O Sábio que atravessou o rio numa cana de bambu

Yishan Yining (1247-1317), o abade do mosteiro budista Puji na ilha Putuoshan (Zhejiang), nomeado mestre do ensino do Chan na região, fez parte de uma delegação enviada em 1299 às ilhas Orientais do Japão por Temur Khan (1265-1307), o segundo imperador da dinastia Yuan, Chenzong. O objectivo era restabelecer relações com o governo do Bakufu mas ao chegar foi detido sob acusação de espionagem. O modo como se livrou da prisão terá envolvido um longo diálogo com o regente do shogunato de Kamakura, Hojo Sadatoki, que assim se apercebeu do valor daquele estrangeiro, numa altura em que o Budismo Chan ali se impunha com o nome japonês Zen.

É possível que logo nesse encontro ele falasse de um outro sábio que também veio do Ocidente, também conversou com um dirigente de uma nação e também atravessou as águas. Certamente já outros, desde o século VII, que tinham levado o Zen para o Japão, teriam falado dele mas Yishan Yining parece ter compreendido a importância de dar a ver esse mestre, que conhecia pelo nome Damo e noutras línguas é mais comummente referido por Bodhidarma. Prova disso é uma pintura que hoje se encontra no Metmuseum em Nova Iorque (rolo vertical, tinta sobre papel, 85,7 x 33,8 cm), datada de antes de 1317, sobre a qual Yishan escreveu um pequeno poema (jueju) em que resume uma história instrutiva (gongan ou koan) que coloca em contraste o Chan do sábio com a conservadora prática dos rituais de Xiao Yan (464-549), o imperador Wu, fundador do estado de Liang (Seis Dinastias). Cerca do ano de 520 o imperador, que abraçara o Budismo, recebera esse estrangeiro, por vezes designado como «bárbaro de olhos azuis», para uma conversa infrutífera. Diz-se que então o sábio partiu uma cana de bambu e colocando os pés sobre ela atravessou o rio Yangzi em direcção à montanha Song, onde se situava o mosteiro de Shaolin.

Li Yaofu, o misterioso autor da pintura ao lado da qual Yishan Yining escreveu, figurou o momento em que Bodhidarma se encontra sobre a cana de bambu naquela alusão característica das pinturas Chan, em que um pincel veloz sugere as formas, terminando na surpreendente precisão dos pontos de tinta que mostram as pupilas. Na singeleza das duas figuras; o sábio envolto nas suas vestes largas enfunadas pelo vento e a cana de bambu, símbolo da virtude, um observador poderia meditar num contínuo de significações em que no centro se encontra a percepção da passagem do tempo. Yishan Yining não regressaria a Zhejiang e tornar-se-ia abade em templos influentes em Kamakura e em Quioto como reconhecido mestre do Zen. Mas a sua caligrafia, aposta sobre a pintura que refere um outro, perduraria, bem como o ensinamento de Bodhidarma: os dois que se deslocaram pela água em sentido inverso ao que traz a luz da aurora e que vieram de olhos abertos do Ocidente, lá onde se prolonga a noite.

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