CHINA Uma civilização sem mitos de criação?

Introdução

Existiria alguma civilização que não teria se preocupado em criar e preservar suas narrativas míticas de origem? A pergunta parece insólita. Quaisquer coletâneas de narrativas religiosas nos mostram, após uma ampla e segura pesquisa, que praticamente todas as culturas antigas possuíram seus mitos criadores. (Eliade, 1978). De fato, tornou-se quase natural, para nós, acreditar que todas as sociedades têm um ou mais mitos fundadores. Isso se deve a alguns fatores fundamentais: as investigações no campo da História das Religiões nos mostram que a preocupação com tradições de cosmogênese são praticamente um padrão no pensamento humano, desde os tempos mais antigos. (Eliade, 1991) Dois elementos contribuiriam para reforçar essa preocupação: primeiramente, a Filosofia Grega, em busca das origens da natureza, dedicou-se a estudar o início de tudo (Arché ἀρχή), contrapondo-se aos mitos de origem, e defendendo, do modo geral, que o funcionamento do universo só poderia se dar por meio de uma única lógica fundamental; posteriormente, o Cristianismo defenderia também uma concepção monogônica, fundamentada na criação divina, que consolidava a ideia de uma fundação singular – e, ainda que essa concepção pudesse ser considerada como “mítica”, seu estabelecimento gradual, ao longo da história, tornou-a um ponto crucial em qualquer investigação científica até um período recente de nossa história. Assim, podemos dizer que o estudo das práticas religiosas de qualquer civilização, em seus amplos aspectos, pressupõe a existência de alguma crença de criação ou origem. E nesse caso específico, a China novamente nos apresenta problemas notáveis e de difícil solução.

Desde o século 16, quando os missionários cristãos começaram a aportar na China, notaram nas documentações historiográficas e canônicas a ausência de mitos de criação. Algumas tradições, esparsas, estavam presentes no folclore e nas práticas do Daoísmo, sem que representassem uma crença realmente consolidada de origem mítica. Além disso, o rastreio desses mesmos mitos mostrava que eles eram bastante tardios em relação ao início histórico da civilização chinesa. A literatura intelectual, contudo, não abordava esse aspecto – considerado tão fundamental para o pensamento ocidental, mas pouco relevante para os chineses.

Os letrados (Ru ), especialistas em história, filosofia e ciências, bocejavam quando questionados sobre essas tradições de origem, que eles mesmos consideravam irreais. De fato, as narrativas mais antigas, preservadas em documentos como o Yijing 易經 (Tratado das Mutações), o Shujing 書經 (Tratado dos Livros) e o Liji 禮記 (Memórias Culturais), que tratam das eras mais distantes da cronologia chinesa, repetem sempre uma descrição humanizada do passado chinês. O povo vivia em situação similar à que descrevemos como “pré-histórica”, sem qualquer referência a uma origem anterior. Quando demandados sobre isso, os acadêmicos chineses davam duas respostas distintas: uma de caráter prático, afirmava que nenhum ser humano estaria presente nessa origem, e por isso, não poderia saber como ela se deu; a outra, de cunho científico e especulativo, propunha não uma cosmogonia, mas sim uma cosmologia, para explicar as origens e a criação do universo.

Isso nos lançaria diante de um caso único na humanidade: seria a cultura chinesa desprovida de mitos de criação? O problema se desdobra em vários âmbitos, quer sejam: a existência de uma exceção reveladora quanto à sistematização da história das religiões; uma quebra na insistência, essencialmente Ocidental, de ler o mundo apenas por seu prisma, de forma exclusiva; por outro lado, a constatação do pouco conhecimento que temos da história chinesa, e das próprias visões que os chineses têm sobre essa questão.

O que examinaremos em nosso texto, portanto, é o debate, que ainda se desenvolve, sobre o problema da China ter ou não seus mitos de criação. Para isso, examinaremos brevemente os discursos sinológicos contra ou a favor dos mitos criadores na China antiga, e seus problemas; em seguida, analisaremos algumas passagens documentais chinesas, que ilustram esse debate; por fim, quais as considerações que os próprios chineses fazem sobre isso, através da análise de algumas produções históricas chinesas. Como contexto temporal, definiremos o período limite do século +3, quando teria surgido um primeiro mito de criação nas fontes chinesas, como veremos adiante.

 

Uma definição conceitual

Antes de começarmos nossa investigação, precisamos, porém, definir alguns termos básicos. Do que estamos a tratar quando falamos de mitos chineses? Podemos aceitar que os pensadores da China antiga lidavam com cosmogonias ou cosmologias? Esses dois conceitos são fundamentais, e a maneira – sutil – como eles são aplicados no contexto sinológico revelam, para nós, alguns dos problemas que precisaremos enfrentar.

Tomo como ponto de partida as definições de cosmogonia e cosmologia de Abbagnano (2007, p.226). Cosmogonia (κοσμογονία) seria o “Mito ou doutrina referente à origem do mundo”, ou seja: uma proposta de compreensão acerca das origens calcada em tradições, orais ou escritas, cujo fundamento seria essencialmente religioso. Como característica básica da cosmogonia, o critério para sua aceitação era a fé no mito, ele próprio estruturador de sua lógica interna. Já a cosmologia (κοσμολογία) seria uma tentativa racional de compreender as origens e o funcionamento do universo, desligando-se (a princípio) da crença dogmática e religiosa. A cosmologia tentaria explicar o mundo pelo raciocínio baseado na observação dos fenômenos da natureza, buscando sistematizar suas leis e seus princípios. Isso implica dizer que a cosmologia pode negar as tradições míticas, se contesta as origens do universo; todavia, se o questionamento cosmológico se circunscreve a tentar compreender a ecologia da natureza (desligando-se da questão temporal), ela poderia aceitar a presença dos deuses na fundação do cosmo. Por fim, a abordagem cosmológica pode mesmo supor que os deuses existiriam, desde que submetidos a uma ordem natural, passível de uma explicação racional. No caso específico dos gregos pré-socráticos, a cosmologia teria sido a primeira abordagem contra as tradições míticas, construindo a perspectiva investigativa das ciências, e propondo sistemas de interpretação da natureza (Bornheim, 1998).

E como essas definições se aplicariam ao caso chinês? Como veremos, a questão é que as narrativas que consideramos como cosmogônicas estão praticamente ausentes da antiga literatura chinesa, e as evidências materiais apresentam-nos os cultos primitivos, mas não mitos de origem. Por outro lado, o mais antigo texto chinês conhecido – o Yijing – é o primeiro tratado de ciências da China antiga, caracterizando um complexo sistema de cosmologia criativa. Nele, é proposto um sistema de interpretação da natureza, codificado em símbolos e esquemas matemáticos, cujas atribuições equivaleriam a propriedades elementais da natureza. Isso poderia qualificá-lo como um texto cosmológico; mas a relutância dos sinólogos, calcada em muito em preconceitos culturais e religiosos, costumeiramente classificou o livro como “místico”, atribuindo-lhe uma imagem cosmogônica. Essa visão era corroborada pelos próprios chineses, que vulgarmente usavam o livro como oráculo; por entender que ele explicava racionalmente a natureza, então, o desenrolar dos acontecimentos e das coisas poderia ser compreendido, em suas leis e dinâmica, pela consulta ao livro! Notemos, pois, que o uso das conotações “cosmogonia” e “cosmologia” pode receber caracteres pejorativos ou deturpados, se não houver cuidado com sua utilização. Utilizaremos esses termos, aqui, buscando aproximá-los o máximo possível da interpretação que os próprios chineses dariam aos seus textos, segundo suas tradições historiográficas. Isso implica, claro, na presença de controvérsias e debates acerca dessas mesmas interpretações: no entanto, veremos que as discussões sobre a mitologia e a cosmologia chinesa continuam a ser atravessados pelos mais diversos preconceitos ou projeções, dificultando uma compreensão mais ampla sobre as possibilidades do caso chinês.

 

Ausências

Ao examinarmos a literatura chinesa antiga, notaremos o mais absoluto desinteresse dos escritores chineses por mitos de criação. O principal corpus da antiguidade chi-nesa constitui-se dos chamados Zhonguo Gudian Dianji 中國古典典籍 (Clássicos chineses) que, até o século -6, era formado por seis livros: Yijing 易經(Tratado das Mutações), Shujing 書經 (Tratado dos Livros), Shijing 詩經 (Tratado dos Poemas), Liji 禮記 (Memórias culturais), Chunqiu 春秋 (Primaveras e Outonos) e Yuejing 樂經 (Tratado da Música). Esses livros remetem-se a períodos datados do século -18 (ou mais), e sua primeira redação foi feita, provavelmente, em torno do século -11. No século -6, Confúcio 孔夫子 (-551-479) empreendeu a reedição e preservação desses livros, promovendo sua consolidação como alicerce cultural da civilização chinesa. Neles não há qualquer traço de um mito de origem. Somente o Yijing, como dissemos, apresenta uma proposta de sistema cosmológico, organizado e racionalizado, nas mesmas feições dos sistemas especulados pelos pensadores pré-socráticos.

Isso não significa que os chineses não conhecessem mitos de criação. A questão, porém, é que não restaram quaisquer fragmentos deles. As evidências arqueológicas disponíveis nos mostram, até agora, representações dos deuses antigos, e dos mais variados mitos, mas não de mitos de criação. Assim sendo, se existiam mitos de criação entre os chineses, eles eram tão pouco relevantes aos cronistas que, em seus primeiros textos, não havia interesse em preservá-los. Como dissemos, as histórias se remetiam, no máximo, sobre um tempo imemorial em que a humanidade vivia da caça, coleta e nomadismo.

Os intelectuais chineses priorizavam, em seus escritos, a manutenção dos rituais que preservavam a ordem social e política, mas não necessariamente os fundamentos das crenças religiosas. O Liji nos preserva muitos dos ritos, tradições e costumes chineses, mas pouco sobre suas teologias. É possível que eles fizessem uma distinção entre seus mitos e a abordagem cosmológica do Yijing, embora uma não excluísse a outra. De fato, as tradições da mitologia chinesa costumam inserir seus personagens na natureza regida pelo sistema “Yin – Yang ”, e não o contrário. Por outro lado, a vinculação desses textos nos mostra o interesse em preservar um pensamento não-mítico, mas essencialmente historiográfico, sociológico e culturalista. Curiosamente, pois, os antigos pretendiam legar uma imagem racionalizada de si mesmos. Isso iria marcar a redação da história chinesa, sempre muito cuidadosa e receosa em reproduzir mitos, manifestações miraculosas ou aparições fantásticas.

O quadro dos fragmentos textuais, surgidos depois do século -6, nos mostra diversos tipos de especulação e possíveis mitos de criação; e neste âmbito que se inicia o debate – eminentemente sinológico – sobre a existência ou não de mitos de criação.

 

A China seria uma exceção?

Havíamos comentado que, desde o séc. 16, a chegada dos cristãos a China “revelou” ao mundo a “inexistência” de um mito criador chinês em seu passado mais remoto. Os missionários europeus, com destaque para os jesuítas, eram dedicados estudiosos das culturas com os quais entravam em contato, buscando encontrar as melhores vi-as para sistematizar a conversão religiosa. Ao perceberem a ausência de um mito de criação na literatura clássica de antes do século -6, esses religiosos elaboraram diversas visões para isso. Em linhas gerais, seu parecer era de que os chineses seriam, desde o passado, materialistas e supersticiosos; por outro, que essa ausência demonstraria uma certa falha em termos de pensamento religioso. Notem, pois, que esse demérito estaria ligado à ausência de uma “condição obrigatória”, o mito de criação. Um quadro geral desse senso religioso chinês foi bem definido por Ching (1978), em linhas gerais:

Os chineses já foram caracterizados por missionários e estudiosos – nativos e ocidentais,  do passado e do presente – de várias maneiras diferentes: ou como religiosos e teístas ou como irreligiosos, ateus e voltados para este mundo. Nos séculos XVII e XVIII esta divisão de opiniões condicionou as rivalidades surgidas nos círculos missionários e que se espalharam pelos círculos filosóficos europeus (…) Jesuítas e dominicanos dividiram-se em lados opostos. Também os filósofos estavam divididos. Leibniz considerava os chineses religiosos e teístas, mas formou seu julgamento em parte ao ler o tratado do missionário jesuíta Longobardi, que tendia a favorecer o lado oposto. Christian Wolff, grande amigo de Leibniz, elogiava os chineses por sua “moralidade natural”, moralidade esta fundada em conceitos estritamente filosóficos, sem nenhuma referência à religião e sem nenhuma fé em Deus. Um estudioso chinês de tempos mais recentes afirma, acerca de seu próprio povo, que eles são “a-religiosos”, e sua opinião vem confirmada por vários estudiosos ocidentais. Joseph Needham, eminente historiador da ciência e ele próprio pessoa religiosa, acentuou que os chineses não possuem uma fé em Deus igual à do Ocidente — um Deus Criador e Legislador — fazendo eco assim ao juízo do filósofo Filmer Northrop. Por outro lado, escreveram-se artigos eruditos sobre a exata noção de fé dos chineses em Deus e continua a pesquisa sobre o assunto. A arqueologia continua a desenterrar provas em apoio dum primitivo teísmo religioso.

A questão do mito de criação, portanto, era apenas a ponta de um iceberg muito maior, envolvendo o desafio de converter a sociedade mais populosa do planeta, cujas tradições religiosas possuíam milênios de existência. Todavia, o problema da “criação” tornara-se um ponto de inflexão. Ao longo do século 20, alguns sinólogos – sinófilos, e não sinófobos – encantaram-se com as possibilidades antropológicas de lidar com uma civilização isenta de um mito originário do mundo. Era fascinante pensar que os chineses poderiam ser, talvez, a única civilização que, desde a antiguidade, se alicerçaria na razão.

Forke (1925) e Granet (1997 [original 1931]), eminentes sinólogos da virada do século, defenderam claramente a ideia da “civilização racional” e cosmológica. Smith (1971) e Eliade (1983) analisaram os mais diversos aspectos da religiosidade chinesa sem preocupar-se com a questão da criação chinesa, bem como Henderson (1984), especialista em cosmologia chinesa, deixou o problema totalmente de lado, e Ames & Hall (1995), numa análise mais recente, reforçaram a mesma ideia, ao esmiuçarem as estruturas do pensamento chinês. Kalinoswski (1996) tratou a questão com cuidado, preferindo utilizar o termo “cosmogênese” para algumas teorias, e “teogonia” somente para mitos posteriores. Por fim, o trabalho de Lagerwey e Kalinoswki (2009), que perscruta a religiosidade chinesa nas primeiras dinastias, com base em materiais arqueológicos e textuais atualizados, simplesmente não aborda a questão.

Podemos dizer que o primeiro autor a se preocupar em revisar essa questão foi Girardot (1976 e 2008 [original de 1983]), cujos trabalhos tentam provar a existência de mitos criadores na China, que devem ser interpretados a partir de fragmentos da literatura pós séc.-6. Birrell (1993) e Goldin (2008) enfatizam a ideia de que a suposta inexistência de mitos criadores se trata de um preconceito eletivo contra a cultura chinesa. Os chineses possuiriam sim seus mitos, e eles estão claros em sua literatura.

Duas questões são necessárias aqui, a meu ver: tanto Girardot como Birrell, por exemplo, insistem que os chineses possuem seus mitos criadores: mas porque uma civilização precisa ter mitos criadores? Esses autores são sinólogos experimentados, cujos argumentos são igualmente bem embasados: todavia, sua insistência em retirar os chineses de sua (pretendida) singularidade antropo-religiosa não seria, enfim, uma forma de preconceito às avessas? A não aceitação dessa especificidade chinesa não constitui, também, um efeito inconsciente e tardio da prática orientalista? Temos aqui uma ambiguidade importante: se os chineses não forem “iguais” a nós em suas narrativas míticas, eles são “diferentes”, e assim, passíveis de uma visão crítica pejo-rativa (pela ‘ausência’ de um mito criador); por outro lado, buscar uma “igualdade forçada” não significaria desrespeitar essa singularidade? No impasse que se estabelece, precisamos voltar aos conceitos propostos no início. Girardot e Birrell demonstram ter certa dificuldade em estabelecer os limites entre “cosmogonia” e “cosmologia”. Como notaremos, eles parecem confundir metáforas com especulações cosmogônicas. O próprio trabalho de Girardot (1983) centra-se em compreender os mitos de criação chineses com base no Daoísmo, associação essa que privilegia apenas um aspecto do pensamento chinês, em detrimento da historiografia chinesa e das outras escolas.

 

Narrativas de Origem

Antes de começarmos a examinar as narrativas e especulações chinesas, precisamos ainda definir um último ponto crucial: quando falamos de origens, ao que nos referimos? Por tratarmos do aspecto essencial do cosmo, atentamos unicamente aos fragmentos que tratem sobre cosmogonia ou cosmologia – ou seja, especificamente a origem do universo. Esse dado é importante, pois autores como Birrell, por exemplo, incluem os mitos de criação da humanidade como mitos de origem – confusão essa que causa indistinção na análise dos fragmentos. A criação humana, bem como os mitos de inundação, entre outros, são posteriores a cosmogênese. Nesse caso, os chineses têm seus mitos que, mesmo sendo tardios, dão versões diferenciadas das origens dos seres e da sociedade. A questão, porém, não é essa. Analisamos aqui a proposta de criação da natureza, que precede esses momentos das narrativas mitológicas. Nesse caso, pois, entendemos que a postura de Girardot e Birrell trata de ampliar o conceito de “criação” para abranger mitos diversos, numa tentativa de corroborar uma teoria. Lewis (2006, p.21-8), em outro exemplo, ao analisar os mitos de inundação na China, faz uma introdução em que repete esses mesmos equívocos, associando os mitos de cosmogênese com os mitos de surgimento da humanidade, em um único conjunto. Esse é um dos pontos fracos fundamentais das teorias propostas por Giradot.

Comecemos pelo Yijing (Tratado das Mutações, sécs. -12 ou -11). O Yijing é provavelmente o primeiro livro chinês a nos dar uma visão organizada de universo, buscando explicar a natureza por meio de suas estações, tendências e qualidades, expressas num sistema complexo absolutamente associativo, simbólico e correlacio-nado. As forças naturais são catalogadas em conjuntos de expressões – água, fogo, trovão, montanha, etc. – que significam expansões de um sistema dual primário, conhecido por Yin – Yang . Yin e Yang não são duas forças primevas, ou duas essências universais, e uma série de equívocos tem sido causados, nesse sentido, entre os leitores ocidentais – e mesmo entre os chineses – que desconhecem mais profundamente essa teoria. Yin e Yang representam, nesse antigo sistema cosmológico, a ideia de uma oposição primária e correlata, pelo qual algo se revela pela sua interdependência com outra coisa. São, por assim dizer, coordenadas pelas quais concebemos uma imagem, operando em nível básico como nossa classificação X e Y. Nesse sistema, pois, tudo se define por oposição complementar. Uma simples linha só existe, por exemplo, pela contraposição do traço no papel; ela mesma só existe porque tem dois lados, e divide o espaço em dois, etc. De modo a organizar a expressão dessas tendências, os autores do Yijing decidiram grifar como um traço contínuo a coordenada Yang e, como um traço partido, a coordenada Yin. A combinação dessas linhas em sistemas triplos gerava os Gua (Trigramas), que representavam oito fenômenos ou dimensões básicas da natureza (como dissemos; Água, Fogo, Céu, Terra, Trovão, Montanha, Lago e Vento), denominados de sistema Bagua 八卦 (Oito trigramas). Assim, de um princípio único é gerada a oposição complementar; dela, surgem os trigramas, imagens da natureza; e da associação deles provém todos os seres, estações, movimentos da natureza. Nessa teoria, estava implícita a cópula entre as duas coordenadas para a geração de uma imagem.

O Bagua organizava as tendências da natureza num sistema que indicava direções, movimentos, posturas e qualidades, expressos em dois arranjos básicos chamados de “Céu Anterior” e “Céu Posterior”. Não nos cabe aqui aprofundar a complexidade desse sistema cosmológico, mas explicar seus desdobramentos para a mentalidade chinesa. As sequências organizadas de trigramas produziam sessenta e quatro hexagramas, que representavam, dentro desse sistema, as tendências e propensões dos movimentos naturais. Por causa disso, os chineses desenvolveram a ideia de que o Yijing poderia explicar as leis ecológicas, bem como ser utilizado com fins oraculares, antevendo eventos, o desfecho de situações naturais e explicando a configuração e propriedades de determinadas tendências sociais e cosmográficas (Wilhelm, 1986 e Javary, 1989). O papel do Yijing, porém, era mais amplo. Ele descrevia e acompanhava a Mutação (Yi ), ou ainda, “Tudo-abaixo-do-Céu” (Tianxia 天下) por meio de símbolos, de sistemas correlatos, que permitiam explicar “cientificamente” a Natureza e o mundo através do sistema Yin-Yang. Do mesmo modo, a criação das coisas seria um processo contínuo, atemporal, indefinido e infinito. O ciclo da natureza, por ser perene, não demandava início, e nem teria fim.

Esse sistema explicativo foi adotado pela intelectualidade chinesa de modo amplo, e manteve-se como base do raciocínio interpretativo sobre a natureza. Ao sacrificarem para seus ancestrais e deuses, os chineses provavelmente tinham em mente que mesmo os espíritos seguiam essa ordenação cósmica, e não pretenderam qualquer tipo de alternativa para esse sistema.

 

Especulações

Uma especulação sobre esse sistema apareceu no Chuci 楚辭 (Cantos de Chu), atribuído a Qu Yuan 屈原 (-343-278), coleção de poemas nos quais vários temas, ligados a natureza, a vida e a religiosidade são questionadas. Na seção “Perguntas Celestiais” (Tianwen 天問), Qu Yuan reflete sobre a origem do “Mundo da Mutação”, no trecho que se segue:

Quem sabe o que se passou na antiguidade, que viu o começo das coisas? Como podemos ter certeza de como era antes o céu acima e a terra abaixo, antes de tomarem forma? Uma vez que ninguém poderia penetrar a escuridão quando a escuridão e a luz ainda estavam juntas, como é que sabemos sobre o caos das formas não substanciais? Que tipo de coisas são a escuridão e a luz? Como Yin e Yang viraram três, quando, onde?

O restante do texto não dá resposta para essa questão. Qu continua o capítulo fazendo outras perguntas, e comentando o nascimento dos deuses. Eles não escapam, porém, da sistematização cosmológica. Birrell (1993, p.27) admite esse ponto, mas entende que o trecho revela a expansão espontânea do universo, constituindo um fragmento marcante sobre a “cosmogonia chinesa”.

Esse, a meu ver, é o problema. Ao atrelar uma cosmogonia a uma cosmologia, Qu Yuan reproduz um raciocínio tipicamente chinês de síntese, sem excluir duas possibilidades distintas. Do mesmo modo, não haveria problema em explicar um sistema cósmico como cosmologia, e um o sistema religioso como uma cosmogonia (de fato, aliás, essas são as atribuições dos termos). Todavia, Birrell defende, ainda que indiretamente, que uma cosmologia só pode vir depois das cosmogonias, como fruto de um raciocínio lógico; igualmente, ela não associa o texto de Qu Yuan com o Yijing, ignorando a possibilidade de tratar-se de uma especulação sobre a antiga cosmologia do tratado; assim, no afã de defender a teoria cosmogônica chinesa, Birrell não aceita a possibilidade do Yijing ser um texto baseado numa razão filosófica, e sim, mítica. Por fim, o Chuci é uma coletânea de poemas de cunho popular, e temos pleno conhecimento de que uma das características da cultura popular é o senso comum, que promove associações diversas entre o conhecimento dito “científico” (racionalizações) e as crenças religiosas e supersticiosas diversas. Certamente, estamos diante de uma questão escorregadia. Ao conceituar o fragmento do Chuci como uma especulação cosmogônica, facilmente a realocamos para o mundo dos mitos, desprezando, de certo modo, a capacidade chinesa de raciocinar filosoficamente. Esse é o mesmo problema apresentado por Girardot (1983), em sua proposta de compreender um fragmento da obra de Zhuangzi 莊子(-369-286) que traria o primeiro mito de criação chinês de forma clara:

O Rei do Mar do Sul era age-conforme-teu-palpite,/ O Rei do Mar do Norte era age-num-relâmpago./ O Rei do lugar entre um e outro era A Não-Forma (Hundun 混沌, ou Caos).

Ora, o Rei do Mar do Sul/E o Rei do Mar do Norte/ Costumavam ir juntos freqüentemente/ À terra do Não-Forma./ Este os tratava bem.

Então, consultavam entre si,/ Pensavam num bom plano,/ Numa agradável surpresa para Não-Forma/ Como penhor de gratidão.

«Os homens», disseram, «têm sete aberturas/ Para ver, ouvir, comer, respirar,/ E assim por diante./ Mas o Não-Forma/ Não tem aberturas./ Vamos fazer nele/ Algumas aberturas».

Depois disso/ Fizeram aberturas em Não-Forma,/ Uma por dia, em sete dias./ Quando terminaram a sétima abertura,/ Seu amigo estava morto./ Disse Lao Tan: «Organizar é destruir». (Zhuangzi, cap.7)

O primeiro questionamento que podemos fazer é: trata-se de fato de um mito, ou de uma metáfora? O livro de Zhuangzi é repleto dessas histórias. Ademais, o final desse fragmento é claro: abrir os sentidos ao mundo incide em fazer parte dele, e assim, perder-se. Isso vem de encontro ao conceito fundamental do Daoísmo de Ziran 自然 (Natureza Original), que propunha que a absorção da cultura era fatal para a existência do indivíduo. Assim, o ideal seria desprender-se da vida social, e buscar um reencontro com a nossa “autêntica natureza” em relação ao cosmo. Daí a razão pela qual, no final da história, a aquisição da capacidade de ver, ouvir, enxergar e falar leva Hundun à morte. Ele percebe o mundo artificial, e morre. Antes, ele vivia em sua condição natural mais pura. Não podemos crer, portanto, que se trate mesmo de um mito. O termo havia aparecido anteriormente na obra de Laozi 老子 (séc. -6?), o Daodejing 道德經, como um designativo do caos primordial, ainda de acordo com a cosmologia proposta pelo Yijing:

Antes do Céu e da Terra existirem
só havia uma nebulosa
(Caos, o Hundun):
silenciosa, isolada,
suspensa, sozinha e imutável,
eternamente evoluindo sem decair,
digna de ser a Mãe de todas as Coisas.
Não sei o seu nome
Eu a chamo “Dao”.

(Daodejing, 25)

Note-se que o raciocínio empregado é o mesmo da sistematização cosmológica do Yijing, o que fica evidenciado quando lemos o trecho a seguir:

O Dao gerou o Um
O Um gerou o Dois.
O Dois gerou o Três.
O Três gerou as dez mil coisas.
O universo criado carrega
o Yin atrás e o Yang adiante.
Através da união de princípios penetrantes
a harmonia é obtida.

(Daodejing, 42)

Um significa o ciclo gerador; dois, Yin e Yang; três, o Gua; e a partir dos Gua, gera-se o mundo, no ciclo infindável da mutação. Goldin (2008, p.4-5) cita igualmente essa passagem de Laozi, entendendo-a como um mito de criação. É preciso notar que o autor, dominando profundamente o chinês antigo, entende que os conceitos apresentados no fragmento caracterizam, justamente, um mito criador como tal, contrapondo-se a visão ‘agenética’ da China defendida por Ames, Hall e outros.

Voltamos aqui, novamente, a tensão que caracteriza o debate: aceitar esse fragmento como um mito criativo descartaria a possibilidade do pensamento chinês gerar um sistema lógico e explicativo racionalizado sobre a natureza? Podemos aceitar que esse sistema seria uma cosmogonia se entendermos que os chineses acreditavam nele de modo dogmático, baseado na fé. Isso é possível. Contudo, ninguém rezava para Yin e Yang. Robinet (2007, p.523-25) defende a ideia de que Hundun seria um conceito explicativo para designar as coisas em um estado anterior à aquisição da forma. Tal como um ovo transformar-se-á num pássaro, ou uma semente numa planta, ou o feto num ser, o estado primevo (Hundun) designaria essa condição de mudança de algo indistinto para uma forma definida.

Essa visão foi inteiramente aperfeiçoada no livro de Liezi 列子, suposto mestre de Zhuangzi que teria vivido em torno do séc. -5. O texto que atualmente conhecemos foi datado da época Han, em torno do séc. -1, razão pela qual o apresentamos na sequência. Nele, Liezi desenvolve plenamente a teoria da evolução cósmica, sustentando a mesma base proposta no sistema Yijing:

Portanto, existe um Princípio Criativo que, em si mesmo, é incriado, e um Princípio de Mudança que, em si mesmo, permanece inalterável. O Incriado é capaz de originar toda a vida e o Inalterável capaz de conduzir toda a mudança. Toda a produção de mudança está sujeita à continuidade. Do mesmo modo aquilo que se desenvolve está igualmente sujeito à evolução. Assim resulta um fluxo permanente de mudança e de evolução que, sob a forma de Lei, jamais cessa de operar. Assim aconteceu com os contrários de Yin e Yang, da mesma forma que com as quatro estações. Yin e Yang formam os Princípios positivo e negativo da Natureza, predominando de forma alternada sob o aspecto de dia e noite. Mas acerca do Incriado, podemos conjecturar apenas que permanece só em si mesmo. A realidade do Supremo Incriado não pode ser comprovada. Podemos unicamente supor que seja misteriosamente uno, isento de princípio e fim. O Incriado vai e vem e o seu alcance é ilimitado. Dele só podemos supor que seja único e que os seus caminhos sejam inexauríveis. (…) No Sublime Princípio da Unidade reside o começo das qualidades indiferenciadas. Não comporta sujeito nem objeto, forma nem contornos. Numa altura em que a substância, a forma e as qualidades essenciais ainda se encontravam no estado indistinto de associação, existia o Caos que incorporava todas as coisas numa mistura ainda indissociável. Os elementos mais refinados e depurados que tendem a elevar-se constituíram os Céus, enquanto os mais grosseiros e pesados, que tendem a permanecer em baixo constituíram a Terra. A substância, uma vez proporcionada de forma harmoniosa, tornou-se o Homem.

(Liezi, 1)

Quero chamar atenção a dois elementos fundamentais aqui: na primeira parte, de como o ciclo cósmico é gerado pelo “incriado” (ou, “não-criado”), isto é, um princípio gerador que simplesmente dá começo e fim a tudo, sem nunca ter tido um “início”. Na segunda parte, Céu e Terra são separados em um processo natural, sem intercessões divinas, e a criação humana é gerada pela natureza.

O mesmo repete-se em textos descobertos mais recentemente, como o Daoyuan 道原, encontrado em 1973, e datado da época Han. O período Han 漢朝 (-206 a +221) foi marcado por diversas sínteses entre as escolas de pensamento, e a escola Yin-Yang (também denominada na Sinologia como “Cosmológica”) alcançara grande prestígio, influenciando as doutrinas confucionista e e daoísta. Um dos exemplos de continuidade e influência do pensamento cosmológico chinês surge no Huainanzi 淮南子 (sécs. -2? -1?), uma coletânea de textos daoístas que abordam vários tópicos da cultura e do pensamento chinês, desde questões políticas até mitos e folclore da época. O Huainanzi foi muito criticado pelos próprios pensadores chineses por colocar, lado a lado, lendas antigas e narrativas do imaginário com questões filosóficas e institucionais prementes da época. É possível que o livro tenha sido constituído a partir de textos fragmentados, constituindo uma espécie de enciclopédia daoísta de temas gerais. Birrell (1993, p.29) e Goldin (2008, p.6) defendem, mais uma vez, que o Huainanzi apresenta um mito de criação. A narrativa é essa:

Na época que o Céu e a Terra não tinham forma, esta foi chamada de grande mistura, pois tudo era vasto, imenso, obscuro e indistin-to. O Dao começou nas imensidões do vazio. Ele engendrou o tempo, que engendrou os sopros. Os sopros geraram os contor-nos; sua dispersão iniciou a separação, e o que era leve e fátuo deu origem ao Céu. O que era grosso e pesado se aglomerou para formar a Terra. A reunião e a condensação do leve e sutil foi rápi-da, mas a solidificação e a aglomeração do pesado e denso foram delicadas. Assim é que o Céu tornou-se fixo, mas a Terra não. As essências do Céu e da Terra constituem o yin e o yang. As essên-cias condensadas de yin e yang constituem as quatro estações. As essências dispersas nas quatro estações constituem os dez mil seres.

(Huainanzi, 3)

O fragmento é substancialmente semelhante ao outros descritos anteriormente, com exceção de Zhuangzi. Podemos, portanto, adotar dois pontos de vista: um, que se trata de uma apresentação da teoria cosmológica Yin-Yang; dois, a repetição de uma narrativa mítica e cosmogônica. Novamente, aceitar a segunda ideia implica em considerar que a escola Yin-Yang de pensamento se baseava num simbolismo mitificado, cujas teorias poderiam ser lógicas, mas não necessariamente ‘cosmológica’. Ademais, o Huainanzi (cap.6) apresenta outro mito, envolvendo a figura mítica de Nuwa, ora considerada deusa, ora considerada uma sábia da aurora dos tempos. No livro, ela surge consertando a estrutura do Céu e da Terra, o que foi considerado por Birrell e Lewis a indicação de outro mito criador. Não há, todavia, qualquer menção à criação propriamente dita. O mundo já existia, mas estava sendo ar-rumado, encontrando suas formas ideais. Considerar essa passagem como um mito de criação é forçar limites para a prova de uma teoria.

Ora, ainda na época Han,   Wang   Chong   王充 (+27+100), pensador confucionista com uma forte tendência cética, já defendia o papel espontâneo da criação, sem preocupar-se com possíveis mitografias para isso:

Pela fusão entre a matéria e a energia do Céu e da Terra é que todas as coisas do mundo são criadas espontaneamente, assim como a mistura entre a matéria e a energia de marido e mulher geram as crianças espontaneamente. Entre as coisas produzidas, existem os seres que sentem fome e frio. Vendo que os cinco grãos podem ser comidos, eles os consomem; e vendo que a seda e o cânhamo podem ser usados, se vestem com eles. Algumas pessoas, porém, afirmam que o Céu criou os grãos para alimentar a humanidade, e a seda e o cânhamo para vestir as pessoas. Isso seria o mesmo que afirmar que o ser humano foi criado para ser agricultor, e a mulher para ser tecelã. Para mim, essa opinião é questionável e inaceitável. Raciocinando segundo os princípios daoístas, encontramos a afirmação de que a natureza impregna todas as coisas com matéria e energia. Entre todas essas coisas, o grão dissipa a fome, a seda e o cânhamo protegem do frio. Por isso, o homem come os grãos, e se veste de seda e cânhamo. Mas o Céu não produz, de propósito, os grãos que o alimentam, nem os panos que o vestem, assim como não lança calamidades para puni-lo. As coisas são produzidas espontaneamente, e o homem faz proveito delas; todavia, quando elas mudam espontaneamente, ele se assusta com isso. A teoria comum, pois, é desanimadora. Onde estaria a espontaneidade, se todas as mudanças fossem promovidas pelo Céu de forma intencional? E como tudo poderia ser espontâneo, se houvesse um objetivo ou propósito?

(Lunheng 論衡, 3)

Wang estava consciente, portanto, da presença de mitos no imaginário chinês. Por alguma razão que hoje não conhecemos devidamente, o período Han é um momento de resgate de mitos e tradições lendárias antigas, o que fica bastante explícito na construção do Huainanzi e do Shanhaijing 山海經, outro livro dedicado a apresentar lendas, lugares imaginários e o bestiário folclórico chinês. É possível que a China se beneficiasse de um período de integração duradouro entre suas regiões e culturas, permitindo que a construção desses tipos de enciclopédias fosse feita; não sabemos se elas se tratavam de etnografias ou mitografias, ou simplesmente de literatura vulgar.

A questão é que vários conteúdos de cunho folclórico estavam sendo registrados, e podemos acreditar que alguma teoria cosmogônica estivesse sen-do divulgada ou debatida. Como Wang Chong expressa no final do trecho, “Onde estaria a espontaneidade, se todas as mudanças fossem promovidas pelo Céu de forma intencional? E como tudo poderia ser espontâneo, se houvesse um objetivo ou propósito?”. Temos que assumir, aqui, que essa última frase pode se referir a algum tipo de especulação sobre uma “razão celestial” para a criação do mundo, própria da concepção cosmogônica. Mas qual, exatamente, não sabemos. Temos conhecimentos de mitos de criação sobre a humanidade, mas não de origem do universo. Se for a isso que Wang Chong se referia, sua última frase adquire, então, um sentido mais específico. Mesmo assim, sua concepção de Céu mantinha-se atrelada ao sistema do Yijing.

No mais, os maiores historiadores Han, Sima Qian 司馬遷 (-145-90) e Bangu 班固 (+32+92) não citam, em nenhum momento, preocupações com a origem do universo – embora Sima reproduzisse, em sua organização cronológica, o ciclo de criação cosmológica do Yijing e das cinco fases (Wuxing); mas o assunto, enfim, não parecia ser prioridade para os letrados chineses.

 

O primeiro mito de criação chinês

O primeiro mito que ‘atenderia’ as características de uma narrativa cosmogônica é o de Pangu 盤古, surgido em torno do século +3. A narrativa aparece no livro Sanwu liji 三五歴記, de Xu Zheng 徐整 (+220+265) que trata justamente de passagens folclóricas e míticas:

Estavam o Céu e a Terra mesclados como se fossem um ovo, e dali de dentro nasceu Pangu. O Céu e a Terra levaram dezoito mil anos para se separar; o Yang, que era claro, foi se tornando o céu e o Yin, que era escuro, foi se tornando a terra. E em meio a tudo isso, Pangu foi transformando-se, alcançando a sabedoria do céu e a potencia da terra. Durante dezoito mil anos o Céu foi subindo e a Terra descendo, e Pangu crescia junto, e quando eles alcançaram o máximo de sua separação, Pangu também atingiu seu tamanho final. (apud Mathieu, 1989, p.27-9)

O corpo de Pangu seria o próprio universo, e das partes de seu corpo teriam surgido todas as coisas da natureza. Outro fragmento sobre Pangu, do mesmo séc. +3, está presente no livro Wuyun linian ji 五遠歷年紀, do mesmo Xu Zheng, que aparentemente dá continuidade a narrativa anterior:

Estando Pangu – o primeiro que nasceu – a ponto de morrer, todo seu corpo se transformou; seu hálito se transformou no vento e nas nuvens; seu olho esquerdo o sol e a o direito a lua; as quatro extremidades e os cinco membros nas quatro direções e nos cinco cumes; o sangue nos rios azul e amarelo; os tendões e as veias nas principais vias de comunicação da terra; os músculos e a carne nas terras pantanosas; o cabelo e os demais pelos do corpo nos astros e planetas; a pele nos prados e bosques; os dentes e ossos nos minerais e nas pedras; o esperma a coluna nas pérolas e jades; a transpiração e o suor na chuva e nos pântanos; e, por fim, as pulgas que haviam em seu corpo se transformaram, despertadas pelo contato do vento, nas pessoas e nos povos. (ibid)

Como Lincoln (1968) e Lajoye (2013) propuseram, é difícil não relacionar esse mito com o mito de Purusha, presente no Rig Veda (10,90) indiano. Sua aparição tardia no folclore chinês suscita os mais diversos tipos de interpretação. Girardot (1976, 298) convenceu-se de que esse mito era legitimamente chinês, e muito mais antigo do que o séc. +3, mas não explicou exatamente a razão disso. A arqueologia ainda não forneceu qualquer comprovação para essa afirmação. É possível que esse mito tenha sido trazido de fora da China, por meio da rota da seda, e incorporado a mitologia popular.

Afinal, o sistema Yin-Yang constituía um sistema complexo, e seu texto básico, o Yijing, são hoje ainda de difícil domínio. O mito de Pangu encaixava-se facilmente nas cosmogonias chinesas, sem entrar em conflito com os deuses nativos. Girardot (ibid.), finalmente, usa de um argumento retórico para afirmar seu ponto de vista: mesmo que o mito de Pangu seja tardio, ele excluiria a China de sua exclusividade no mundo das mitologias, apresentando, também, um mito de criação. Isso encerraria a discussão, deslocando o problema da temporalidade da questão para a sua causalidade – existindo um mito, portanto, a questão se encerra, não importando quando ele foi assimilado ou difundido.

Essa afirmação parece correta, se aceitarmos que as formulações míticas são providas de uma temporalidade que não necessariamente acompanha a história. Por outro, se o mundo religioso chinês é passível de uma investigação histórica, cujo objetivo seja entender a sua evolução e transformações, a afirmação de Girardot torna-se problemática. O mito de criação passa a existir na sociedade chinesa, mas por alguma razão que hoje não conhecemos bem. Isso não implica na anulação da cosmologia, nem se transpõe para o passado do qual não faz parte. Apenas no âmbito folclórico o mito se difunde; mas podemos rastreá-lo, e descobrir quando ele “passou a existir” no imaginário chinês, fazendo-nos pressupor algum tipo de causa cultural ou mental que ainda está por ser estudada. Nesse ponto, enfim, precisamos ver o que os pensadores chineses mais recentes entendem sobre essa questão.

 

Reproduzindo visões consagradas

A historiografia chinesa manteria seu silêncio sobre a questão dos mitos de criação, e nunca incorporaria o mito de Pangu nas narrativas históricas. Pensadores fundamentais para a civilização chinesa, como Zhou Dunyi 周敦頤 (1017-1073) e Zhuxi 朱熹 (+1130+1200) renovariam, de tempos em tempos, os estudos sobre a cosmologia chinesa, deixando sistematicamente de lado a discussão mitológica.

Contudo, a última grande revolução nos estudos literários e humanos na China foi a entrada das teorias ocidentais, notadamente do Marxismo, a partir do século 20. O forte impacto do pensamento marxista modificou o panorama das ciências chinesas, influenciando diretamente a escrita da história e do imaginário chinês.

Para entendermos a visão chinesa sobre esse tema, precisamos, portanto, verificar de que modo são tratados os mitos de criação nos estudos históricos e antropológicos chineses.

Numa breve relação das obras de história feitas pelos próprios chineses, e disponibilizadas em línguas ocidentais, nenhuma delas aponta indícios de quaisquer mitos, chegando mesmo a ignorar as práticas religiosas. Chen (1962), Bai (1984), Jiao (1986), Li & Xu (1986), Cao & Sun (2011), todos, sem exceção, colocam o plano histórico como fruto das ações humanas, minimizando o papel da religião.

Recorrendo a literatura chinesa não traduzida, encontramos a História da China 中国通史, vol. 1, de Fan Wenlan 范文澜 (+1893+1969), que propõe a teoria de Pangu ser um mito absorvido por tribos do sul da China, usado para preencher o vazio causado pela ausência de um mito criador (e podemos nos perguntar por qual razão uma sociedade precisaria ‘preencher’ esse ‘vazio’).

Foi o mitólogo Yuan Ke 袁珂 (+1916+2001) que propôs a possibilidade do nome Pangu ser uma deformação de Paoxi 庖犧, outro nome de Fuxi 伏羲, um dos fundadores míticos da civilização chinesa (Yuan, 1991). Yuan foi um dos grandes pesquisadores da mitologia chinesa, promovendo uma vasta recolha de mitos e tradições folclóricas populares, além de possuir um grande domínio da literatura. Todavia, ele também defendia que o mito de Pangu, tardio, surgira em função de alguma necessidade folclórica ou imaginária do povo.

Observemos, portanto, que os intelectuais chineses mantinham a mesma distância em relação a possíveis mitos de criação, tal como os antigos historiadores confucionistas. De fato, parece que os chineses haviam incorporado a ideia de constituírem uma civilização privilegiada, dotada de razão desde ermos tempos, como afirmou Fan Wenlan.

Na década de 1960-70, o governo comunista chinês promoveu, por outro lado, um resgate das tradições folclóricas, expresso pela publicação de vários livros com contos e lendas tradicionais. O objetivo dessas coleções era promover a cultura chinesa, num formato generalizado e unificado, com fins educativos e nacionalistas. Em português, Mitologia Chinesa (1986, 2 vols.) foi publicado pelo Instituto de Línguas Estrangeiras de Beijing, e nele estava incluído o mito de Pangu, como um mito absolutamente chinês. As histórias são apresentadas, no entanto, em caráter fantasioso – ou seja, como se os próprios chineses nunca tivessem acreditado nelas. Por analogia, é como se nós, brasileiros, lêssemos sobre mitos tupis. Essa distância, aparentemente, seria definitiva.

 

Conclusão

O que observamos, desse modo, é que os chineses preservaram a concepção de escrever uma historiografia afastada das crenças mitológicas, ignorando possíveis teorias cosmogônicas. Herdeiros orgulhosos da ideia de que sua civilização ateve-se, desde o início dos tempos, às cosmologias, a ausência de mitos de criação antigos evidenciaria a sua singular condição de sociedade racionalista e estudiosa. Essa condição – talvez em parte alimentada pelos próprios chineses – foi transmitida aos especialistas ocidentais, que criaram o debate em torno da existência ou não de cosmogonias na China antiga. Por seu turno, esses mesmos sinólogos transformaram a questão numa extensão do debate orientalista clássico do século 19, no qual a ausência poderia ser utilizada como detrator da cultura chinesa, ou elemento de exotismo.

Nossa apresentação não pretendeu dar um fim ao debate, mas fazer as considerações necessárias sobre os principais argumentos dos autores pró ou contra a singularidade chinesa. Examinamos que os argumentos de Girardot e Birrell possuem vários problemas conceituais e interpretativos, e somente Goldin foi capaz de proporcionar um panorama, pautado em fontes primárias, capaz de responder a essa polêmica conceitual e historiográfica. Por outro lado, os demais autores que mantiveram a teoria da China sem mitos de criação foram bastante influenciados pelas concepções tradicionais dos próprios chineses, reproduzindo uma ideia comum na historiografia antiga, que desprezava as mitologias populares. A possibilidade de a civilização chinesa ser exclusiva no mundo, em relação aos mitos de criação, foi bem aproveitada pelos próprios intelectuais chineses da era comunista, que reforçaram, assim, a ideia de um povo especial em termos de mentalidade.

Somente a arqueologia poderá nos fornecer, no futuro, novas informações sobre essa questão, tendo em vista que a literatura clássica consolidou algumas das visões já discutidas. É possível que venhamos a descobrir, em alguma tumba, que no seio da sociedade chinesa antiga existiam traços de mitos criadores; mas, a sua irrelevância perante a intelectualidade, manifesta na escassez dos registros, nos mostra que, de uma maneira ou de outra, os intelectuais de elite se pretendiam filosóficos, racionalizados e pragmáticos; e nesse sentido, acabaram legando uma visão de mundo bastante distinta, capaz de lançar desafios aos nossos métodos históricos e antropológicos, e forçando-nos a repensar algumas de nossas construções conceituais.

 

André Bueno escreve em Português do Brasil

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