O que é o amor? Mo Zi e Epicuro respondem

1 – O Amante em Mozi

O Amor Universal (兼爱 Jiān’ài)
Pouco se sabe sobre Mozi (墨子) 470-391 a.C, o fundador da escola Moísta. À semelhança de Confúcio e dos outros filósofos do tempo, viajou muito entre os vários reinos da China, mergulhados à época em lutas e ódios intestinos. Talvez por ter vivido durante o período dos Estados Combatentes (战国Zhànguó), fez da pregação do amor universal a sua principal teoria.

À obra, como era tradição, é atribuído o nome do autor, Mozi《墨子》. Esta consta de 71 capítulos, 18 dos quais muito danificados. Os capítulos 8 a 37 são recuperados pela tradição filosófica, bem como os 40 a 45, denominados Capítulos Dialécticos nos quais são abordados os seguintes temas: lógica, epistemologia, ética, geometria e ótica. Das traduções no âmbito da sinologia, destacam-se a para análise a primeira e a última. A primeira, uma versão condensada aqui citada, foi realizada por Burton Watson em 1963, intitulando-se Mo Tzu, Basic Writings; a mais recente é respeitante à obra completa por Ian Johnston de 2010, cujo título é Mozi: a Complete Translation, editada na Chinese University Press de Hong Kong.

Relativamente à biografia do filósofo, sabemos que viajava de estado em estado, procurando convencer os senhores feudais de que, sobretudo por razões utilitárias, o amor era bem melhor do que o ódio. A sua filosofia recorda-nos a longa tradição cristã, que faz do amor fraterno o pilar da fé.

O amor que Mozi defende é para ser implementado neste mundo e com objectivos claramente políticos. Daí que a sua teoria tenha uma vertente utilitária inultrapassável. O sucesso de uma teoria depende para o filósofo de três factores: o primeiro o de poder ser incluída numa tradição que remonta aos Reis Sábios da antiguidade; o segundo, da comprovação dos sentidos e o terceiro da aplicabilidade em termos mundanos. A teoria do amor universal veio fazer frente à da benevolência confucionista, mas nunca a chegou a destronar, embora tenha sido muito importante até finais do século III a.C. Se a teoria moísta não se sobrepôs à confucionista, foi porque, a meu ver, os chineses, com o seu proverbial apego ao concreto e ao particular, viam mal como poderia funcionar uma proposta tão universal e abstrata. A benevolência era bem mais funcional, porque podia ser lida em termos de respeito e aplicada de uma forma hierárquica.

O amor universal apresenta-se como uma alternativa à piedade filial, virtude primeira da filosofia chinesa das linhas confucionista e neoconfucionista. Aliás Mâncio dirige-lhe um ataque claro, precisamente em nome da piedade filial. Segundo a lógica interrogativa deste filósofo confucionista, que resume bem o pensamento da escola, como podemos amar todos por igual quando em primeiro lugar está o respeito devotado aos pais e daí alargado aos professores e chefes da grande nação chinesa? E quem assim não procede não se distingue dos outros animais da natureza. Diz Mâncio em Duque de Teng, Parte II. 9:

“A doutrina de Yang Zhu é centrada no eu e nega a lealdade para com os governantes. A doutrina de Mo Zhai advoga o amor universal, afastando a piedade filial. Quando negamos a lealdade e afastamos a piedade filial, não somos diferentes dos pássaros e dos outros animais. (…) A doutrina confucionista só pode florescer quando as de Yang Zhu e Mo Zhai forem silenciadas, porque teorias absurdas podem facilmente enganar a gente comum e bloquear a estrada da benevolência e da justiça. Bloquear a estrada da benevolência é o mesmo que conduzir animais selvagens a devorarem os homens. E estes de facto devorar-se-ão uns aos outros!”

(杨朱、墨翟1之言盈天下。天下之言不归杨,则归墨。杨氏为我,是无君也;墨子兼爱是无父也。无父无君,是禽兽也 (…)杨墨之道不息,孔子之道不著,是邪说诬民,充塞仁义也。仁义充塞,则率兽食人,人将相食。)

O Amor universal de Mozi (兼爱 jiān ài) significa literalmente amor simultâneo ou por tudo o que existe. Além disso, Mozi propõe como pilares coadjuvantes desta teoria: a frugalidade; o respeito pela religião tradicional, com ênfase para o culto de espíritos e fantasmas; e o afastamento do culto das artes e de todas as expressões artísticas para que as coletividades não fossem tão sugadas, dado que os senhores feudais despendiam muito em banquetes e festas artísticas à custa do povo. Também propunha grande moderação nos rituais, a começar pelos fúnebres, o que só poderia ser malvisto.

E, no entanto, o modo como Mozi constrói a sua argumentação não podia ser mais filosófico, daí que muitos autores se viessem a queixar que ele tinha uma linguagem fria e pouco artística. Mas o pensador explicou-se muito bem, não largando as categorias com as quais se propunha argumentar.

Porquê o amor como ideia motriz da organização social? Porque:

“Aquele que ama será amado pelos outros, aquele que odeia será odiado pelos outros. Por isso, eu não compreendo como é que as pessoas podem ouvir a doutrina da universalidade e, ainda por cima, criticá-la” (Watson,1963, 47).

O amor faz girar o mundo na direção correcta, favorecendo as relações entre as gentes e a paz, evitando o ódio e a destruição. Só o amor pode ser universal. O ódio é sempre parcial, quer dizer, particular, um ódio universal seria a negação da própria existência, dada a sua capacidade destrutiva. Se o fundamento do amor é a universalidade, esta deve substituir-se no mundo à parcialidade, categoria nunca seguida pelos Reis da Antiguidade, nomeadamente pelos reis Wen () e Wu (武). “As pessoas condenam a universalidade em palavras, mas adotam-na na prática, e os grandes Reis da Antiguidade Wen e Wu, administraram os seus reinos segundo o princípio da imparcialidade (Watson, 1963, 43).

Em termos de análise filosófica, o amor é uma força que se rege pelo princípio da universalidade e tem como categoria directriz a imparcialidade. Já a benevolência sendo virtude importante, pode ser subsumida no amor. Tem, por isso, características mais restritas e parciais, não implicando o empenhamento profundo nem a doação total. A benevolência (rén ) é um respeito contido; o amor universal é uma dádiva integral de si, o que o torna uma ideia que obriga o seu praticante ao altruísmo absoluto (同仁 tóngrén). Segundo Mozi, esta é a postura exigida aos filósofos e, sobretudo, aos governantes para que o mundo deixe de se guerrear e se torne mais pacífico e harmonioso.

“Se pensarmos que não estamos correctos, o que fazer para mudar a situação? Mozi disse: devemos usar o amor e a proteção mútua, realizar o método de benefícios mútuos para mudar as coisas…Devemos olhar para o país dos outros do mesmo modo que olhamos para o nosso, devemos encarar a casa dos outros como se fosse a nossa, devemos tomar a vida dos outros como se fosse a nossa. Se os senhores feudais se amarem mutuamente, não haverá guerra; se os senhores se amarem mutuamente, não se conquistarão; se as pessoas se amarem, não farão mal umas às outras; se os senhores e ministros se amarem, poderão ser benevolentes e fiéis; se os filhos e os pais se amarem, poderão seguir a misericórdia e o respeito piedoso; se os irmãos mais velhos e mais novos se amarem, poderão ter uma convivência harmoniosa. Se todos se amarem, os poderosos não poderão oprimir os mais fracos.”

De facto não estamos longe da filosofia cristã tão bem resumida no aforismo de Santo Agostinho: Ama e faz o que quiseres, em Homilias à Primeira Epístola a São João. Recordemos a passagem completa:

“Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor. Se gritares, gritarás com amor. Se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.”

Esta filosofia é viabilizada pelo desenvolvimento dos Evangelhos do Novo Testamento assentes na ideia de amor fraterno, como por exemplo podemos ler na Primeira Carta ao Coríntios, 13: 1-2 em Acima de tudo o Amor:

Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e dos anjos,
se não tivesse amor,
seria como sino ruidoso
ou como címbalo estridente.

Ainda que tivesse o dom
da profecia,
o conhecimento de todos
os mistérios e de toda a ciência;
ainda que tivesse toda a fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse amor,
nada seria.

 

2. A Philia de Epicuro

Epicuro nasceu em Samos no começo de 341 a.C e veio a falecer em 270 a.C em Atenas. O seu pai Néocles era mestre-escola e a mãe Queréstrate era curandeira, usando a magia para curar doenças e outros males nas casas dos pobres que costumava visitar acompanhada do seu filho Epicuro. Este aos catorze anos foi estudar para Teo, na antiga costa Jónia com Nausífanes, discípulo de Demócrito. Saiu depois rumo a Atenas para cumprir o serviço militar de 323 para 322. Findo este, juntou-se à família em Cólofon, cidade da costa jónica perto da ilha de Samos. Até que em 306 rumou a Atenas, onde decidiu instalar-se com um grupo de discípulos, entre os quais constavam Hemarco de Mitilene, que viria a herdar por testamento o Jardim, a escola filosófica de Epicuro. Esta era um horto às portas de Atenas em Dipilon. Aí permaneceu na companhia de seus discípulos e amigos e, também, de algumas mulheres e escravos, o que lhe valeu uma boa dose de maledicência, reforçada pela inscrição que se lia à entrada do Jardim: “Visitante terás aqui uma agradável estadia, pois aqui o bem supremo é o prazer.”

Mas não nos enganemos como sucedeu aos contemporâneos de Epicuro que o catalogaram de hedonista sem mais. O prazer que o filósofo referia era cultivado em comunidade na busca da philia, amor fraterno entre os membros. A vida na escola era frugal, de vez em quando bebiam uma taça de vinho, mas normalmente contentavam-se com água.

O jardim era uma comunidade diferente da Academia e do Liceu, ou melhor, dos centros de investigação platónico e aristotélico. À semelhança da comunidade criada por Mozi, tinha objetivos práticos claramente definidos. Importava acima de tudo cultivar a filosofia, porque o prazer a que se referia, mais do que físico, era espiritual e tinha em vista a felicidade da alma quando se empenha em filosofar.

Escreveu uma grande variedade de obras, hoje perdidas. Entre o material da sua autoria, encontram-se cartas, 40 máximas e 81 sentenças vaticanas. O homem que tanto enaltecia o prazer e fugia da dor morreu na maior das aflições, como podemos ler na Carta a Idomeneu:

“Não podem ser maiores as dores que me acompanham, provocadas pela retenção da urina e pela disenteria, mas a tudo isto opõe-se a alegria da minha alma, ao recordar as nossas conversas passadas. “(Epicuro, 2009, 61)

Enquanto viveu, livre do cálculo renal, procurou tirar o maior partido da vida, dividindo os prazeres, à maneira platónica do Filebo, em cinéticos, prazeres em movimento, relativos à satisfação de necessidades básicas ou afins e um outro tipo, prazeres em repouso ou catastemáticos, isentos de dor ou perturbação, entre os quais se incluem os espirituais, como o de filosofar. Na Carta a Meneceu. Sobre a Vida Humana, podemos ler logo no início:

Que ninguém, por ser jovem, tarde em filosofar nem, por ser velho, se canse da filosofia. Porque nunca se é nem demasiado jovem nem demasiado velho para alcançar a saúde da alma. O que diz que a hora de filosofar ainda não chegou, ou que já passou, é semelhante ao que diz que a hora de ser feliz ainda não chegou, ou que esta hora já findou. (Epicuro, 2009, 111)

A filosofia tem funções claramente terapêuticas e persegue fins tão utilitários como cuidar da alma dos que necessitam, evitando as dores morais.

No jardim cultivava-se, além do horto cujos legumes prestaram auxílio aos atenienses aquando do cerco por Demétrio Poliorcetes, filho de um dos antigos generais de Alexandre Magno que procurou conquistar Atenas e conquistou a Macedónia, cultivava-se, dizia, um outro tipo de civismo afastado da educação convencional. Logo em lugar de privilegiar a retórica, a poética e o ensino das ciências matemáticas, eram cultivados: os estudos voltados para a moral, cujo objetivo era o alcance da ataraxia ou da felicidade; a teoria do conhecimento ou canónica para evitar o erro e a física com o objetivo de transmitir uma mundividência, donde seriam excluídos todo o medo e a perturbação, nomeadamente os relativos à morte e às conceções religiosas erróneas, causadoras de muita superstição.

Esta filosofia de fins terapêuticos assentava em dois pilares: o dos prazeres espirituais e a philia. Ainda na Carta a Meneceu lemos:

“Por isso quando dizemos que o prazer é o fim não nos referimos aos prazeres dos dissolutos nem aos prazeres da sensualidade, como creem alguns por ignorância, por desacordo ou por interpretação errada (da nossa doutrina), mas sim ao facto de não sentirmos dor alguma no corpo nem qualquer perturbação na alma. Pois não são as bebidas nem os prazeres contínuos nem o gozo com rapazes e mulheres, nem o peixe e todos os outros manjares duma mesa sumptuosa que geram uma vida feliz, mas o raciocínio sóbrio que procura conhecer os motivos de cada escolha e de cada rejeição, expulsando desta forma (todas aquelas) opiniões que são fonte de grande desassossego para a alma.” (Epicuro, 2009, 114)   

Nesta filosofia de cariz prático a virtude mais enaltecida, para efeitos de conduta, é a prudência, sendo descrita como o bem mais importante, mais precioso do que a própria filosofia (Ibidem). Porque só ela pode, parafraseando o filósofo, conduzir a uma forma nobre e justa de viver. Esta permitirá o “bom juízo”, a raiz etimológica de “prudência” e de toda a filosofia prática conducente a uma vida feliz, dominada pelo prazer espiritual catastemático, o que deixa a alma tranquila e em repouso.

O prazer filosófico é assim indissociável dum modo de vida prudente, nobre e justo como se enfatiza na quinta máxima capital. Na décima sétima máxima diz-nos: “O justo vive imperturbável, o injusto, ao contrário, cheio da maior perturbação” (Epicuro,2009, máxima 17ª).

Para que uma boa vida tenha lugar, é valorizada a tranquilidade e uma vida longe da multidão, numa comunidade filosófica, como a do Jardim ou ainda como aquela proposta por Mozi. Os mentores destas filosofias práticas vivem rodeados dos seus discípulos, cultivando os prazeres mentais fornecidos pela sabedoria, desenvolvida entre os amantes fraternos de Mozi ou os amigos de Epicuro. Na vigésima sétima máxima defende: “Dos bens preparados pela sabedoria com vista a garantir a felicidade ao longo da vida, o maior é a posse da amizade.” (Epicuro, 2009, máxima 27ª)

A amizade ou philia será então o sentimento que permite viver bem e com justiça na comunidade e por entre as gentes. A amizade, embora possa servir fins utilitários, está acima de qualquer utilidade. Ela não é um meio, mas um fim em si mesma, como defende na vigésima terceira sentença vaticana: “Toda a amizade deve ser escolhida por si mesma, ainda que tenha a sua origem na utilidade.”

A amizade é assim o sentimento por excelência da filosofia epicurista, por isso é bem mais do que um sentimento instrumentalizável, ainda que também o possa ser.2 Enquanto fim é a garantia dum mundo justo e bom, como afirma na trigésima quarta sentença vaticana: “(Para nós) não é tão necessário o auxílio dos amigos quanto a certeza desse auxílio. (Epicuro, 2009, sentença vaticana 34ª)”

Por último sem amizade, esse sentimento supremo no relacionamento humano, não há felicidade. Lemos na quinquagésima segunda sentença vaticana: “A amizade dança à volta da Terra inteira convocando-nos para que despertemos para a felicidade. “Por isso um espírito nobre se entrega à amizade, um bem mortal, e à filosofia, um bem imortal” (Epicuro 2009, sentença vaticana 78ª).

O que têm de comum o amor fraterno do Cristianismo, o amor universal do Moísmo (兼爱) e a philia do Epicurismo? A meu ver, todas estas linhas de pensamento colocam o sentimento de amizade como sustentáculo filosófico das suas teorias.

Considerando os três grandes tipos de amor: erótico, de amizade ou philia, e comtemplativo, o amor cristão enquadra-se no segundo tipo. Ele é, acima de tudo, um amor fraterno, um amor entre irmãos, todos filhos do mesmo pai, incluindo o filho primeiro, Jesus Cristo. Também o amor universal de Mozi nada tem de erótico ou de contemplativo. Ele é amor prático, activo, empenhado em alargar a comunidade filosófica ao mundo, de modo a torná-lo pacífico, imparcial, amigo e frugal, tal como a philia epicurista, a única que recebe o nome de amizade stricto sensu.

Apesar da diferença de nomenclaturas, o sentimento é o mesmo. Define-se essencialmente por pertencer à actividade mental do coração ( xīn). Radica no “coração-mente” e proporciona um estado mental específico de ligação ao outro. É uma forma de cuidado e atenção para com o outro, sendo essencialmente desinteressada, pois a amizade apresenta-se, antes de mais, como um fim e não um meio para satisfação de necessidades, ainda que também o possa ser, já que pertence à atenção ao outro, ajudá-lo no que for preciso para melhorar a sua situação. Mas a amizade não é apenas partilha de paixão e de dor, portanto compaixão, é também um prazer, sobretudo espiritual, que ajuda ao desenvolvimento do ser moral e contribui para a felicidade de cada um.

 

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Bibliografia

  • Cai Xiqin 蔡希勤 (Trad.)(1999). 《孟子》北京:华语教学出版社.
  • Epicuro. (2009). Cartas, Máximas e Sentenças. Introd., trad. do grego e notas, Gabriela Baião. Lisboa: Edições Sílabo.
  • 《墨子语录》 (1994).上海,上海古籍出版社.
  • Pia Sociedade de São Paulo (ed).(1993). Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus.
  • Watson, Burton (trad.). (1963). Mo Tzu, Basic Writings. Nova Iorque: Columbia University Press.

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