A moda das calças rasgadas

Quem pensa que as calças jeans coçadas e rasgadas são produto de uma estética dos finais do século XX, ficaria espantado ao ler o Padre Álvaro Semedo S.J. quando no século XVII faz referência à expedição enviada desde Macau a Beijing para ajudar a dinastia Ming a combater os tártaros-manchus.

 


 

A história desenrola-se  durante a governação do décimo sétimo imperador da dinastia Ming, Zhu Youjian (1628-44), conhecido por Imperador Chong Zhen.

Os últimos imperadores Ming estavam tão ocupados com a sua imortalidade e em luxos que, nem tinham tempo para os assuntos de Estado, grassando assim a decadência. O imperador Shen Zong (Zhu Yijun, 1572-1620, mais conhecido por Wan Li) mandou construir um palácio subterrâneo para ser o seu túmulo, cujo dinheiro que custou permitiria alimentar dez milhões de pessoas durante um ano. Vivendo a população chinesa na miséria, ainda era obrigada a pagar altas rendas e taxas, o que levou mais tarde à revolta de 1627.

Já desde 1619, as fronteiras do Norte da China, demarcadas pela Grande Muralha, sofriam as investidas dos manchus. Com fama de bons combatentes, os portugueses de Macau aliados aos jesuítas, no ano seguinte eram referenciados na corte imperial como uma possibilidade para vir ajudar as tropas Ming, o aconteceu logo em 1621.

Segundo Montalto de Jesus, “Gonçalo Teixeira, um jesuíta, ofereceu ao imperador, em nome de Macau, três grandes canhões.” Provenientes, apesar de não ser referido, talvez da fundição em Macau de Manuel Bocarro, onde era produzida artilharia com grande fama e procura em todo o Oriente. “Foram também artilheiros com eles. Estes canhões, levados até à fronteira, prestaram grandes serviços contra os invasores que, avançando em grandes massas, sofreram tantas baixas com os tiros, que se puseram em fuga e passaram a ser cada vez mais cautelosos nos seus ataques.” No entanto, por estarem fora de Macau, estes artilheiros deixaram desguarnecida a sua cidade, que por duas vezes e por muito pouco não foi conquistada; uma por piratas chineses, que em 1621 tentaram tomar Macau e outra, logo a seguir, pelos holandeses, na batalha de 24 de Junho de 1622, com o célebre tiro efectuado da Fortaleza do Monte pelo Padre Rho S.J..

Seguindo o livro “Macau Histórico” de Montalto de Jesus: “A partir daí, o governo chinês encomendou mais canhões e mosquetes a Macau. Gonçalo Teixeira ofereceu, sempre em nome de Macau, os serviços de um contingente militar contra os manchus. Uma instância para esse fim foi apresentada ao imperador, que aceitou a oferta. O Conselho de Guerra enviou João Rodrigues, um jesuíta (japonólogo, intérprete e que entre muitos trabalhos deixou-nos o Dicionário Japonês-Português), para negociar com as autoridades de Macau enquanto se ordenava aos mandarins que despachassem os assuntos liberalmente.”

Por várias vezes, ao longo da primeira metade do século XVII, os canhões e os seus bombardeiros (homens que manejavam as bombardas, canhão curto de grande calibre) de Macau partiram para a China, a fim de lutar pela dinastia Ming contra os manchus do Nordeste. Como Montalto de Jesus não apresenta datas para identificar cada uma dessas vezes, o episódio dos quatrocentos portugueses pagos pela corte Ming que partiram de Macau em direcção à Grande Muralha, todos os historiadores de Macau indicam ter acontecido em 1630. Tal concorda com a eleição em 16 de Agosto de 1630 de seis adjuntos para tratarem com o Senado sobre o pedido feito pelo Imperador da China do envio de gente de guerra e armas para as guerras contra os tártaros.

Encontrando-se os quatrocentos portugueses em Jiangxi, foram interrompidos na sua marcha devido às intrigas dos comerciantes de Cantão junto aos mandarins provinciais. E é desde Nanchang, cidade hoje capital de Jiangxi, que o Padre Álvaro Semedo S.J., como fonte presencial, nos narra a admiração dos habitantes ao ver um deslumbrante cortejo militar, que mais parecia uma embaixada, tal a riqueza em cavalos, nas roupas e criados e para espanto de todos esses espectadores, ali presenciaram uma passagem de moda, tão fora de época!

 

Calças decoradas com rasgões

Soldados, pagos pelos cofres do imperador Ming, tinham partido de Macau em direcção à Grande Muralha onde, pelo lado de fora, os exércitos manchus estavam posicionados. Sem se poderem chamar estrangeiros, os chineses a viver há muitos séculos no Nordeste chinês e cujos seus antepassados provinham da tribo dos Nuzhen, pertenciam às tribos manchus, que tinham já governado a China, ou partes desta e tal como os Xiongnu e os mongóis eram originários das Montanhas do Altai. Em 1616, essas tribos manchus uniram-se sobre o comando de Nurhachi e pouco depois começaram a colocar as suas tropas estacionadas ao longo das fronteiras com o território da dinastia Ming.

Em 1630, à corte de Beijing chegou Gonçalo Teixeira, português que vinha com embaixada e presente da cidade de Macau para o imperador. Segundo o Padre Álvaro Semedo, que é quem nos relata por observação directa os acontecimentos em Nanchang, com a visão daquele grupo criativo de soldados, que antecipou em quase quatro séculos a moda das calças rasgadas, Gonçalo (emendado por Luís Gonzaga Gomes para Gonçalves) Teixeira:

“Vendo a insolência dos tártaros e o temor dos chineses e julgando prestar serviço ao reino de Portugal e favor a si, por qualquer coisa que lhe pudesse fazer o rei da China, ofereceu aos mandarins, em nome da cidade, alguns portugueses para auxílio contra os tártaros. A oferta agradou. Entregou-se um memorial ao rei (o Imperador Ming Chong Zhen, 1628-1644), que logo deu provisão favorável. O Conselho de Guerra despachou então um padre da Companhia (o Padre João Rodrigues) a Macau, o qual já andava com os embaixadores a negociar este socorro com muitas ordens para as autoridades de Cantão para que dessem despacho a este negócio, com liberalidade e comodidades de gente que lhes fosse requerida.

“Prepararam-se em Macau quatrocentas pessoas, sendo duzentos soldados, entre eles muitos portugueses de cá e outros de lá. A maioria era gente do país mas, não obstante chineses, nasceram em Macau e foram criados, a seu modo, entre portugueses, sendo portanto bons soldados e grandes atiradores de espingardas. A cada soldado foi dado um moço para lhe servir, comprado com o dinheiro do rei (Imperador da China) e ainda larga paga com a qual os soldados se vestiram ricamente e se proveram de armas, ficando ainda ricos.

Partiu esta soldadesca de Macau com dois capitães, chamando-se um Pedro Cordeiro, o outro António Rodrigues do Cabo (designando C. R. Boxer por António Rodriguez del Campo), com os seus alferes e outros oficiais. Chegados a Cantão deram mostras de si com tanta galhardia, fazendo várias salvas de mosquetes, que os chineses ficaram estupefactos.

Aqui tiveram barcos para navegar no rio e com eles visitaram, com muita comodidade, toda a província, sendo regalados pelos magistrados, quando chegavam às suas cidades ou aldeias, enviando-lhes estes fartos abastecimentos de galinhas, vaca, fruta, vinho, arroz, etc..

Passaram o monte que divide a província de Cantão (Guangdong) da de Kiamsi (Jiangxi) – sendo menos duma jornada de caminho até ao outro rio – todos a cavalo, até os seus servidores. Na outra banda imediatamente embarcaram de novo e, no segundo rio, atravessaram da mesma forma quase toda a província de Kiamsi até à sua metrópole (Nanchang), na qual me encontrava (Padre Semedo) então e tinha uma boa cristandade. Demoraram-se somente para ver a cidade e para serem bem vistos por ela. Foram convidados por muitos senhores para poderem admirar o seu modo de vestir e outras coisas para eles estranhas. Trataram-nos com toda a espécie de cortesia. Todos os admiravam e os louvavam, com a excepção dos golpes e cortes dos seus trajes, pois, não podiam compreender porque retalhavam um pano inteiro, em vários lugares só para o embelezarem.”

 

Interesses opostos

Decorria a visita a Nanchang, quando um édito imperial decretou o regresso a Macau de quase todo o corpo expedicionário português dessa cidade, tendo apenas continuado viagem para Norte um restrito grupo onde se contavam Gonçalves Teixeira e o Padre João Rodrigues e alguns mais. Estes seguiram para Norte, onde em Tengzhou, na província de Shandong, se encontraram com as forças chinesas, tendo aí prestado relevantes serviços na defesa da cidade. Após dois anos em Tengzhou, devido ao atraso do soldo saquearam a cidade e às suas mãos morreu Gonçalves Teixeira, juntamente com outros. Depois debandaram, tendo o Padre João Rodrigues conseguido escapar e chegado à capital, Pequim, foi agraciado com honrarias pelo Imperador.

Regressemos aos que de Nanchang seguiram para Macau, continuando a transcrever esta história pelo livro “Relação da Grande Monarquia da China”, redigido pelo Padre Álvaro Semedo S.J. e concluído em 1637. Português de Niza, Portalegre, Álvaro Semedo (1586-1658) com 17 anos ingressara na Companhia de Jesus e cinco anos depois seguiu para a Índia, onde em Goa completara os seus estudos teológicos. Na China desde 1613, o Padre Álvaro Semedo S.J. adoptou o nome Sé Mou-Iôk e como observador privilegiado do período a que tal história se refere, foi desde Nanchang relatando o que presenciava.

Para perceber o édito imperial escutado em Nanchang, voltemos às suas palavras:

“O motivo do seu regresso foi devido aos chineses de Cantão, que negoceiam com os portugueses e são correctores nos seus negócios dos quais auferem grandes lucros, terem advertido que com esta entrada e o seu êxito, de que não duvidavam, seria fácil aos portugueses alcançarem licença para entrarem no reino e fazerem por si os seus negócios e transacções, com o que perderiam os seus lucros. Assim, antes que os portugueses partissem, fizeram todas as diligências para os embaraçar, apresentando muitos contras e, como por último, respondessem os magistrados que não podiam fazer outra coisa, por ter já sido pago dinheiro e feitas as pagas não somente as ordinárias como ainda as adiantadas, ofereceram-se, então, para pagarem do seu bolso todo aquele dinheiro ao rei. Vendo, porém que assim podiam conseguir, disseram-lhes os magistrados que, se fizessem passar pela corte o dinheiro que pretendiam dar e apresentando-o aos mandarins, seria possível fazer com que estes mesmos, que tinham proposto a vinda dos portugueses ao rei, para prestarem socorro, tornassem a fazer um outro memorial, dizendo não serem eles precisos.

Respondeu o rei e eu vi a resposta real: Não há muito propuseste que esses homens entrassem no reino e nos ajudassem contra os tártaros; agora dizeis não serem já necessários. Quando propuserdes qualquer coisa é bom pensardes melhor. Porém, se não são necessários que regressem.

Assim terminou essa expedição sem utilidade alguma para o reino, mas muito para os soldados quanto mais não fosse por terem visitado uma boa parte da China. Os tártaros continuaram com a guerra da mesma forma e até agora ainda continuam, tendo obrigado o reino de Coreia a pagar-lhes tributo como pagava à China, pagando-o ainda aos chineses como antigamente.”

Como espectáculo de moda dado pelos portugueses pelas ruas de Nanchang, vestindo calças de ricos tecidos nos quais abriram rasgões com a finalidade de decoração, apenas ficou registado nas palavras de um dos primeiros e grande sinólogo, fonte que presenciou localmente este episódio.

No entanto, Sé Mou-Iôk, o Padre Semedo, por continuar pela China, já não faz referência ao que se passou mais tarde.

A Macau, pouco tempo depois do regresso dos que vieram de Nanchang, enviado pelos funcionários de Cantão chegou o pedido de retorno do dinheiro que tinham despendido para a expedição.

Atónitos, os portugueses não quiseram pagar os trinta e quatro mil taéis, mas a retenção do anual barco em Cantão, levou-os a sanar o problema. Não foi a vender as suas intervenções feitas sobre ricos tecidos, pois ainda não estavam na moda, que só apareceu quatro séculos mais tarde, mas usando os poucos lucros que ainda possuíam das viagens comerciais a Manila e ao Japão, que na altura se encontravam quase interrompidas.

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