A sabedoria em Sócrates e Confúcio

Sócrates não deixou nada escrito. O Mestre Kong (孔子), Confúcio, pouco ou nada. O que sabemos de Sócrates chegou-nos sobretudo via Platão, seu discípulo directo. Também de Confúcio muito do que conhecemos foi registado pelos seus discípulos nos Analectos (《論語》Lúnyu).

Confúcio viveu um pouco antes de Sócrates, entre 551 e 479 a.C, nos séculos VI e V, ao passo que Sócrates terá vivido entre c. 469 e 399, nos séculos V e IV.

Ambos, porém, amaram a sabedoria e foram ostracizados no seu tempo. Ambos elegeram o domínio antropológico e a filosofia ética como campos privilegiados de reflexão. Souberam transformaram os percursos de vida em modelos existenciais para os discípulos de todos os tempos e foram grandes pedagogos. Movia-os o amor à cidade-Estado, no caso de Sócrates, ao seu Estado, no de Confúcio.

Sócrates foi condenado à morte por exercer o livre pensamento e questionar os usos e costumes da cidade e Confúcio, então Primeiro-Ministro, seria afastado do governo do Estado de Lu, por almejar formar uma categoria de governantes capazes, ou seja, eticamente quase perfeitos, em nome dos prazeres da vida, representados por um grupo de bailarinas enviadas pelo governante de Qi ao de Lu.

Em a Apologia de Sócrates acusaram o filósofo de corromper a juventude e não idolatrar os deuses da cidade; a Confúcio disseram que faltava perspicácia, pragmatismo e sobrava seriedade. Este último serviu vários senhores feudais em cargos menores até que em 501 a.C chegou à categoria de Primeiro-Ministro de Lu, uma oportunidade de oiro para colocar em prática o seu modelo de cavalheiros virtuosos (君子junzi) para o governo de Estado. Perdida a oportunidade, dedicou-se ao ensino desde 497 até à sua morte. Chegou a reunir 72 discípulos, aos quais ensinava a refletir sobre as grandes virtudes morais, em especial a Benevolência ( Rén), a que ditava o compasso da harmonia social: tratar bem os outros para que todos pudessem viver organizadamente de olhos postos no bem comum.

Não era um moscardo, à maneira de Sócrates, por isso foi poupado à morte. Mas não deixou de incomodar o que pôde num tempo pouco dado ao cultivo da contenção e da sobriedade.

A sua filosofia, de pendor existencial, pode ser definida como um longo caminho cujo termo é a realização plena da humanidade. O Caminho e a ética são para ele indissociáveis, por isso ao falar de si nos Analectos afirma Na Benevolência (論語。里仁 第四):

子曰: “朝聞道,夕死可矣

Quem de manhã conhecer o caminho, pode morrer nessa mesma noite.
(Analectos,  IV.8)

Para ele, tal como para Sócrates, a vida só valia a pena ser vivida por uma boa causa ética. Existir nestes filósofos implicava viver bem, de olhos postos na virtude. Eles tinham uma missão na vida, ajudarem-se a si próprios e aos outros a encaminharem-se para a virtude. A virtude em si para Sócrates, a Benevolência, para Confúcio.

A Benevolência do Mestre Kong (孔子), que alguns sinólogos traduzem por Humanidade (sendo uma outra tradução possível para ), implica a realização existencial da mesma, num percurso solidário. Quem se coloca à margem não poderá ser considerado uma pessoa ética de pleno direito. As regras sociopolíticas são para se cumprirem e apenas enquadrados por elas mereceremos o epíteto de seres corretos e modelares.

Note-se o que Confúcio revela nos Analectos, no capítulo Fazer Política (II.4) o seu percurso existencial, objetivamente um Bom caminho, um modelo a ser seguido:

4.  Confúcio disse:

子曰: 「吾十有五而志於學,三十而立,四十而不惑,五十而知天命,六十而耳順,七十而從心所欲,不䠯矩。

Aos quinze dedicava-me com persistência à aprendizagem; aos trinta estava firmemente estabelecido; aos quarenta dominava os assuntos, sem me deixar confundir; aos cinquenta sabia qual era o destino que o Céu me tinha concedido; aos sessenta distinguia os discursos verdadeiros e falsos; aos setenta sigo os desejos do meu coração sem violar qualquer regra.

A verdadeira benevolência é alcançada, de acordo com exemplo existencial, quando agimos Bem, ou seja, sem quebrar qualquer regra social da comunidade em que nos inserimos.

Do mesmo modo, Sócrates se recusou a fugir da prisão e bebeu a cicuta. Acatou, portanto, a sentença que o tribunal lhe tinha reservado. Defendeu-se com pôde, argumentou até ao limite, mas a comunidade à qual se dedicava sentenciou e ele aceitou o juízo final. O que mostra que a virtude para ambos os filósofos não era um ideal a desenvolver na solidão, mas sim uma prática dialogada, fomentada e reconhecida pelos outros, integrada na comunidade a que pertenciam.

Note-se o que Sócrates respondeu ao seu amigo Críton, que no diálogo homónimo, também epigrafado Sobre o Dever, o procura convencer a escapar da prisão e duma condenação injusta, rumo a Tessália:

“O mais importante não é viver, mas viver bem”

(Platão,1999, 73)

Adiante justificará por que razões prefere aceitar o juízo do tribunal:

Não se deve responder à injustiça com injustiça, nem fazer mal a nenhum homem seja o que for que ele nos tenha feito.
(Platão,1999,76).

Após o que desenvolve o raciocínio, afirmando que não estão apenas em jogo as relações intersubjetivas, que são importantíssimas, mas um bem maior: as leis da cidade de Atenas. Por isso, pergunta a Críton:

Acreditas que um Estado possa continuar a subsistir e não ser abatido quando os julgamentos dados deixarem de ter qualquer força e os particulares os anulam ou aniquilam?
(Platão, 1999,77)

Críton espanta-se com a fidelidade de Sócrates a Atenas e suas leis cumpridas e executadas por gente corrupta, falaciosa e má. No entanto, a fidelidade revelada por Sócrates é a um bem maior, às leis e à sua terra, por esta última combateu sem vacilar. Se aceitasse escapar, passaria à categoria de corruptor de leis, confirmando que a condenação tinha sido correta. Diz-nos Sócrates colocando-se na posição dos acusadores:

Afinal que sabedoria é a tua que não sabes que a pátria é mais preciosa, mais respeitável e mais sagrada que uma mãe, que um pai e que todos os antepassados, e que ela ocupa um altíssimo lugar entre os deuses e os homens sensatos.

(Platão,1999,78)

Também Confúcio partilha idêntico amor à pátria e quer educar a humanidade, à época reduzida aos homens, no caminho do Bem, ensinando-os a seguir a via correta, que não é das leis, mas a dos ritos, definidos como mandamentos não escritos.

A atenção à palavra escrita que orienta as comunidades desde cedo se revelou o maior dos mandamentos no Ocidente. Também no Oriente chinês houve filósofos legalistas, como Han Feizi (韓非子), mas na tradição ocuparam a posição de exceções que confirmam a regra.

As palavras de Sócrates no final de Críton, personificando as leis, são reveladoras do papel fundamental que ocupavam na estruturação mental do filósofo, uma vez que a Apologia de Sócrates e Críton são consideradas obras biográficas:

Se partires hoje para o outro mundo, partirás condenado injustamente, não por nós, as leis, mas pelos homens. Se, ao invés, te evadires depois de haveres tão vilmente respondido à injustiça com a injustiça, ao mal com o mal, depois de teres violado os acordos e os contratos que te ligavam a nós, então ficaremos iradas contigo durante o resto da tua vida .
(Platão,1999,82)

Num aforismo, conhecido por todos os chineses, Confúcio revela, ainda nos Analectos, a importância dos outros em:

已所不欲,
勿施于人
《论语. 颜渊十二.二》

Não faças aos outros, o que não desejas para ti”
(XII.2)

Devemos respeitar a humanidade em nós e nos outros. O cuidado com o outro deve ser contextualizado. Um dos discípulos pergunta ao mestre o que é a benevolência, ao que este responde que se deve trabalhar conscienciosamente como se recebesse um convidado e não se devem impor trabalhos excessivos aos outros, porque não devemos fazer-lhes o que não queremos para nós, a fim de preservar a harmonia onde quer que se vá. Se avançarmos um pouco mais, e enquadrarmos o dito na época, Confúcio está a chamar a atenção da nobreza feudal para o modo como lida com os seus vassalos e servos. Os governantes devem respeitar quem os serve, porque os mandados apenas na categoria social diferem dos mandantes, não em termos ontológicos. Por isso, todos devemos ser tratados com respeito e amor benevolente ( 仁爱 Rén’ài).

Se no Ocidente desde cedo se valorizam as leis, portanto o conhecimento geral, e o saber analítico, não se pode esquecer o importante papel da razão intuitiva e mesmo das ligações sobrenaturais do saber, tão bem-apresentadas no daimon socrático.

A Sócrates guiava uma divindade interior, caso se prefira um espírito divino. Mas não era apenas do interior que a voz lhe falava. Ele não hesitava em seguir os mandamentos do Oráculo de Delfos, situado no santuário de Apolo no sopé do Monte Parnaso, na região de Fócida.

O peregrino Ceréfonte, amigo de Sócrates, terá dirigido, segundo nos relata Sócrates na Apologia, à pítia ou pitonisa, a sacerdotisa do santuário, a questão de se havia alguém mais sábio do que Sócrates. “Respondeu-lhe a Pítia que não existia mais ninguém” (Platão,1999, 37)

Esta resposta condicionou a vida filosófica de Sócrates, ainda parafraseando o filósofo, que desde então procurou inteirar-se da justeza do oráculo, interrogando muitos dos homens sábios da cidade, orientado pelo princípio conhecido pela tradição como Douta Ignorância, e resumido no aforismo: “Só sei que nada sei”.

Aqui torna-se necessário um parêntesis. Sócrates acreditava que o verdadeiro conhecimento era alcançável, como bem especifica Aristóteles na Metafísica, Livro XIII (M), 1078b:

Duas são as descobertas que com razão podem ser atribuídas a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição universal: estas descobertas constituem a base da ciência”.
(Apud, Maschio, 2015: 29)

No entanto, as bases científicas lançadas por Sócrates, que tanto contribuíram para o saber ocidental, não podem ser dissociadas do seu percurso existencial. Foi a palmilhar a cidade, em diálogo com os seus concidadãos, que ele as lançou.

Confúcio e os seus discípulos também valorizam o saber, enquanto conhecimento e ambos os filósofos distinguem acima de tudo o saber intuitivo. Acima do saber discursivo, aquele que conduz o diálogo socrático ou os clássicos chineses, a intuição verdadeira, a que é concedida e desenvolvida em contacto com as potências celestiais, em Sócrates, pelo Céu impessoal, em Confúcio. Este último garantia que nada podia dizer sobre o saber divino e os seres celestiais:

子不語怪,,,
(论语 ·述而篇第七,二十一)

Confúcio nunca falava de monstros, forças, desordem ou seres espirituais
(VII. 21)

mas possuía uma confiança ilimitada quer na sabedoria humana discursiva, quer na intuitiva. Por um lado, defendia, por exemplo, em Fazer Política (II.12), que os cavalheiros não eram utensílios, mas belas peças de jade em bruto que deviam ser trabalhadas, por um vasto conhecimento.Por outro, lado defendia o pensamento intuitivo como o grau supremo de sabedoria. Assim lê-se no Comentário (论语述而篇第七,三十):

子曰:」仁遠乎哉?我欲仁,斯仁至矣。

Estará a Benevolência tão distante de nós? Basta pensar que a queremos alcançar para que isso de facto suceda
(VII, 30)

Mas para que a benevolência se desenvolva no seio da comunidade com toda a propriedade é necessária ainda uma prática social visível que se traduz não à maneira socrática no cumprimento das leis, mas ao jeito confucionista na observância dos ritos, como explica ao seu estudante Yan Yuan (XII.1), e especifica um pouco adiante: “não olhes, não oiças, não pronuncies e não atues contra os ritos.”

Entre Confúcio e Sócrates são muitas as afinidades intelectuais, distâncias também as há, nomeadamente nos métodos filosóficos que empregam. E se é verdade que ambos privilegiam o diálogo, como a via pedagógica, o modo como este se processa é diferente. Numa primeira aproximação, o diálogo socrático será mais científico, assim o consideramos de acordo com a tradição ocidental, o confucionista mais literário. As premissas de que partem, e as teses que os ocupam são similares. A preocupação central: A virtude. Também ambos se empenharam existencialmente até ao limite no seu saber filosófico que quiseram partilhar com os concidadãos.  Eis o que fica para a história do nosso mundo filosófico: dois grandes pedagogos dedicados ao caminho ético.

 

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Bibliografia

  • Alves, Ana Cristina. (2005). A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/Editorial Notícias.
  • Kongzi (孔子). (1994). 论语》,Analects of Confucius, trad para chinês simplificado de Cai Xiqin (蔡希勤中文译注) ; Lai Bo (赖波) e Xia Zhu He, trad. para inglês (夏玉和英文翻译),北京,华语教学出版社
  • Maschio, E. A. (2015). Platão. A verdade está noutro lugar. Atlântico Press.
  • Platão. (s.d.) Diálogos III. Apologia de Sócrates. Críton. Fédon. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999.

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