura explicar como o visual do Yi Jing (Iek Keng em cantonese) – o Livro das Mutações – inspirou o grande polímata saxónico, Godofredo Guilherme Leibniz.
