Lu Xun
Diário de um Louco é a primeira ficção escrita em chinês moderno por Lu Xun após o seu longo silêncio literário, que naturalmente incorporou a sua raiva e ansiedade, bem como a sua esperança. Este conto complexo é também um exemplo da sua profunda compreensão da história e da sociedade chinesas, pelo que pode ser lido como o seu manifesto anti-feudal e marca o início do seu percurso como o maior escritor moderno da China.
Tradução e notas Sara F. Costa
Introdução
Relato agora a história de dois irmãos, cujos nomes prefiro não mencionar. Foram, outrora, meus colegas de escola mas o tempo transformou-os em meros ecos na minha memória. Recentemente, soube que um deles estava gravemente doente. Um dia destes, de visita à terra, fiz um pequeno desvio para o visitar. No entanto, em vez do enfermo, encontrei apenas o seu irmão, que, com um sorriso de alívio, partilhou a boa nova da recuperação do doente. “Agradeço-te muito por te teres dado ao trabalho de nos vires visitar; o meu irmão está recuperado e é agora supranumerário, está numa posição governativa”. Entre risadas, com um gesto rápido, sacou de um caderno que logo segurou na minha direção. Tratava-se de um diário que o irmão mais novo escrevera durante o período em que esteve doente. “Leia-o”, disse-me, “o meu irmão certamente não se importaria de o partilhar com um velho amigo”.
Nas páginas daqueles diários, desenrolava-se a narrativa de uma batalha interna contra sombras invisíveis, uma ‘mania da perseguição’ que entrelaçava realidade e delírio. As palavras, embora caóticas e repletas de absurdo, traçavam um retrato vívido de uma mente atormentada. Os textos não tinham datas mas era evidente pela variação na tinta e na caligrafia que tinham sido escritos em momentos diferentes. Naquela confusão de palavras, havia trechos coerentes, que agora transcrevo para análise. Os nomes dos envolvidos, todos aldeões de uma vida singela, foram cuidadosamente omitidos. Quanto ao título, que coroa estas memórias, foi escolhido pelo próprio autor e assim o deixei, intacto.
DIÁRIO DE UM LOUCO
I
Há tanto tempo que não via a lua! Ontem à noite, ao banhar-me no luar, senti um bem-estar incomparável! Já não fazia isto há trinta anos! Senti o meu espírito rejuvenescer! Compreendi, naquele momento, que tinha desperdiçado trinta anos da minha vida. No entanto, senti também que algo não estava a bater certo. O cão dos Zhao estava a olhar para mim de uma maneira estranha.
Sim, acho que tenho motivos para me preocupar.
II
Hoje não há luar e isso não é bom sinal. Saí cedo de manhã, com cautela. O olhar do Sr. Zhao pareceu-me estranho: parecia ter medo de mim, parecia querer magoar-me. À medida que passava, reparei em, pelo menos, mais sete ou oito pessoas a sussurrarem e a olharem para mim de uma forma invulgar. Toda a gente que encontrei ao longo do caminho agia da mesma maneira. Havia um homem que me sorria com particular malícia. Senti-me intimidado, mas não deixei que essa gente levasse a melhor, pelo que continuei o meu caminho. Mais à frente, um grupo de crianças agia como se quisesse esconder algo, cochichavam entre si. Também elas, as crianças, me olhavam com o mesmo tipo de ódio que vira nos olhos do Sr. Zhao! Não fazia ideia de que as crianças pudessem ter comportamentos tão hostis! Perguntei-lhes qual era o problema, mas puseram-se logo a andar. A certa altura, dei por mim a pensar: mas será tudo na minha cabeça? O que é que o Sr. Zhao e os outros têm contra mim? É verdade que há vinte anos, quando era miúdo, pisei o velho livto de contas do Sr. Gu Jiu e ele ficou furioso! Contudo, o Sr. Zhao não conhecia o Sr. Gu Jiu. Só se alguém lhe contou alguma coisa. Teriam combinado todos olhar-me com desdém naquele dia? Mas as crianças, como poderiam saber desse episódio se ainda nem eram nascidas quando isso aconteceu? Como poderiam olhar para mim daquela forma? Que irritante! Os pais devem ter-lhes dito alguma coisa!
III
Não consigo dormir. Preciso de analisar o que aconteceu. Aqueles indivíduos, vítimas de infortúnios diversos — uns castigados pelo magistrado, outros humilhados com bofetadas pelos nobres da terra, alguns despojados de suas esposas pelos oficiais de justiça, ou com pais conduzidos ao suicídio pela pressão impiedosa dos credores — nunca exibiram um ar tão aterrado e ao mesmo tempo tão feroz como o que demonstraram ontem.
De regresso a casa presenciara um espetáculo deveras extraordinário: uma mulher, em plena via pública, a repreender veementemente o seu filho com palmadas. ‘Pequeno diabo!’, exclamava ela com ímpeto, ‘Estou tão furiosa que me apetecia morder-te!’ Apesar de estar a falar com o filho, olhava fixamente para mim. Não consegui esconder a minha inquietação. Foi então que toda a gente à minha volta, de semblantes pálidos e dentes invulgarmente salientes, irromperam à gargalhada. O Velho Chen, percebendo o meu desconforto, apressou-se a levar-me para casa. Qual não foi o meu espanto quando reparo que toda a gente, na minha própria casa, finge não me conhecer? Tinham partilhavam o mesmo olhar tanto os de dentro, como os de fora. Assim que entrei, trancaram-me logo no quarto como se estivessem a enjaular uma galinha ou um pato. O que raio está a acontecer?
Há dias, um arrendatário da Aldeia do Lobo veio cá a casa queixar-se sobre o fracasso das colheitas este ano e pedir para que o meu irmão lhe baixasse a renda. Nisto, contou ao meu irmão mais velho que uma figura infame da sua aldeia tinha sido espancada até à morte; dizia ele que algumas pessoas haviam retirado o coração e o fígado do homem, o haviam fritado em óleo e comido. Explicou que assim cozinhado, todos teriam mais facilidade em mastigar a carne humana. Quando os interrompi, tanto o arrendatário como o meu irmão pararam e olharam-me fixamente. Que ingénuo sou! Só hoje percebi que o olhar deles era exatamente igual ao das pessoas lá fora.
Só de pensar nisso estremeço da cabeça aos pés.
Se eles comem seres humanos, podem perfeitamente comer-me a seguir.
Agora, tudo fazia sentido. Tanto aquela mulher a gritar “apetece-me morder-te”, como aquelas gargalhadas venenosas daqueles fulanos que tinham dentes como adagas. Obviamente que utilizavam esses dentes horríveis para comer pessoas.
Eu não sou má pessoa, mas desde que calquei acidentalmente os registos contabilísticos do Sr. Gu, a minha vida nunca mais foi a mesma. Essa gente mantém segredos e, quando se irrita, dispara blasfémias contra a primeira pessoa que virem pela frente.
Ponho-me a pensar nas aulas de redação que tive no liceu, o meu professor dizia sempre:
“É sempre possível meter abaixo um homem bom. Já um homem mau tem sempre quem o desculpe e justifique, fazendo toda a gente acreditar que ele não é mau, ele é só ‘diferente’”.
Seria possível decifrar os pensamentos ocultos daquelas pessoas más que chegavam ao ponto de comer carne humana?
Nervoso, pus-me a investigar tudo o que conseguia. Os cadernos do liceu, ao meu lado, pediam-me que os lesse. Sem poder sair do quarto, aquela era a única forma de me preparar para o que ali vinha. Eu já tinha ouvido falar em canibalismo, mas pouco ou nada sabia sobre o assunto. Li aqueles cadernos de início ao fim. Deveria haver uma parte qualquer que falasse sobre este fenómeno. O problema era que não conseguia compreender a minha própria escrita, como se alguém tivesse rescrito os meus cadernos de liceu com a sua própria letra. Ao longo das páginas, entre gatafunhos, encontrava frequentemente a expressão “Virtude Confuciana”. Passei a noite a ler e a reler o que conseguia até que, a certa altura, tudo se tornou evidente. Havia uma mensagem nas entrelinhas daquelas páginas. Essa mensagem era constituída por apenas duas palavras: “comer pessoas”. Era óbvio que aquela gente comia pessoas e eu estava na ementa.
IV
Na manhã seguinte, mantive-me muito quieto enquanto o Velho Chen me trazia o pequeno-almoço – um prato de verduras com peixe. Os olhos do peixe eram muito esbulhados e aquela boca aberta com dentes temerosos lembrava aqueles que por aí andavam a comer pessoas. Levei um pedaço de comida à boca, comi um pouco. Mas no momento em que sinto aquela carne de peixe escorregadia dentro da boca, já não sei se era de carne de peixe ou carne de pessoa. Vomitei tudo, o pequeno-almoço, as tripas, o estomago e tudo o que mais havia dentro de mim. Disse ao Velho Chen: “Diz ao meu irmão mais velho que não me estou a sentir bem, quero dar um passeio pelo jardim!” O Velho Chen não quis responder e foi-se embora. Pus-me a estudar, a pensar como é que me iriam manipular, sabendo que não me deixariam descansado. Preparava-me para o pior, iria enfrentá-los! O meu irmão entrou na sala na companhia de um homem de cabelo grisalho. Também os seus olhos tinham um brilho assassino. Com medo que eu desse por ela, baixou a cabeça e olhou para o chão, em jeito de disfarce.
“Pareces estar tão bem hoje!” – disse o meu irmão.
“Sim.” – respondi.
“Trouxe o Sr. Ho para te examinar, ver o que se passa contigo.” – explicou.
“Está bem.” – respondi.
Sabia perfeitamente que aquele homem era um carrasco disfarçado! Sentir o meu pulso era apenas um pretexto para avaliar o quão gordo eu estava, para perceber se a minha carne era boa. Ainda assim, não tive medo. Não, não como seres humanos, mas sou corajoso, mais corajoso que eles. Estendi-lhe os meus punhos para ver o que ele faria. O velho sentou-se, fechou os olhos, andou às apalpadelas durante algum tempo, permaneceu imóvel por um momento; depois abriu os olhos matreiros e disse: “Não te deixes levar pela imaginação. Repousa por uns dias e logo ficarás melhor.”
Não penses nisso? Repousa? Estão mas é à espera de que eu engorde. Como é que era suposto eu ‘melhorar’? Esta gente não tinha coragem de ser frontal, ridículos! Ri-me, e naquele riso havia coragem e justiça. O velho e o meu irmão perderam a cor. Perceberam do que eu era capaz e sentiram-se intimidados. Aproveitaram a desculpa para não me fazer nada, para me fazer esperar um pouco mais. Quanto mais coragem eu mostrava, mais vontade eles tinham de me comer. O velho saiu porta fora e ouvi-o murmurar, dirigindo-se ao meu irmão: “É melhor comê-lo já”. O meu irmão acenou com a cabeça.
Também ele estava envolvido nisto tudo! Eu era, afinal, o irmão de um canibal que oferecia o corpo do seu próprio irmão para ser devorado.
V
Tenho estado a pensar que, mesmo que aquele homem não fosse um carrasco disfarçado, mesmo que ele fosse um médico, ele era na mesma um canibal. No Compêndio de Matérias Médicas escrito por Li Shizhen pode ler-se com toda a clareza que a carne humana pode ser consumida. Esse homem, como médico, sabia-o perfeitamente. Tudo começava a fazer sentido. Recordei-me que o meu irmão mais velho me disse muitas vezes que havia quem trocasse os filhos por alimentos e, ocasionalmente, era capaz de referir-se a pessoas de quem não gostava desejando que morressem e que a seguir fossem “devoradas”. Eu era demasiado novo e ficava assustado com este praguejar do meu irmão. Quando aquele arrendatário nos veio falar do homem a quem tinham comido o coração e o fígado, ele não se surpreendeu minimamente. O meu irmão é cruel! Se era capaz de trocar crianças por comida, já agora podia também trocar qualquer pessoa por comida. Eu costumava dar-lhe ouvidos, mas compreendo agora que o meu irmão falava com os lábios sujos de sangue.
VI
Está escuro. Não sei se é dia ou de noite. O cão do Sr. Zhao voltou a ladrar.
A ferocidade de um leão, a timidez de um coelho, a esperteza de uma raposa…
VII
Eu sei o que pretendem. Não estão dispostos a matar diretamente, nem ousariam, com medo das consequências. Em vez disso, uniram-se e puseram armadilhas por todo o lado, forçando-me ao suicídio. O comportamento das pessoas na rua há alguns dias e a atitude do meu irmão mais velho tornam isso bastante evidente. O que eles queriam era que um homem sacasse do próprio cinto e se enforcasse numa viga; assim, podiam satisfazer os seus desejos e ninguém os podia incriminar. É isso que lhes dá prazer! E mesmo que um homem morra de medo ou de ansiedade e isso o deixe mais magro, ainda assim acenam em aprovação.
Eles só comem carne morta! Recordo-me de ter lido sobre uma criatura horrenda, com um olhar sinistro, conhecida como “hiena”, que frequentemente consumia carne morta. Era uma besta capaz de triturar até os maiores ossos, reduzindo-os a fragmentos antes de engoli-los. Dá arrepios só de pensar. As hienas são parentes dos lobos, que pertencem à família canina. Recentemente, o cão da família Zhao lançou-me olhares suspeitos, indicando claramente que também faz parte deste enredo mórbido, como um cúmplice. O olhar que aquele velho quis esconder foi muito óbvio. O meu maior desgosto é saber que o meu irmão está envolvido nisto. Ele também é um ser humano! Não terá ele alguma misericórdia? Será que está tão habituado àquilo que já nem se questiona? Ou cometerá este crime tendo consciência de tudo? Se quero travar os canibais, começarei pelo que me está mais próximo.
VIII
Na realidade, acho que eles já fazem isto há muito tempo.
Subitamente, havia um rapaz no meu quarto. Não tinha dado por ele. Parecia ter pouco mais de vinte anos. Não conseguia ver-lhe bem as feições, mas lembro-me que sorria de orelha a orelha. Sorria um sorriso que não era autêntico. Perguntei-lhe: “Achas correto comer pessoas?”, respondeu sem tirar da cara aquele sorriso estúpido: “Quando não há fome, porque haveria alguém de comer outro homem?” Percebi prontamente que ele fazia parte do grupo. “O que te leva a perguntar tal coisa? Gostas mesmo de brincar. Está um excelente dia hoje!”, mas eu insisti “E achas isso bem?” Incomodado, respondeu “Não…” “Não? Então porque é que o fazes na mesma?”; “Do que é que estás a falar?”; “Do que é que estou a falar? Sei muito bem do que é que estou a falar. Há uma explicação muito simples para o caso do homem comido na Aldeia do Lobo, essa explicação está escrita por todo o lado a letras grossas vermelhas!” A expressão do rapaz alterou-se. “Talvez assim seja…” respondeu, olhando para mim fixamente “Sempre foi assim…”. “E está certo?” “Recuso-me a falar disto contigo. Aliás, não devias falar sobre isso com ninguém.” Quando olhei novamente, o rapaz já se tinha ido embora. O suor que me encharcava o corpo não me toldava a lucidez. Ele era bem mais jovem do que o meu irmão mais velho, mas, mesmo assim, estava envolvido. Deve ter sido ensinado pelos pais. Receio que já o tenha até ensinado ao filho; é por isso que as crianças me olham com tanto ódio.
IX
Todos se querem comer uns aos outos enquanto se espiam mutuamente, para não serem eles a comida. Se pudéssemos acabar com estas ideias, que bom seria! Trabalhar, andar, comer, dormir, tudo sem preocupações! Bastava ultrapassar um único obstáculo. Mas sei que formaram um grupo: pais e filhos, irmãos, cônjuges, amigos, mestres e discípulos, inimigos, até desconhecidos, convencem-se reciprocamente, acorrentam-se uns aos outros e impedem que alguém se decida a atravessar esse obstáculo insignificante.
X
Hoje de manhã, bem cedo, fui procurar o meu irmão; ele estava a olhar para o céu à porta da sala. Coloquei-me às suas costas, mesmo no meio da porta, e disse-lhe num tom extraordinariamente calmo e amável: “Irmão tenho uma coisa para te dizer.” “Diz!” Ele virou a cabeça muito depressa e consentiu com um gesto. Eu disse-lhe: “Disponho apenas de algumas palavras, contudo, não as posso dizer, são-me proibidas de pronunciar. Irmão, remontando aos alvores da humanidade e às tribos primitiva podemos observar que a prática de canibalismo era comum e banal. Com o passar do tempo, fomos evoluindo intelectualmente. Muitos desses povos abandonaram tal hábito, viraram-se para outros lados, reconheceram-se humanistas. Outros, contudo, persistiram nessa prática degradante. Uma prática praticada por vermes, peixes, aves, primatas. Essa prática, infelizmente, ainda continuou a existir entre humanos durante muito tempo. Como vês, existem aqueles que rejeitam a bondade, mantendo-se como vermes até aos dias de hoje. A vergonha de um canibal é incomensuravelmente maior do que a do homem que rejeita tal prática. Suspeito que seja infinitamente mais desprezível do que o mais envergonhado dos macacos perante um verme. Yi Ya cozinhou o seu próprio filho, dando-o a comer a Jie e Zhou; esta é uma história clássica, por todos conhecida. Todos sabemos que, desde que Pangu separou o céu e a terra, os homens se comem uns outros; até ao tempo do filho de Yi Ya foi assim, e depois também até ao tempo de Si’ Si-Lin e desde Si’ Si-Lin até ao homem na aldeia dos Lobos. Há hoje homens que continuam a comer os seus semelhantes. Lembras-te daqueles criminosos que foram decapitados no ano passado, lembras-te daquele homem tuberculoso que se apressou a beber o sangue ainda quente dos executados?. Eu sei, irmão, eles querem comer-me e, claro, tu sozinho não podes fazer nada; no entanto, que necessidade tens de te juntares ao grupo deles? Os devoradores de homens são capazes de tudo; comem-me a mim, comem-te a ti e, dentro do grupo, comem-se uns aos outros. E podíamos mudar isto! Bastava um único movimento, uma mudança que duraria apenas um instante, para que a paz reinasse novamente entre os homens! Mesmo que tenha sempre sido assim, podemos hoje romper com essa prática e tornarmo-nos homens melhores, temos de gritar, irmão, tenho a certeza de que és capaz de fazer o que está certo. Tu sabes ao que me refiro, tu ouviste o nosso inquilino quando cá veio pedir para baixar a renda. Inicialmente, o meu irmão limitou-se a um sorriso frio, porém, gradualmente, os seus olhos assumiram uma expressão selvagem; e, ao tomar consciência das coisas, ele empalideceu.
Diante da porta da frente, aglomerava-se uma multidão. Entre eles estava Chao, o rico, e seu cão. Estendiam os pescoços, ansiosos por vislumbrar o espetáculo. Alguns rostos estavam encobertos, tornando-se irreconhecíveis; outros, familiares, exibiam-se vampíricos, com sorrisos tortos. Eu sabia que eles eram o grupo canibal. Contudo, estava ciente da sua heterogeneidade: uns acreditavam na necessidade de consumir carne humana por tradição, enquanto outros, conscientes da imoralidade, desejavam persistir neste ato, temendo simultaneamente ser delatados. Assim, quando me ouviram, reagiram com fúria, embora houvesse apenas um sorriso gelado nos seus lábios crispados.
Foi aí que o meu irmão ficou furioso e gritou: “Fora, todos vocês! Porque é que querem ver um louco?”
Nesse momento, compreendi plenamente os seus motivos. Não só não iam parar com a barbárie, como já tinham tudo preparado para me acusarem de loucura. A morte de um louco não tem a mínima importância. Assim, quando me comerem amanhã, para além de não ter acontecido nada aqui, até haverá pessoas que lhes ficarão gratas. Quando o arrendatário disse que tinham comido um homem infame, ele estava a dizer que haviam comido um homem que sabia demasiado.
O Velho Chen tentou parar-me, mas a mim ninguém me cala! Disse-lhes, por entre gritos: “Transformem o íntimo do vosso ser! Lembrem-se, os canibais não cabem neste mundo. Se persistirem, serão engolidos. Podem ser muitos, mas não serão suficientes para derrotar o verdadeiro humano. É ele quem vos vai aniquilar, tal como um caçador aniquila um lobo ou como se calca um verme!”. O Velho Chen conseguiu, finalmente, dispersar a multidão. Não havia rasto do meu irmão mais velho.
A moradia estava escura e lúgubre. As vigas e os citrinos oscilavam acima de mim, amontoavam-se sobre mim, esmagavam-me com o seu peso. Não conseguia mexer-me, quase desejava a morte. Mas eu encontrei as forças em mim, sabia que o aquele peso não era real e resisti com tudo o que tinha. Mas estou a divagar.
“Mudem imediatamente, é o que vos digo! Não haverá espaço para o canibalismo no futuro!”
XI
O sol deixou de despontar no horizonte. A porta permanece selada. Alimento-me duas vezes ao dia. Penso no meu irmão enquanto como. Recordo-o, reconhecendo-o como o único culpado pela morte da minha irmã mais nova. Ela tinha apenas cinco anos. Ainda me lembro da sua figura encantadora e delicada. A minha mãe, inconsolável, chorava sem cessar, e foi ele quem a persuadiu a cessar as lágrimas; talvez porque fosse ele quem a devorara, e o lamento materno lhe causasse vergonha. Isto se tivesse, pelo menos, a capacidade de sentir vergonha. Também não posso afirmar com toda a certeza que a minha mãe nunca chegara a saber que a minha irmã tinha sido comida pelo meu irmão. NA realidade, suspeito que ela tivesse conhecimento disso. As suas lágrimas frequentes, embora não explicitamente reveladoras, traduziam uma aceitação resignada daquela realidade. Recordo-me quando tinha cerca de quatro ou cinco anos, de estar sentado à porta da sala e do meu irmão me dizer que somente um filho capaz de cortar um pedaço da sua própria carne, cozinhá-lo e oferecê-lo aos pais enfermos, poderia ser considerado um homem de bem; e a mãe, naquela ocasião, não o contrariou. Se é possível comer um pedaço de carne humana, então, por extensão, tudo é comestível! Contudo, agora que recordo, aquele modo de chorar era deveras desolador. É verdadeiramente bizarro!
XII
Não consigo pensar mais no assunto. Até agora nunca me tinha apercebido de que vivi durante anos e anos num lugar onde, há quatro milénios, se comiam homens; quando a minha irmã mais nova morreu, o meu irmão passou a tratar das tarefas domésticas; tendo em conta este contexto, talvez não fosse particularmente inadequada a presunção de que ele nos tivesse dado a minha irmã mais nova a comer, sem que o soubessemos, misturada com a restante comida.
Talvez eu tenha comido, sem saber, um pouco da carne da minha irmã mais nova, e talvez seja agora a minha vez? Agora que tomei consciência da realidade, como irei algum dia voltar a ver um ser humano à frente? Não, não consigo pensar mais nisso.
XIII
Talvez ainda haja crianças que não tenham comido carne humana.
Salvem as crianças!
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- Prefácio: Também designado por “exórdio” ou “introdução”, sendo igualmente referido como “prólogo”, “preâmbulo” ou “introdução”, constitui um texto inserido antes do corpo principal de uma obra escrita ou de uma secção de “introdução”. No presente artigo, desempenha a função de rodução”, com o propósito de fornecer uma breve explicação do conteúdo subsequente.
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Um “supranumerário” na China da Dinastia Qing era um indivíduo que obtinha um título oficial através de exames imperiais ou de contribuições financeiras, mas que ainda não tinha sido nomeado ou designado para um cargo oficial específico. Estes supranumerários aguardavam pela atribuição de funções pelo Ministério dos Funcionários e, enquanto isso, não tinham responsabilidades oficiais. Eles eram uma categoria intermediária de funcionários que ainda não tinham assumido efetivamente as suas posições governamentais.
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A expressão “O velho livro de contas do Sr. Gujiu” é uma metáfora que se utiliza aqui para aludir à longa história de dominação feudal na China. Neste contexto, “古久先生的陈年流水簿子” simboliza a ideia de que a opressão feudal na China perdurou por um extenso período temporal.
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O Compêndio de Matérias Médicas “本草纲目” (Běncǎo Gāngmù) é uma obra farmacológica escrita pelo médico chinês da Dinastia Ming, Li Shizhen (1518-1593). Este livro consiste em cinquenta e dois volumes e é uma compilação abrangente de conhecimento sobre plantas medicinais e medicamentos. A passagem mencionada neste contexto sugere discutir o ponto em que o livro de Li Shizhen incluiu informações sobre o tratamento da tuberculose com carne humana, referindo-se às notas do médico da Dinastia Tang, Chen Cangqi, encontradas em “本草拾遗” (Běncǎo Shíyí). Li Shizhen expressou desacordo com essa prática, afirmando que a menção de carne humana no livro do médico Chen era um erro ou uma interpretação equivocada.
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“Trocar os filhos para comer”, em mandarim “易子而食”, significa literalmente “a prática de recorrer ao canibalismo, trocando ou sacrificando os próprios filhos por motivos de extrema necessidade”. Trata-se de uma expressão encontrada em “Crónicas de Zuo” (左传), que descreve a degradação de uma cidade do estado de Song uma vez cercada por um exército do estado de Chu durante o ano XV do reinado do Duque Xuan (宣公十五年). O general Hua Yuan, usou a expressão para descrever o sofrimento do povo de Song. A partir daí, a expressão tem sido usada para descrever uma situação de desespero, em que as pessoas estão até dispostas a fazer o impensável como trocar ou até mesmo sacrificar os próprios filhos para obter comida.
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No original chinês, “Hai Ethna” é uma transliteração da palavra inglesa “hyena,” que se refere a um tipo de “hiena” em português. Um animal mamífero carnívoro, também conhecido como “lobo-da-terra”. Persegue frequentemente predadores maiores, como leões e tigres, para se alimentar dos restos mortais das presas deixados por estes.
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Yi Ya (易牙) é uma figura histórica da China antiga, natural do estado de Qi, durante o período conhecido como Primavera e Outono. Era conhecido pela sua perícia na culinária e no tempero de alimentos. Posteriormente, ficou amplamente conhecido graças a uma narrativa controversa que o envolvia. Segundo a lenda, ele teria cozinhado o seu próprio filho e oferecido a carne cozida como alimento a um governante chamado Jie. Esta história é frequentemente considerada como um exemplo de discurso “delirante” e uma narrativa “desordenada e confusa” encontrada em textos antigos chineses, e a sua veracidade é amplamente questionada. Desta forma, Yi Ya é mais lembrado na história chinesa pelas suas habilidades culinárias e pela associação com essa história peculiar, que é vista com ceticismo.
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É importante ressaltar que Jie e Zhou foram monarcas que governaram durante as dinastias Xia e Shang na China antiga, respectivamente, e não viveram simultaneamente com Ezhiya. A menção de “Ezhiya cozinhando o seu próprio filho e oferecendo-o a Jie e Zhou para consumo” é considerada um exemplo de discurso “delirante” e de uma narrativa “desorganizada e confusa”.
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Revolucionário que no final da dinastia Qing assassinou o governador de Anhui. Foi condenado a morrer cortado em pedaços e o seu coração e fígado foram comidos pelo homem que o matou. Esta é uma referência obscura à figura praticamente esquecida de de Xu Xilin (1873-1907), também conhecido pelo nome de cortesia “Bosun”. Um importante membro do grupo revolucionário “Guangfu Hui” (光复会), durante o final da Dinastia Qing. Em 1907, Xu Xilin e Qiu Jin planearam uma revolta que ocorresse simultaneamente nas províncias Zhejiang e Anhui. No dia 6 de julho desse ano, Xu Xilin tirou proveito da sua posição como supervisor da Escola de Patrulheiros e Inspetores de Anhui, como forma de encobrir o plano. Durante uma cerimónia de graduação da escola, ele assassinou o governador de Anhui, Enming. Em seguida, liderou os estudantes na tomada de um arsenal militar. O grupo viria a ser derrotado e Xu Xilin apanhado. Ele foi brutalmente assassinado, tendo o coração e o fígado sido arrancados do seu corpo por guardas de Enming e posteriormente cozidos e comidos. Este evento trágico foi um dos muitos ocorridos durante o período tumultuado da Revolução Xinhai e é recordado como um exemplo da luta pela mudança política na China no início do século XX.
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Esta é uma velha superstição da aldeia: diz-se que o sangue humano é capaz de curar a tuberculose; por esta razão, costumava-se comprar pão embebido em sangue aos carrascos quando executavam um condenado.
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Esta passagem refere-se à prática de “cortar a própria carne para tratar os pais”, ou seja, à ação de cortar um pedaço da própria carne, cozê-la com remédio e administrá-lo aos pais doentes como forma de tratamento. Esta era uma prática considerada de extrema devoção filial na sociedade feudal chinesa.
No “Livro das Dinastias Song” (宋史·选举志一), é referido: “Há os corajosos, os escolhidos pelo imperador como exemplos de piedade filial, esses que cortaram a carne das suas próprias coxas, e depois há os outros, os cobardes que se deixam cair na sepultura.”
